“Atuar no Vale do Silício é, de alguma forma, ler o jornal do amanhã”

Alexandre Villela - 22 mar 2019
Alexandre Villela conta o que aprendeu como VC no Vale do Silício.
Alexandre Villela - 22 mar 2019
COMPARTILHE

 

por Alexandre Villela

Manhã ensolarada de outubro de 2015 em Santa Clara, na Califórnia. Na sala de reuniões, três fundadores de uma startup que prometia revolucionar o mercado de networking (redes de TI), uma indústria que movimenta 120 bilhões de dólares por ano. Os empreendedores representavam um time de 16 pessoas, todos eles oriundos de grandes empresas no setor, como Cisco e Arista. A empresa havia sido fundada há 24 meses, tempo usado para desenvolver a versão inicial do produto. A tecnologia, imensamente complexa, já era patenteada. Um famoso professor de Stanford era investidor. Para completar o pedigree, a empresa havia acabado de receber um termsheet, espécie de pré-contrato de investimento, de um dos maiores investidores de Venture Capital do mundo. Seguiu-se o diálogo:

— A empresa tem algum cliente?

— Não, mas fomos convidados a fazer uma prova de conceito com o Alibaba, na China.

— Qual é o faturamento da empresa?

— Não temos, nem teremos receita nos próximos 12 meses.

— Quanto vocês querem levantar?

— 30 milhões de dólares, sendo que temos metade disso comprometido. O valuation (valor atribuído a empresa) está definido em 130 milhões de dólares — disse o CEO, com indisfarçável orgulho, e finalizou — Preciso saber, nos próximos dias, se vocês querem investir ou não.

Começava naquela manhã, minha jornada como Venture Capitalist (VC), nome que se dá aos investidores em empresas de tecnologia, no Vale do Silício.

Para quem não conhece o Vale do Silício, os 80 quilômetros que separam São Francisco e San Jose representam o olho do furacão mundial em inovação e alta tecnologia. Somente em 2018, foram investidos mais de 40 bilhões de dólares em startups de tecnologia da região. Isso mesmo, um valor superior ao PIB do Paraguai. O ecossistema ali é único no mundo, entre outros motivos, pela integração entre universidades, investidores e empreendedores.

O Vale do Silício é um dos segredos para a prosperidade continuada nos Estados Unidos e sua liderança no mercado de tecnologia

Me mudar para o Vale, a meca da indústria de Venture Capital, era um sonho que eu acalentava desde que entrei na indústria, em 2008. Na primeira parte da minha carreira, havia trabalhado como operador, ocupando funções gerenciais em áreas de produto e novos negócios em grandes empresas de tecnologia. Cresci rápido, liderava equipes enormes com 30 e poucos anos. No entanto, queria algo diferente para a minha carreira. Algo que fosse muito analítico, intelectualmente desafiador — e que combinasse impacto e propósito.

“Venture Capital is the ultimate job”, já dizia um querido chefe. Você precisa conhecer bem finanças, operações, estratégia, tecnologia, governança corporativa e psicologia aplicada. Essa sim, a competência mais importante de todas, pois boa parte dos empreendedores está sempre em uma montanha-russa emocional, flertando com a glória e o abismo. A pressão por resultados é sempre brutal.

Depois de vários anos atuando em Venture Capital na America Latina, fui convidado pela multinacional onde trabalhava para cobrir globalmente investimentos em áreas de infraestrutura de TI e redes. Uma oportunidade profissional absolutamente incrível. Em pouco tempo, eu já estava trabalhando em Santa Clara, no coração do Vale. Em poucas semanas, porém, percebi que nada do que havia feito até ali na minha carreira havia me preparado para o desafio que tinha à minha frente.

O Vale do Silício tem as suas idiossincrasias, algumas características muito próprias. A primeira é a cultura do chamado Product CEO, ou seja, ali, boa parte das empresas mais bem sucedidas é liderada por profissionais de áreas de Produto ou Engenharia. A principal missão do Product CEO é criar a visão do roadmap de produtos. O exemplo mais icônico disso é, por óbvio, Steve Jobs, mas a lista é longa e inclui nomes como Mark Zuckerberg e Elon Musk.

Como Venture Capitalist, para ter interlocução com os melhores empreendedores, é preciso falar essa mesma língua que eles. O efeito prático disso é, naturalmente, uma especialização profunda. Diferentemente de outros mercados, em que os VCs tendem a atuar de modo mais horizontal, nos Estados Unidos eles têm um foco bem definido e conhecem profundamente tecnologia. Não por acaso, boa parte dos partners das empresas de investimento foram CEOs de startups que conseguiram fazer saídas bem-sucedidas (quando vendem a empresa e recebem um bom volume de dinheiro).

