Como quase fechar as portas fez surgir a empresa de games independentes mais bem sucedida do país

Gisela Blanco - 21 out 2014
Da esq. para a dir., os sócios da Behold: Betu Souza, Leonardo Prunk, Saulo Camarotti, Guilherme Mazzaro e Hugo Vaz
Gisela Blanco - 21 out 2014
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Esta é a história de um empreendedor que chamou os ex-funcionários para virarem sócios, cortou todos os custos e conseguiu desenvolver um modelo de negócios para fazer os jogos que sempre sonhou em jogar. Hoje, aos 28 anos, Saulo Camarotti realizou o sonho de quem empreende: com um investimento mínimo, tem uma empresa estável e bem sucedida, que vende seus produtos para mais de 90 países.

Ele também realizou o sonho de muitos nerds: ganha a vida fazendo exatamente os games que gostaria de jogar. Tudo isso em Brasília, cidade não exatamente conhecida por facilitar a vida de quem tenta a sorte longe dos concursos públicos. A Behold Studios é uma startup pequena, com 5 sócios e 2 funcionários, mas seus números impressionam. Seu primeiro jogo, Knights of Pen & Paper teve quase 1 milhão de downloads e já gerou uma receita bruta de 2 milhões e meio de reais.

O segundo grande projeto do estúdio, o jogo Chroma Squad, ainda nem foi lançado e já vendeu 6 mil unidades, sendo 4 mil durante sua campanha de financiamento coletivo no Kickstarter. Saulo e seus sócios estipularam uma meta de 55 mil dólares, e arrecadaram quase o dobro. Na receita deste sucesso estão muita dedicação, redução de custos, fazer o que se gosta, aprender com os próprios erros e, até, um pouco de magia.

QUANDO FALIR PODE SER UM ÓTIMO NEGÓCIO

Mas nem sempre foi tão fácil. Saulo criou a Behold em 2009 com um grupo de amigos de faculdade quando ainda estudava Ciências da Computação na Universidade de Brasília. “Apesar de na época não existir uma indústria de games na cidade, já víamos uma interação muito boa de gente que estava interessada em fazer jogos. Alunos e professores de computação, design e música se juntavam para pesquisar criar projetos juntos”, diz ele.

Foi nesse ambiente criativo que Saulo e seus sócios formaram a Behold na incubadora da universidade, a CDT. A empresa cresceu e se tornou independente, mas com o tempo, viu seu modelo de negócios falir. “Nossa principal receita vinha de fazer games institucionais ou publicitários. Mas não tinhamos o perfil vendedor necessário para tocar esse negócio. Tentamos contratar alguém de fora, não deu certo. Com o tempo, as despesas aumentaram, tivemos que demitir funcionários”, conta. Tomados pela incerteza, logo os sócios também abandonaram o barco.

Behold

Imagine coordenar Power Rangers se degladiando, num estúdio de TV, com audiência ao vivo: essa é a essência do game Chroma Squad

Dois anos depois, em 2011, Saulo se viu sozinho na startup pela qual já haviam passado 20 funcionários. Mas em vez de desanimar e fechar as portas de vez, ele conta que a crise lhe trouxe  ânimo.

“Falhar foi fundamental. Ter que recomeçar tudo do zero foi estimulante. Percebi que naquele momento eu poderia realmente fazer o que quisesse. Resolvi arriscar e investir em criar um jogo totalmente diferente, pensando no que eu gostaria de jogar, e não mais no que eu poderia conseguir vender”

A idea de ganhar a vida com um produto que o próprio empreendedor adoraria usar sempre soa bonita, mas o leitor já deve saber que levar um sonho desses adiante não é tão simples. Saulo precisou seguir ao pé da letra o conceito de bootstrapping – cortar ao máximo todos os custos da empresa. Primeiro, adormeceu a parte contábil. De despesas, passou a pagar só os 100 reais mensais ao contador. Depois, convidou quatro ex-funcionários para serem seus sócios.

Nessa nova fase, nada de salários ou escritório. Durante os próximos oito meses, a equipe se reunia para trabalhar no café de uma grande livraria — e aproveitar o wi-fi grátis. “Estávamos lá todo dia, das 10h às 18h. Paralelamente, cada um teve que se virar com outros trabalhos para ganhar dinheiro”, conta Saulo. Mas a ideia de fazer o jogo dos sonhos era o que motivava a equipe a seguir em frente. “Quando cortamos os custos a quase zero e paramos de nos preocupar com a parte administrativa, conseguimos nos concentrar só no produto”, diz.

ESTOURAR NA HORA CERTA

Nasceu assim o Knights of Pen & Paper, lançado em iOS e Android, jogo que simula uma partida de RPG, daquelas tradicionais, com os jogadores em torno da mesa. Enquanto o jogador avança, as ações imaginadas vão se surgindo em imagens, em segundo plano. Essa metalinguagem inovadora e boas doses de nostalgia — o jogo tem estética anos 80, que lembra clássicos como Zelda — renderam ao jogo 30 nomeações a prêmios (dos quais ganhou 13), além de participação em várias mostras e festivais internacionais.

O sucesso foi instantâneo e, na visão de Saulo, meio mágico. “Colocamos o jogo nas lojas virtuais da Apple e do Android e não contamos para ninguém, não publicamos no Facebook, nada, porque queríamos antes testá-lo. Mas em três dias vários sites e revistas de games começaram a publicar matérias sobre ele. Foram os próprios usuários que depois de jogar entravam na internet para divulgar”. Estava dado o primeiro passo para que o jogo chegasse a quase 1 milhão de downloads. E contando: as vendas seguem bem e o jogo agora pode ser encontrado também em versões para PC, MAC e Linux. Já se foram três anos e mais de 16 jogos produzidos pela Behold Studios.

O atual grande projeto da empresa é o Chroma Squad, que atraiu 97 mil dólares, de 4 000 interessados via Kickstarter. O jogo consiste em administrar um estúdio de TV que produz séries de super-heróis coloridos, no melhor (ou pior) estilo dos seriados japoneses dos anos 80. Mas a inovação não está só no formato: a Behold usou o a plataforma de crowdfunding também para testar a ideia e aprimorá-la. Criaram uma comunidade ao redor do Chroma Squad antes mesmo dele ser lançado, recebendo contribuições de gamers do mundo todo.

Behold

Knights of Pen & Paper foi o primeiro sucesso com a marca Behold: imagem pixelada, som vintage e jogabilidade para mobile

Um baita exemplo de uso de crowdsourcing. Até então, as referências dos desenvolvedores da Behold eram os seriados japoneses que passavam  na TV por aqui. Com a campanha, apoiadores do Japão contaram detalhes dos seriados mais modernos, que fez com que mudassem várias partes do roteiro. “Ainda tivemos apoiadores ‘early birds’ (os que pagam pelo jogo primeiro) testando o jogo e dando um feedback importante para convertemos em um produto ainda mais interessante”, conta Saulo.

A história tem ainda um episódio curioso. Com a exposição que o jogo ganhou com a campanha do Kickstarter, o estúdio americano Saban procurou a Behold pedindo um acordo de compartilhamento de royalties. O motivo? Eles teriam ficado incomodados com a semelhança dos heróis coloridos com uma de suas criações: os Power Rangers.

NA NOVA FASE, LEVEZA E FOCO

A experiência com o Chroma Squad resultou, quase sem querer, em um novo modelo de gestão. A nova Behold valoriza a experiência do usuário acima de tudo e carrega a redução de custos como uma máxima. Dá para perceber isso quando se entra na sede da empresa, em uma área comercial do Lago Norte, bairro nobre de Brasília. Os jogos, brinquedos e videogames que decoram o escritório denunciam que ali vive uma startup de games. Mas nada dos móveis de design ou a decoração super descolada dos escritórios modernos. Ali só se gasta dinheiro com o que é realmente necessário. E boa parte do faturamento é reinvestido na própria empresa.

Aliás, segundo Saulo, uma das vantagens de ter uma empresa em que quase todos os funcionários são também sócios é que não falta motivação para trabalhar nem vontade de investir no próprio negócio. Até mesmo um aporte de capital que a startup recebeu da Garan Ventures em 2012, em troca de 30% da empresa, foi gradativamente pago (o chamado buyback) para que os sócios voltassem a ter controle total da empresa.

“Participar dos eventos internacionais de games é metade prêmio, metade investimento”

O momento é de otimismo. Uma pesquisa do instituto Newzoo aponta que o Brasil fechará 2014 como o maior mercado de games da América Latina, movimentando quase um bilhão e meio de dólares. Saulo diz que, por enquanto, apenas cerca de 5% dos downloads pagos dos jogos da Behold vêm do Brasil. Mesmo assim, a empresa aposta nos gamers daqui para uma nova empreitada: um jogo de tabuleiro feito para o mercado nacional. O lançamento, previsto para o fim desse ano, será pelo Catarse.

Apesar da boa fase, Saulo mantém a fala e atitudes condizentes com o modelo de modéstia que prega na gestão financeira. Descarta, por exemplo, ter um grande estúdio de games no futuro. Sua meta é que a empresa cresça só até o ponto de ninguém precisar mais acumular tantas funções, como é regra em toda startup. Para ele, o modelo de empresa pequena e horizontal, com muitos donos, é ideal porque todos consideram a própria empresa um patrimônio.

Mas tanta modéstia não significa uma vida sofrida. Uma das estratégias da Behold é participar sempre de feiras e convenções de games internacionais como a Pax, em Seattle ou a Game Developers Conference em São Francisco (EUA) e a Gamescom, em Colônia (Alemanha). Mas só viaja quem merece. “Participar dos eventos internacionais de games é metade prêmio, metade investimento”, diz Saulo, que também costuma ministrar palestras e workshops. Um dos próximos compromissos da equipe deve ser no evento PlayStation Experience, em dezembro, em Las Vegas (EUA). A Sony selecionou os 90 melhores delevopers de games para levar ao festival. Modéstia a parte, a Behold está na lista.

draft card behold

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