Abaixo, um trecho de “A República dos Editores”, livro que Adriano Silva, Publisher do Projeto Draft, lança nesta quarta, dia 12 de dezembro, a partir das 18h, na Livraria da Vila do Shopping JK Iguatemi, em São Paulo. (Você está convidadx!)
***
De todos os spin-offs da Super, o que mais me encantou foi Flashback. De tudo o que fiz na Abril, talvez esse tenha sido meu projeto mais pessoal. A ideia de Flashback era apresentar novidades sobre totens da cultura pop, e contar histórias pouco conhecidas sobre as memórias afetivas dos brasileiros nascidos na virada dos 60 para os 70. Pertencentes à Geração X, filha dos Baby Boomers (a geração nascida logo após a Segunda Guerra – embora os brasileiros, diferentemente dos americanos, jamais tenham parado de ter filhos por causa da Guerra), essas pessoas foram as primeiras no país a serem educadas sob a égide da cultura pop, com farta oferta de rock e música popular, televisão aberta e enlatados eletrônicos, blockbusters e quadrinhos, entre outras mitologias. Essa turma, à qual pertenço, não estava – e não está – disposta a envelhecer. Tinha o projeto de permanecer adolescente para sempre, ou, quem sabe, se tornar cada vez mais jovem à medida que envelhecia, nem que fosse por meio do culto à memória dos seus anos de formação.
Flashback nasceu em agosto de 2004, com o slogan “Clássicos, retrôs, vintages, nostalgias e outras saudades”. O primeiro time tinha Ivan Finotti como editor, com a assistência de Alexandre Versignassi, e Alessandro Meiguins na Arte. Ivan, em sua “Carta Retrô”, intitulada “Sobre 20 ou 30 anos atrás”, na primeira edição, com a capa “Os 30 melhores momentos dos Trapalhões!”, explicava a missão da revista: “Contar coisas que você nunca soube sobre aquilo que você achou que tinha esquecido. (…) Onde foi parar Magda Cotrofe? Como foi criado o Telejogo? Quem ganhou mais provas na Corrida Maluca?”
Na edição 4, de dezembro de 2004, com a capa “Jerry Lewis – O rei da Sessão da Tarde”, Flashback ganhou lombada quadrada – e o preço foi de 7,95 para 14,95 reais. A aposta era fazermos uma revista premium, um item de colecionador, que vivesse das receitas de Vendas Avulsas, e não dependesse de Publicidade.
Na edição 5, com a capa “Silvio Santos – Os 30 melhores momentos”, tirada em maio/junho de 2005, a última editada por Ivan, que deixou a Abril, a revista dispensava o logo da Super na capa e se anunciava como título bimestral. Felipe Becker e Jorge Oliveira assumiram a Arte.
Na edição 6, tirada em setembro de 2005, com a capa “Os maiores games de todos os tempos”, a primeira sob o comando de Alexandre Versignassi, auxiliado por Katia Calsavara, o slogan mudou para “Os melhores anos da sua vida estão aqui”. A revista seguiria mensal até a edição “X” (assim mesmo, com algarismo romano), em janeiro de 2006, quando foi descontinuada. Dez edições tão inesquecíveis quanto os conteúdos que trouxe à tona nas quase 800 páginas que produziu.
Flashback ainda lançou o DVD “As maiores propagandas de todos os tempos”, além de um CD com “Os 30 maiores jingles de todos os tempos”. Foi uma alegria. E é uma honra até hoje encontrar gente que diz guardar no cofre a coleção completa de Flashback – ela própria tornada com o tempo um item de memorabilia.
***
Um de nossos lançamentos mais marcantes foram os três filmes da coleção de DVDs Os Trapalhões Forévis – 45 anos de Didi Mocó, que tiramos em 2005, numa co-edição da Super e de Flashback: “O Mundo Mágico dos Trapalhões”, de 1981, “Os Saltimbancos Trapalhões”, também de 1981, e a pérola “O Trapalhão nas Minas do Rei Salomão”, de 1977.
Paulo Alves fez contato com a Renato Aragão Produções Artísticas e um dia recebemos na Redação da Super Paulo Aragão – irmão mais velho de Renato, responsável pelos negócios da empresa. Renato estava com 70 anos – Paulão, como era conhecido no meio artístico, tinha 74. Ele viera conhecer aqueles garotos que queriam lançar, nas bancas de todo o Brasil, os filmes clássicos do seu irmão, que ele tinha ajudado a produzir.
Paulão foi de uma gentileza e de uma humildade exemplares – características que em seguida eu teria a chance de ver impressas também no comportamento de Renato. Ao que parece, Paulão gostou da gente, porque alguns dias depois peguei um avião, com o nosso Paulão, para irmos ao Rio, aos escritórios da Renato Aragão Produções Artísticas, conhecer Renato. Era um encontro de negócios. Mas, sobretudo, um acordo entre cavalheiros. E uma conversa intergeracional, de fã com ídolo, que se tornou bastante familiar quando Lílian Aragão, mulher de Renato, que regulava conosco em idade, entrou no circuito.
Chegamos ao escritório da empresa, na Barra da Tijuca, e em seguida Renato entrou, todo de branco, com Lílian. (Eu, provavelmente incorrendo numa gafe, estava todo de preto.) Se Paulão era a voz de Renato para os negócios, Lílian era a anfitriã, a voz e o sorriso de Renato – que era um sujeito tímido – em compromissos sociais. Lílian, talvez identificando em nós a devoção genuína que tínhamos por Renato e sua obra, a mesma que ela também nutria pelo marido, nos puxou em definitivo para dentro do círculo de confiança.
Selamos o acordo – que, muito mais do que um negócio, era um tributo –, tiramos umas fotos com Renato, por sugestão da própria Lílian, e em breve retornamos a São Paulo, trazendo conosco a chance de prestar uma homenagem a um dos maiores ícones pop brasileiros de todos os tempos. Trabalhar com a marca Didi Mocó Sonrisépio Colesterol Novalgino Mufumbo, e com o conteúdo d’Os Trapalhões, era uma honra.
Combinamos de gravar uma entrevista com Renato para os extras dos DVDs. Algumas semanas mais tarde, voltei ao Rio para conduzir essa conversa – dessa vez, acompanhado de Rodrigo Vergara, que estava deixando Vida Simples e a Abril naquele final de 2005. Verg talvez fosse o companheiro de Super que mais nutria pelo trabalho de Renato um culto semelhante ao meu. Acertei na escolha, inclusive porque, uma década depois, Verg, que sempre fora um grande contador de piadas, se tornaria uma espécie de terapeuta do riso, conduzindo vivências em que as pessoas crescem na medida em que vão aprendendo a rir de si mesmas.
Conversamos longamente com Renato, em sua casa. (Ele foi muito paciente com nosso extenso questionário, o que acabou lhe atrasando para o próximo compromisso do dia.) Outra característica de Renato é como ele vivia o presente, e olhava para frente, para os próximos projetos – ele aceitava as homenagens ao passado, mas parecia levemente incomodado de ser visto como um monstro sagrado que já tinha realizado a sua obra, e não como alguém que ainda tinha muito a fazer.
Naquela manhã, fomos de novo muitíssimos bem recebidos por Lílian, que registrou tudo em fotos, além de também tecer algumas perguntas a Renato. Antes que fôssemos embora, ela nos convidou a figurar no filme que Renato estava começando a produzir. Como resultado, acredite, Verg e eu fizemos uma ponta em “Didi, o Caçador de Tesouros”, o 44º longa-metragem de Renato Aragão, lançado em 2006.
A participação não nos catapultou à carreira artística – tampouco, quero crer, comprometeu o filme –, mas ambos consideramos aquela aparição de três segundos como o ápice de nossas carreiras. E não poderia ser diferente. Verg ainda teve a chance de dançar com a mocinha – a emergente Grazi Massafera – e tomar uma garrafada de Didi. (Eu era o garçom de quem Didi pegava a garrafa para a divina cacetada.) Pronto. Acabou. Lacrou. Nada maior ou melhor do que isso poderia nos acontecer. Já podíamos aposentar ou morrer felizes e realizados.
***
Por que um projeto editorial dá certo, enquanto outro, tão bom quanto, às vezes até melhor, não vai adiante? A fórmula do sucesso é tão impenetrável quanto a receita do fracasso. Há projetos que criamos para nós mesmos. E há projetos que a gente faz para os outros. Se você só pensar em si mesmo, poderá criar uma oferta hermética. No entanto, se só ouvir os outros, acabará deixando seu coração de fora do produto. Aí vai gerar, mesmo que não queira, uma oferta no piloto automático, sem a paixão genuína do empreendedor – que no fim das contas é o que coloca alma e brilho, dois dos mais importantes diferenciais competitivos, num bem ou serviço.
Como em qualquer empreendimento, e sublinhadamente no mercado editorial, o equilíbrio entre aquilo que você deseja fazer e aquilo que as pessoas desejam comprar – a justa negociação entre essas duas forças –, é o fator que carrega mais chances de definir se você vai subsistir ou morrer. É preciso arrumar um problema real das pessoas para resolver. Mas isso tem que falar com a sua essência.
Ou talvez as melhores chances de fazer coisas que os outros queiram comprar estejam justamente na invenção de coisas que você gostaria de ter. (Ou de ler ou de assistir ou de ouvir.) Talvez, no fundo, a gente sempre crie produtos para nós mesmos. Algumas dessas coisas dão certo. Outras, não. Ponto.
Um dos altos executivos da Abril, vindo de fora da indústria da mídia, e que não compreendia bem o que fazíamos ali, uma vez questionou, exasperado, com seu pensamento cartesiano: “Se vocês publicam uma capa que vende muito num determinado mês, como pode não serem capazes de reproduzir o mesmo sucesso no mês seguinte?”
É curioso como vários executivos simplesmente não conseguiam entender a Abril – qual era o nosso negócio, como ele rodava, quais eram os fatores críticos de sucesso no ramo editorial. Havia um componente artístico em nosso métier, e isso desnorteava alguns homens e mulheres de negócios que não tinham esse talento específico – por mais competentes que fossem em outras áreas e por mais que se esforçassem em decupar o nosso gingado.
Do lado dos “artistas”, esse descompasso de estilos e de expertises era muitas vezes utilizado como oportunidade para se colocarem numa bolha, e como argumento para não terem de prestar contas do que faziam, ou de como faziam, a quem ficava do lado de fora daquela redoma.
Sempre que algum executivo rodava, por não conseguir se mover entre as armadilhas espalhadas pelas várias veredas da Editora, um Diretor Comercial dizia, parafraseando Tom Jobim: “A Abril não é para amadores.” Ele tinha razão. Não era simples mapear como as relações se davam ali dentro, os fluxos de poder entre áreas e pessoas, as vastas entrelinhas nas quais se escrevia com tinta invisível – e em dialeto ítalo-americano. Eu dava risada quando ele dizia isso. (Anos depois, na TV Globo, experimentando a arapuca pelo lado de dentro, eu acharia menos graça nesse tipo de situação.)
Adriano Silva é jornalista, CEO da The Factory e Publisher do Projeto Draft. “A República dos Editores” é seu nono livro.