Quando se viu pela primeira vez em uma COP — a conferência anual de duas semanas entre lideranças dos países-membros da ONU para falar sobre as mudanças climáticas —, Amanda Costa ainda não sabia que se tornaria uma ativista, e nem que fundaria uma ONG junto a outras duas mulheres negras: o Instituto Perifa Sustentável.
Tudo foi acontecendo aos poucos, enquanto a paulistana (hoje com 27 anos) buscava oportunidades de aprender, trabalhar e viver seu propósito.
Amanda nasceu, cresceu e vive na periferia de São Paulo, mais especificamente no Jardim Almanara, que fica na Brasilândia, um complexo de bairros da Zona Norte da capital paulista. Foi bolsista em colégio particular e se dedicou aos esportes, chegando a jogar futebol pela categoria sub 17 da Portuguesa de Desportos.
“Gosto de meio ambiente desde pequena: natureza, praia, campo, chácara”, diz. “Lembro de ir pra praia com os meus pais, pegar a sacolinha e recolher o lixo, era muito natural pra mim.”
Natural ou não, ela precisou forçar algumas portas para encontrar o seu espaço. No mês passado, a ativista participou da COP 28, em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. Mesmo sendo a sua quinta vez na conferência, não foi uma experiência leve:
“É revoltante ir a uma cidade que transborda petróleo, capitalismo, luxúria, ouro, para falar sobre mudanças climáticas, a necessidade de diminuir e extinguir os combustíveis fósseis… Há pessoas que poderiam causar mudanças efetivas, mas não querem, porque estão mais preocupadas em potencializar os seus lucros”
Despertar essa consciência, provocar a mudança e sobretudo furar a bolha do debate sobre a crise climática virou a sua razão de ser.
“Quero trazer essa pauta para o meu território, e quero levar as pautas do meu território para esses espaços de tomada de decisão. Quero ser ponte, fazer essa intermediação entre esses dois mundos.”
Em 2017, Amanda estava com 21 anos, cursando o segundo ano da faculdade de Relações Internacionais da Universidade Anhembi-Morumbi e havia acabado de ingressar em um projeto de iniciação científica focado em acordos internacionais na área de meio ambiente.
Ela jogava futebol na Associação Cristã de Moços (ACM, ou YMCA na sigla em inglês), que estava com um programa internacional de bolsas chamado Camp Climate, ou “acampamento climático”. O objetivo era selecionar jovens participantes para a COP 23, que seria realizada naquele ano, em Bonn, na Alemanha.
Amanda se inscreveu nesse programa e foi escolhida. O que já trouxe uma mudança de paradigma.
“Na minha cabeça, para eu estar envolvida com a ONU e participar de uma conferência dessas, eu precisava ser muito experiente, tipo doutora Amanda Costa, e usar terninho… Esses estereótipos que a gente acaba criando sobre esses ambientes. E aí me vi jovem, no começo da minha carreira acadêmica, de calça jeans e tênis.”
Na Alemanha, Amanda vivenciou na prática o que estudava na faculdade. Como futura internacionalista, estava realizando um sonho muito antes do previsto. Mas aquela experiência despertou uma epifania e um sentimento de revolta que a transformariam para sempre.
“Eu escutava aqueles homens brancos de meia idade do Norte Global falando sobre como a crise climática ia impactar o Sul Global — principalmente populações negras, indígenas e demais grupos minorizados — e fiquei me perguntando: por que o microfone não está na mão de pessoas pretas?”
As discussões importantes estavam acontecendo sem necessariamente envolver representantes dos grupos mais impactados: moradores de periferias, pessoas negras, grupos vulnerabilizados. “Estão decidindo nosso futuro e não estão chamando a gente para esse debate”, pensou.
Amanda decidiu então ocupar esse espaço e tomar a representatividade como missão: fazer serem ouvidas as vozes que ela representa. E por outro lado, tornar mais acessível a comunicação sobre os assuntos envolvendo as mudanças climáticas.
Na volta da COP 23, em Bonn, Amanda entrou para a Engajamundo, organização de jovens lideranças dedicada a formar jovens para ocupar espaços junto a tomadores de decisão.
Logo passou a coordenar um grupo de trabalho sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU e Agenda 2030 a nível nacional. E acabou selecionada para participar da COP 24, em Katowice, na Polônia, pela Engajamundo.
Ao tomar parte de uma COP pela segunda vez, o sentimento de não se ver representada aprofundou-se ainda mais. Agora, muito por conta de um recorte social — e racial — que marca o voluntariado:
“Quem são os jovens no Brasil que conseguem fazer trabalho voluntário? Não é a galera preta de periferia que está no corre. É uma galera de classe média, classe média alta, que tem um determinado nível de privilégio e pode destinar suas energias para isso”
Quando voltou daquela COP, Amanda passou a estudar mais sobre racismo e mudanças climáticas. No ano seguinte, 2019, entrou para outra instituição dedicada a jovens ativistas, a Global Shapers, ligada ao Fórum Econômico Mundial.
Ela também começou a postar em suas redes sociais — Instagram, LinkedIn e, mais tarde, TikTok — sobre os assuntos que vinha estudando.
“Eu [então] aprofundo esse conhecimento racial, me entendo e me enxergo como uma mulher preta de periferia, e aí começo a questionar muito os espaços, e até o próprio debate climático, que não envolvia as periferias.”
Enxergar-se como “uma mulher preta de periferia” não é trivial. Amanda conta que, ao completar 23 anos, publicou um artigo revelando que fazia poucos meses que havia se descoberto negra.
No texto, ela dizia: “É difícil reconhecer que negros não são sempre miseráveis e não estão sempre em posições subalternas? Apesar dessas conquistas, foi difícil me declarar negra. Há um estigma social causado pelo racismo, intensificado pela percepção de que somente as pessoas de pele retinta e cabelo crespo são realmente negras. Muitas vezes, sou a única negra nos espaços em que transito e talvez seja esse o motivo de ouvir que não sou negra, sou moreninha”.
Ela ainda não imaginava que três anos depois, conheceria — pessoalmente, dentro da Universidade Harvard — o líder de direitos civis que cunhou o termo Racismo Ambiental.
Em 1981, o ativista, autor e jornalista Benjamin Franklin Chavis Jr. usou o termo pela primeira vez para definir a discriminação racial na elaboração de políticas ambientais, aplicação de regulamentos e leis, afetando de forma desigual e prejudicial etnias vulnerabilizadas e excluídas dos lugares de tomada de decisão.
Ainda em 2019, Amanda encontrou um edital da organização suíça United People Global, selecionando jovens de países do Sul Global com ideias para transformar suas realidades.
Ela inscreveu a ideia do Perifa Sustentável, um projeto para compartilhar conteúdo sobre a Agenda 2030 da ONU para as periferias de São Paulo. Ou seja: criar uma plataforma para democratizar a comunicação sobre a crise climática.
“A ideia veio a partir de uma dor de não me ver representada no espaço de tomada de decisão, e de voltar para a minha quebrada, conversar com as minhas amigas de igreja e os meus amigos de bairro sobre crise climática, e perceber essa desconexão — no sentido de a galera não entender o que eu estava falando e achar que era uma pauta distante”
O projeto foi selecionado, e Amanda viajou para os Estados Unidos em setembro daquele ano para participar de um treinamento em Liderança de Sustentabilidade e se preparar para desenvolver a plataforma.
No ano seguinte, 2020, foi selecionada para participar de um grupo de jovens embaixadores da ONU, responsáveis por comunicar a crise climática, a Agenda 2030, e desenvolver projetos locais.
A notícia fez aumentar o alcance de suas redes sociais. E isso chamou a atenção de uma jornalista que havia participado de uma live com Amanda, e depois a indicado para a lista Forbes Brasil Under 30, de jovens de menos de 30 anos de idade que se destacam em diferentes áreas.
Amanda entrou para a lista, e novamente seu conteúdo despontou na internet – alcançando novos públicos. Ela inclusive recebeu um convite para apresentar um TEDx, dois anos depois.
Com os títulos de “Forbes Under 30” e “Jovem Embaixadora da ONU”, Amanda chamou a atenção de empresas e passou a receber convites para realizar palestras com funcionários e conversar com empresários, e aceitou participar desses eventos voluntariamente.
Um dia, escutou de uma pessoa próxima que aquilo que ela estava fazendo, na verdade, não era trabalho voluntário, mas “consultoria gratuita e palestra de graça” — já que as empresas com frequência pagam por esses serviços.
A mesma pessoa sugeriu que Amanda continuasse fazendo esse trabalho, mas de forma estruturada para que pudesse financiar o Perifa Sustentável, e quem sabe mais do que isso, transformá-lo numa ONG.
A jovem conta que a primeira coisa que passou pela sua cabeça foi: eu posso fazer isso?!
“No meu mundo, eu não tinha referência de pessoas pretas, de jovens e mulheres que estavam à frente de uma organização — principalmente, no campo de meio ambiente e clima. Hoje, ampliei os horizontes e já tenho algumas referências, mentoras e pessoas que estão perto. Mas naquele momento era distante”
Até que surgiu uma oportunidade de aprender como se constrói uma ONG. Em 2021, Amanda chamou amigos e pessoas próximas, montou um time, se inscreveu e passou no edital do Fundo Elas Periféricas, da Fundação Tide Setubal, para estruturar uma organização sem fins lucrativos passo a passo.
Assim, com esse suporte, nascia em 2022 — formalmente, com CNPJ — o Instituto Perifa Sustentável.
Depois surgiu o primeiro trabalho: aprovado no edital Mulheres Liderando a Ação Climática do Fundo Casa Socioambiental, o Perifa Sustentável desenvolveu o projeto Clima de Quebrada, de educação ambiental para uma escola na Brasilândia e realizou a última entrega no fim de 2023.
“A gente quer muito dar continuidade para o projeto”, diz Amanda. “Só precisa de financiamento.”
Também no final do ano passado, o Perifa Sustentável conseguiu aprovação do edital do Instituto Clima e Sociedade (ICS) para desenvolver, ao longo de 2024, comunicadores climáticos no tema de eleições.
O objetivo, resume Amanda, é “mobilizar jovens, principalmente das periferias de São Paulo, para pautar as eleições municipais a partir de uma perspectiva ambiental e climática”. Ela conta:
“A gente ainda está engatinhando, aprendendo como captar recursos, entendendo como ocupar esses espaços de poder, e fazendo tudo isso do zero. Fui descobrindo que as pessoas que criaram ONG, já criaram com uma equipe, com um salário garantido por pelo menos um ano. E aí, é diferente de uma realidade de uma mulher preta de quebrada”
Hoje o Instituto Perifa Sustentável conta com as três fundadoras — Amanda Costa, Mahryan Sampaio e Gabriela Alves —, além de mentores e apoiadores, todos voluntários. Ninguém recebe salário, e todos mantêm atividades paralelas remuneradas.
Mahryan também estudou Relações Internacionais e se tornou jovem embaixadora da ONU junto com Amanda em 2020, foi quando elas se conheceram. Gabriela foi indicada por um dos mentores do Instituto, por suas características de gestão de projetos e mão na massa.
“Eu, a Gabi e a Mahryan, a gente tem características muito complementares. Eu sinto que tenho uma parada mais comunicadora, de cultivar e manter relações; Mahryan tem uma veia mais política, de articuladora; e a Gabi é mais de desenvolver, implementar, chamar todo mundo e falar: gente, bora!”
O Instituto Perifa Sustentável faz parte de três coalizões que geram conexões importantes: o Observatório do Clima, a Rede por uma Adaptação Antirracista e a Coalizão Negra por Direitos.
“É por onde a gente faz grande parte do nosso trabalho político, em rede, como uma forma de proteção e de conseguir ampliar os resultados das nossas ações.”
Amanda atua em vários veículos de comunicação: tem uma coluna no site Um Só Planeta, da Editora Globo, apresenta um programa de televisão feito pelo Alma Preta Jornalismo em parceria com a Rede TVT, escreve para o site Nós, Mulheres da Periferia e para a Agência Jovem de Notícias.
Ela também publica em seu blog no Medium e produz conteúdo para suas redes sociais — além de dar aulas e realizar algumas palestras e consultorias.
Mesmo com tanta atividade, a jovem ainda vive com os pais, que se encarregam das despesas maiores.
“Reconheço as vantagens sociais que me atravessam, como ter um pai, uma família estruturada que me dá as condições básicas de conseguir colocar energia e usar o meu tempo para investir naquilo que eu acredito, naquilo que eu quero construir”
Como seu trabalho é dinâmico, Amanda procura manter a mente tranquila a partir de uma rotina regrada. Conta que acorda às 5h, se exercita, mantém uma alimentação saudável e alguns rituais — como leitura, prática espiritual e banho gelado, conforme aprendeu no livro O Milagre da Manhã.
“Esse livro mudou minha vida”, empolga-se Amanda. “Para mim, aprender é um valor. Então, gosto sempre de estar aprendendo”. Ela diz que também cuida de sua espiritualidade. “Eu sou cristã, mas uma cristã progressista, até escrevi um texto sobre isso”, ri.
Em 2024, ela planeja passar para um mestrado internacional e conquistar uma bolsa para financiá-lo. Agora, está focada em melhorar seu inglês.
Como parte de seus estudos, Amanda está lendo dois livros com dois mentores, e conversando em inglês com eles toda a semana (uma das obras é The Climate Book, de Greta Thunberg, que Amanda vem debatendo com Matthew Shirts, jornalista americano radicado no Brasil, especialista em meio ambiente e mudanças climáticas).
Os últimos meses de 2023 foram intensos para Amanda, que tomou parte em dois eventos internacionais.
Em setembro, esteve no Brazil Climate Summit, na Universidade de Columbia, em Nova York, e participou de um painel com Helder Barbalho, governador do Pará (a capital, Belém, será sede da COP 30 em 2025); André Lago, secretário de Clima, Energia e Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores; e Michael Stott, editor de América Latina no Financial Times e moderador do painel.
Depois, em dezembro, Amanda participou da COP 28, em Dubai, através da Vozes Negras pelo Clima — uma iniciativa da Anistia Internacional para fortalecer mulheres que sejam lideranças em seus territórios.
Na conferência, ela integrou mesas oficiais da ONU e foi selecionada para participar de uma reunião com o presidente Lula e pouco mais de 100 pessoas.
“É complexo conciliar esses dois universos. Ser uma mulher preta num espaço extremamente luxuoso e conversar com as maiores autoridades do Brasil e do mundo. E voltar para a minha quebrada e ver poucas medidas efetivas sendo realmente implementadas”
Amanda diz que voltou triste da COP 28. Um sentimento aguçado pelo contraste entre a opulência de Dubai e a inércia dos líderes mundiais diante dos desafios do aquecimento global.
“Dói e me revolta, porque vejo que vidas são perdidas diariamente por desmoronamento, deslizamento, enchentes. E me doeu muito essa injustiça e a sensação de insuficiência e incapacidade.”
Além da ansiedade climática, ela sentiu a ansiedade comum a muitos empreendedores, sobrecarregados de trabalho, questionando o próprio papel e desempenho. As mentoras e mentores que a acompanham costumam passar conselhos valiosos nestes momentos (“Uau! A sabedoria dos mais velhos”, celebra).
Fazendo um balanço desde sua primeira Conferência do Clima, há sete anos, ela vê avanços e mantém o olhar crítico:
“A pauta climática ampliou, antigamente era a bolha dos cientistas, dos políticos, de alguns poucos ambientalistas… E aí a gente tem um boom, o clima hoje está hypado, o que é bom, porque mais pessoas estão sabendo da pauta, se interessando e se mobilizando — e é ruim, porque vejo uma superficialidade do discurso”
Na própria COP, diz Amanda, era visível como as negociações formais ocorriam de um lado e as conversas entre a sociedade civil, de outro. A ativista, porém, enxerga uma evolução:
“Acho que isso faz parte de uma trajetória: primeiro você avança, depois aprofunda”, diz Amanda. “Hoje, diferente de cinco, seis anos atrás, se você perguntar para um jovem o que é crise climática, ele sabe responder.”
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Lettycia Vidal empreendeu a Gestar para combater a violência obstétrica, mas esbarrou na escassez de investimentos em negócios fundados por mulheres. Ela conta o que aprendeu nessa jornada — e fala sobre sua nova etapa profissional.
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