Hoje, nos EUA, existem mais de 700 fundos de venture capital ativos. Startups com times de primeira linha, lideradas por empreendedores que já fizeram boas saídas, por vezes recebem dúzias de propostas de investimento. Em um ambiente desse, os papéis naturais de comprador e vendedor na mesa de negociação se invertem. É o que chamamos de “sellers’ market”. O Venture Capitalist tem que assumir um papel ativo de vendas, mostrar o que pode fazer além de trazer dinheiro.

Não por acaso, os fundos mais bem-sucedidos no Vale são aqueles que tem acesso a essas startups em uma fase muito inicial. Essa competição para investir nas startups mais interessantes é brutal e tem resultado em consolidação. O número de Venture Capital firms caiu quase pela metade, de 2005 para cá. Um outro aspecto muito único é o grau de inovação disruptiva.

Atuar no Vale do Silício é, de alguma forma, ler o jornal do amanhã. Estamos no período da Renascença Digital e São Francisco é a nova Florença. Software is eating the world

Observar onde o dinheiro dos VCs do Vale está sendo investido hoje ajuda a entender quais serão as novas tecnologias consumidas no mundo em quatro ou cinco anos. Essa constatação me faz pensar que tecnologias como flying cars (os mais antigos vão se lembrar dos Jetsons), hyperloops, 5G, proteína sintética (sim, hambúrguer artificial) e Inteligencia Artificial serão temas muito presentes na nossa vida em alguns anos.

Gostaria de dizer que a minha adaptação a esse ambiente foi fácil. Não foi. Eu era o único brasileiro de um time de investimentos que parecia as Nações Unidas, gente do mundo inteiro, alguns dos caras mais bem preparados e competitivos com quem trabalhei. O volume de informações para ser analisado e processado era surreal. No começo, tudo aquilo era muito novo e complexo para mim.

Por muitas vezes, me senti um impostor, uma fraude, alguém que não deveria estar ali. Aquilo foi um exercício enorme de humildade, algo que talvez precisasse naquele momento da vida

Em momentos de crise, como esse, a gente precisa ter perspectiva de longo prazo, para entender que o outro lado do túnel reserva algo legal, e muita disciplina e resiliência, para chegar lá. Sou teimoso e persistente. Passei a gravar as reuniões nas quais participava, para escutar novamente durante a noite. Entendi que, naquela momento e naquele ambiente, não havia espaço para improviso, eu tinha que estar sempre na ponta dos cascos. Minha jornada passou a ser dupla. Acabaram os finais de semana. Aquilo virou uma batalha comigo mesmo. Um jornada de autoconhecimento e superação. Tenho certeza que me tornei um profissional muito melhor, em especial por conta daqueles primeiros meses nos Estados Unidos.

No início de 2018, aceitei um novo desafio profissional. Atualmente, divido meu tempo entre Estados Unidos e Brasil, trabalhando na Qualcomm Ventures, braço de investimentos em Venture Capital da gigante de tecnologia para celulares.

Depois de algum tempo tendo muito pouca conexão profissional com meu país, confesso que me surpreendi ao perceber como o empreendedorismo e a indústria de Venture Capital estão se desenvolvendo por aqui.

Vivemos uma revolução silenciosa e estrutural no Brasil, pouco aparente por conta dos fracassos na macro-economia nos últimos anos 

Existe uma massa crítica de empreendedores muito bem preparada, muitos deles treinados no Vale do Silício, que escolheu o Brasil para desenvolver os seus sonhos. Em um futuro não muito distante, a QuintoAndar poderá se transformar na maior imobiliária do país; a Loggi e a Mandaê poderão se tornar maiores que os Correios; o Nubank poderá ser tão relevante quanto o Itaú.

Estou sendo injusto ao citar poucos exemplos, pois já os temos às dúzias. Todas essas empresas nasceram no digital, falam a língua dos millennials, pensam em ser players globais desde os primeiros anos, valorizam diversidade, são éticas. São, em sua essência, empresas de tecnologia que se propuseram a reinventar setores inteiros da Economia, e o farão de modo implacável. E isso vai ser muito bom para o nosso país, pois precisamos, de verdade, de um choque de capitalismo. Estou muito otimista com o Brasil.

Para quem ficou curioso para saber o que aconteceu com a empresa mencionada no início desse artigo, well, muito pouco. Acabamos por não investir nela. Depois de um início interessante, ela acabou sendo eclipsada por outras startups atuando no mesmo setor, com uma abordagem mais barata e simples. Os fundadores, ainda assim, nunca desistiram do sonho.

Consistência, resiliência e propósito formam a essência do empreendedorismo

É como diz aquela frase famosa: a mágica acontece quando você nunca desiste, por mais extenuado que esteja. Afinal de contas, the universe always falls in love with a stubborn heart.

 

 

Alexandre Villela, 46, é engenheiro eletricista formado pela Unicamp e tem MBA pelo INSEAD. Seu trabalho consiste em identificar e criar parcerias de longo prazo, na pessoa física e na jurídica, com empreendedores do mundo todo.

COMPARTILHE

Confira Também: