“Como pode ser grande um povo cujos artistas não têm sequer material para trabalhar?”
Essa era a queixa do artista gaúcho Iberê Camargo em depoimento ao jornal Correio da Manhã, em 16 de maio de 1954. Naquele ano, em protesto contra a má qualidade das tintas nacionais (e o embargo protecionista à importação de marcas estrangeiras), um grupo de artistas liderados por Iberê, Milton Dacosta e Djanira realizou uma “greve de cor”, apresentando apenas trabalhos em escala de cinza no III Salão Nacional de Arte Moderna, no Rio de Janeiro — que, não à toa, ficou conhecido como Salão Preto e Branco.
Hoje, quase 70 anos depois, a importação de materiais artísticos é possível, mas a qualidade do produto nacional ainda é questionada. Diante da demanda por tinta a óleo de qualidade a preço justo, os pintores Bruno Dunley, 37, e Rafael Carneiro, 38, se uniram para fabricar suas próprias tintas. E assim surgiu a marca Joules & Joules.
Rafael já tinha experimentado produzir tinta a óleo em 2018. Como usava muito a cor branca em suas pinturas e tinha curiosidade sobre o processo de desenvolvimento, resolveu fazer uma quantidade para usar e vender aos amigos — na época, porém, o único que comprou foi Bruno.
Dois anos depois veio a Covid-19, que intensificou a carência da matéria-prima importada, com o período de lockdown e o aumento da dólar que encareceu o produto estrangeiro. “Faltavam cores básicas no mercado, como branco e azul”, lembra Rafael.
Museus e galerias fecharam por um tempo; o ócio pela falta de espaço onde expor se somou à curiosidade pelo processo de fabricação das tintas. Com a experiência prévia de Rafael, os dois se uniram para suprir a lacuna de mercado. “Em nossos primeiros testes, percebemos que dava para fazer uma tinta muito boa em relação às que dava para comprar aqui.”
EM SUA PESQUISA SOBRE PRODUÇÃO DE TINTAS, A DUPLA DESCOBRIU TÉCNICAS MEDIEVAIS E OS MACETES DE UM GÊNIO ESPANHOL
Mas chegar num produto de qualidade não foi fácil. A primeira dificuldade que os artistas-empreendedores da Joules & Joules encontraram foi a falta de uma receita sistematizada para a produção de tinta em uma grande escala, e com uma maior gama de cores.
Durante sua pesquisa, descobriram desde métodos medievais de fazer tinta aos macetes do gênio espanhol Diego Velázquez, que usava talco em suas preparações. A melhor fonte para encontrar as informações detalhadas sobre a composição foi em pesquisas acadêmicas de físicos sobre a reação de componentes e de restauradores de obras de arte que estudam materiais de épocas diferentes para restaurar pinturas.
“Fizemos uma busca, em bancos de pesquisas de doutorados das universidades públicas, sobre os componentes das tintas – cada um dos óleos possíveis de serem utilizados, os pigmentos existentes e também as quantidades necessárias para a reação de cada um desses ingredientes”
Eles aprenderam também que composições de tinta que têm muitos estabilizantes costumam ter pouca quantidade de pigmento – essa é a principal reclamação dos artistas sobre os produtos fabricados no Brasil. Entre as marcas brasileiras mais tradicionais de tinta a óleo estão a Corfix, fundada em 1943, a Acrilex, em 1964, e a Gato Preto, em 1983.
As três têm produtos com preços mais acessíveis, mas são voltados para os estudantes e, segundo os sócios da Joules & Joules, não atendem ao padrão de exigência de artistas profissionais, que acabam dando preferência aos produtos importados.
COMO RESOLVER UMA DEMANDA HISTÓRICA DOS ARTISTAS PLÁSTICOS BRASILEIROS?
Cientes dessa demanda, procuraram por diversos fornecedores de pigmentos – o ingrediente mais caro da composição.
A chave do negócio era fazer uma tinta com alta pigmentação, por isso não podiam abrir mão de usar produtos de qualidade. Antes de fechar qualquer compra, pediam o laudo do produto para tentar aferir a composição dos materiais e compreender como os elementos presentes poderiam afetar na cor. Rafael diz:
“O que a gente procura no pigmento para produção de tinta é um material estável que não volte a reagir com o tempo”
Uma das principais reclamações sobre os produtos nacionais (desde os tempos dos artistas do Salão Preto e Branco) era o processo de oxidação das cores – o que provocava mudança de coloração dos pigmentos após a aplicação na tela ou na mistura com outros tons.
Além da questão da pigmentação, a tinta precisava ter uma textura e fixação que agradasse aos pintores. Beneficiados pelos ciclos de amigos artistas, eles pediram feedbacks do produto.
“A nossa tinta tem uma certa consistência e fluidez. Mas muitos pintores sentiam falta de produto mais firme, especialmente para cor branca. Fomos atrás do que poderíamos fazer sem prejudicar a pureza da tinta”
Assim desenvolveram a linha Corpo Denso, feita com óleo de rícino hidrogenado, um estabilizante e espessante utilizado em marcas de tintas profissionais importadas, como Old Holland e Lefranc Bourgeois.
OS PRIMEIROS POTES E TUBOS DE TINTA FORAM PRODUZIDOS COM BATEDEIRA E MÁQUINA DE ENCHER LINGUIÇA
Os primeiros potes e tubos de tintas foram fabricados com equipamentos que encontraram na cozinha: batedeira planetária para bater o pigmento com os óleos e rolo de macarrão para esticar a massa.
O segundo desafio a ser superado era colocar a tinta nos tubos. Mais uma vez recorreram ao equipamento de culinária. Tentaram primeiro uma máquina de rechear churros, mas não deu certo.
O equipamento perfeito encontrado foi uma extrusora de encher linguiça. As primeiras cores produzidas foram as básicas: branco, amarelo, verde, azul, vermelho, preto.
“Se desse errado, o pior que poderia acontecer era ficar com um monte de tinta para gente”
A tinta pronta e embalada precisava de um nome. Rafael e Bruno costumam se chamar um ao outro de Joules, apelido que surgiu de forma espontânea. Começou com um tal de ei, Jou pra cá, ei, Jou pra lá, até que o tratamento evoluiu para Joules. E se fala como se escreve: jo-u-les. Joules, no entanto, na física (onde se lê jaules), é o nome dado à força do trabalho.
A combinação desses dois significados pareceu perfeita para a marca de materiais que move o trabalho dos dois pintores: Joules & Joules. Há clientes que chamam a marca com sotaques francês, Jules et Jules, mas eles não se importam. A pronúncia fica ao gosto dos fregueses — que chegaram em um volume maior do que os sócios esperavam.
A PROCURA SUPEROU A EXPECTATIVA E PERMITIU INVESTIR NO AUMENTO DA PRODUÇÃO
O produto chegou ao mercado em agosto de 2020. A expectativa dos sócios era vender em um mês cerca de 5 mil reais, para recuperar pelo menos o tempo de trabalho aplicado no desenvolvimento – segundo eles, o investimento em dinheiro não foi tão significativo.
A procura, porém, superou a expectativa. Só no primeiro mês venderam 30 mil reais, e com o dinheiro foi possível investir no aumento da produção. Hoje, o faturamento mensal da marca fica entre 60 mil e 70 mil reais. Rafael lembra:
“A gente sentiu que realmente a demanda estava grande e que teríamos muito espaço para crescer”
A venda direta pelo e-commerce e pelas redes sociais ajuda a Joules&Joules a manter um preço competitivo com as demais marcas existentes no mercado, em especial as importadas, que a empresa vê como seus reais concorrentes.
Para efeito de comparação, um tubo de tinta azul cobalto de 40 ml da marca francesa Lefranc custa cerca de 350 reais, enquanto o tubo da mesma cor da Joules & Joules, com 100ml, sai por 80 reais.
A fim de baratear o custo da fabricação, os sócios pesquisaram bastante até chegar a fornecedores primários de pigmentos e outras matérias-primas, com quem podiam negociar melhores preços.
O crescimento acima do esperado no primeiro ano de vida da marca permitiu investimentos em maquinários mais adequados, como um moinho de precisão para triturar os pigmentos e uma batedeira maior de 20 quilos para bater a tinta — além da contração de funcionários.
UMA SÉRIE DE TINTAS A ÓLEO HOMENAGEIA DIFERENTES TONALIDADES DA TERRA BRASILEIRA
A equipe conta hoje com sete pessoas, entre administração, comunicação, pesquisa, sendo três na produção, incluindo Rafael. O processo continua artesanal: eles produzem apenas uma cor por vez, que rende cerca de 170 tubos.
Estão em catálogo atualmente 47 cores. Entre elas, a série de tons de terras brasileiras. Rafael explica:
“Terra é o pigmento mais tradicional, pois foi o primeiro que o homem usou para pintar. A maior parte desse pigmento é muito estável e de grande permanência, resultado de milhões de anos reagindo com o sol e a água… O maior cuidado que temos de ter é com impureza: não pode ter nenhuma matéria orgânica, e para isso ela é tratada”
Para desenvolver a linha com tons de terra, eles conseguiram o pigmento de duas formas: coletando terras em áreas rurais que tinham uma cor que achavam interessante e comprando pigmentos feitos com terra de empresas que ainda trabalham com o material. No nome das terras, eles identificam o local de procedência do pigmento.
Um exemplo, a Hematita Rio Acima, é referente à cidade de Rio Acima, a cerca de 35 quilômetros de Belo Horizonte. “A gente investe muito na informação com a intenção de construir uma cultura do material. Os nomes das cores se relacionam com os ingredientes da tinta”, conta.
Vendo a demanda dos clientes por pigmentos e óleos, que eles usam na fabricação das tintas, resolveram também disponibilizar os produtos na loja. Para chegar a essa decisão de comercializar esses materiais, fizeram uma consultoria com Caetano Ferrari, consultor em tecnologia dos materiais de arte no Brasil.
“Alguns produtos têm uma sinergia muito grande com os nossos. Há um grupo de materiais artísticos utilizados por quem pinta que é muito caro. Como tínhamos um bom estoque de pigmentos, óleos e havia uma demanda, percebemos que poderíamos vender por um preço justo também”
Além da qualidade dos produtos, o preço competitivo atrai artistas de outros países. O pintor mexicano Bosco Sodi foi um dia conhecer a fábrica, que funciona na mesma casa onde fica o ateliê de Rafael, na vila Pompeia em São Paulo. Ele ficou impressionado com a qualidade do azul cobalto da marca e pediu que enviasse uma lata de tinta para Nova York, onde mora. “Ele fez as contas e viu que compensava pagar o frete e enviar para lá”, lembra.
É muito raro encontrar no mercado a cor azul cobalto, feita realmente com cobalto, no mercado. O mais comum são as misturas de pigmentos de outros tons que se aproximam do tom do cobalto.
ELES TÊM CLIENTES QUE EXPÕEM HOJE NO MASP E NO MAM-SP (E, NO FUTURO, MIRAM O MERCADO LATINO-AMERICANO)
Os sócios já venderam os produtos para todos os estados brasileiros. Quem visitar as principais mostras nacionais de arte visuais hoje em São Paulo, com certeza, verá trabalhos de artistas que usam tintas da Joules & Joules.
Na 37ª edição do Panorama de Arte Brasileira, em cartaz desde julho — e até 15 de janeiro de 2023 — no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), há trabalhos do artista No Martins, que já comprou produtos da marca.
Na mostra Histórias Brasileiras, em exibição até 30 de outubro de 2022 no Museu de Arte de São Paulo (MASP), há paisagens de Lucas Arruda e retratos de Panmela Castro, outros clientes de Bruno e Rafael.
Segundo os empreendedores, alguns artistas que vivem em países vizinhos ao nosso também já demonstraram interesse.
“A gente teria todo um mercado para explorar na América Latina. Tirando o México, não há uma marca de tinta profissional nos demais países, só a gente. Estamos pesquisando como funciona a exportação. Se conseguíssemos vender na Argentina já teríamos o segundo maior mercado”
Esses são passos que eles não têm pressa de dar. Os sócios seguem como pintores, atividade à qual se dedicam há mais de 15 anos, e que permanece como fonte de renda.
Aliás, trabalhar na produção da marca de tinta estimula tanto o negócio em si quanto a própria obra dos artistas – que são as primeiras “cobaias” dos produtos lançados por eles mesmos.
“Organizamos muito os processos para que tivéssemos esse tempo para continuar a nossa pintura”, diz Rafael, que viu sua obra mudar devido ao maior conhecimento das tintas.
“Eu tinha uma paleta muito reduzida. Depois da criação da Joules & Joules, eu passei a prestar muito mais atenção tanto nas cores quanto na interação entre elas e como articulá-las. É muita informação”
Em março, eles lançaram um novo produto: os bastões oleosos, destinados a artistas que trabalham mais com desenho. Já estão em catálogo 30 cores.
“Neste ano devemos crescer uns 40% em relação ao ano passado. Nosso próximo passo é trabalhar na criação de uma tinta acrílica que tem potencial para dobrar o faturamento. Por isso, temos de nos preparar”, explica o artista-empreendedor, que já prepara a tela para a nova demanda de trabalho.
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Allan e Símon Szacher empreendem juntos desde a adolescência. Criadores da Zupi, revista de arte e design, e do festival Pixel Show, os irmãos agora atendem as marcas com curadoria, branding, vídeos e podcasts através do estúdio Zupi Live.