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Caçula do futebol potiguar, o Laguna chegou à primeira divisão apostando na dieta vegana como trunfo dentro e fora de campo

Paulo Vieira - 7 jan 2025
Time do Laguna campeão da segunda divisão potiguar (crédito: Henrique Holanda/Laguna SAF).
Paulo Vieira - 7 jan 2025
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Exige certa liberdade criativa, quando não puro pensamento mágico, associar o futebol brasileiro a boa governança e a paradigmas da nova economia. Disrupção não combina com cartolagem, especialmente nos clubes associativos que ainda dominam o mercado no país. Mas, impulsionadas pela Lei das SAF – que trouxe empresários de áreas como a do entretenimento para o futebol profissional –, as coisas começam a mudar.

O valuation de diversos clubes vem aumentando rapidamente. O do Cruzeiro, por exemplo, subiu 50% em três anos, de 400 milhões para 600 milhões de reais. Valores de patrocínio também crescem, sem falar nas possibilidades de título, vide o Botafogo de 2024, campeão brasileiro e da Libertadores. Como emblema desse novo tempo, até a alquebrada Portuguesa de Desportos, de São Paulo, tornou-se rapidamente SAF para fazer jus a um aporte de 1 bilhão de reais de um consórcio integrado pela XP Investimentos.

A história do porto-alegrense Gustavo Nabinger, 41, torna-se mais verossímil nesse cenário. Ex-jogador profissional, ele fundou, há dois anos, com a irmã Deia e com Rafael Eschiavi, o Laguna SAF, clube de futebol que Gustavo considera uma startup e que disputa o campeonato potiguar – em 2025 já na primeira divisão.

Em pouco tempo, o Laguna passou a ganhar destaque na imprensa menos por sua rápida ascensão nos gramados (esburacados) do Rio Grande do Norte do que por oferecer às cerca de 40 a 50 pessoas que compõem seu quadro de colaboradores dietas estritamente veganas, algo inédito no futebol brasileiro.

Num ambiente como o do futebol, em que as “resenhas” parecem impossíveis sem churrasco, o veganismo é, de fato, disruptivo. Mas não é essa a única nem mesmo a maior disrupção do Laguna.

SEM TALENTO COM A BOLA NOS PÉS, ELE TRABALHOU COMO TREINADOR ATÉ FUNDAR SEU PRÓPRIO CLUBE

“Sempre fui viciado em futebol. Meu pai era contra, não queria que eu jogasse”, diz Gustavo, que atuou profissionalmente como volante entre 2007 e 2009, defendendo clubes pequenos como o Corintians de Caicó (RN) e o Atlético de Carazinho (RS). 

Ele aposentou as chuteiras precocemente, mas não abandonou o futebol. 

“Como jogador eu era ruim, encerrei minha carreira com 26 anos. Eu queria mesmo ser técnico, e pensava: vou jogar, e isso vai servir como faculdade para eu depois ser treinador”

Com apoio paterno, a carreira de treinador teve início em 2012, treinando o time sub-15 do Guarani de Campinas. Ao longo dos anos seguintes, Gustavo engatou passagens pelas divisões de base de outros clubes, como a Ponte Preta, também de Campinas, o Figueirense (SC) e o Vila Nova (GO).

“Fui eu que descobri o Gabriel Menino [ex-Palmeiras e recém-contratado pelo Atlético Mineiro] e levei ele pra base do Guarani”, diz Gustavo. “Eu tinha um aproveitamento bastante interessante [em revelar jogadores], isso chamava atenção para o meu trabalho.”  

Hoje, além de fundador, ele é o técnico à frente do Laguna. Em novembro, a equipe conquistou sua maior glória até aqui: bateu a Univap por 3 a 2, na cidade de Apodi, a 360 km de Natal, no sertão do Rio Grande do Norte, e se sagrou campeão da segunda divisão potiguar

 NA HORA DE ESCOLHER A SEDE FOI PRECISO LEVAR EM CONTA DIVERSOS FATORES

Pode soar meio tautológico, mas a principal disrupção do Laguna é a sua própria existência. Gustavo pensou o clube efetivamente como negócio, e no business plan questões nutricionais não entravam inicialmente no “core”. 

Fundamental era, de cara, encontrar o estado e a cidade ideais para instalar o clube, e isso envolvia testar uma série de variáveis: IDH, concorrência, valores de licenças a pagar para federações, logística, capacidade de criar conexões com stakeholders, impacto local etc. 

Diversas cidades paulistas foram descartadas principalmente por questões de concorrência e taxas; Florianópolis, por ter dois clubes de futebol (Avaí e Figueirense) já muito tradicionais; Boa Vista, por custos logísticos e baixo impacto de mídia.

O plano previa uma ascensão rápida do time à primeira divisão estadual, o que seria vital para criar empatia com uma nova geração de torcedores. Dois estados do Nordeste pareceram a Gustavo opções ideais para servir de base ao novo clube: Rio Grande do Norte e Paraíba. E o primeiro – onde ele tinha boas relações desde o tempo em que atuara no Corintians de Caicó – levou a parada. 

Na modelagem foram feitas simulações para que o Laguna chegasse à principal divisão nacional em até dez anos, seguindo o exemplo de times como Cuiabá e São Caetano. Mas, ao contrário da agremiação do ABC Paulista, com sustentabilidade econômica e técnica, ou seja, propiciando ao Laguna condições de permanecer na “major league”. Para isso seria fundamental conquistar empatia e torcida.

O Rio Grande do Norte se prestaria bem a isso. No estado, há menos torcedores dos times potiguares do que dos grandes de Rio e de São Paulo, e a última vez que um medalhão local chegou à principal divisão nacional foi em 2007, com o América de Natal. 

Gustavo viu uma lacuna – e uma oportunidade – e decidiu levar o Laguna para Tibau do Sul, município onde fica a famosa praia da Pipa.

COMO MANTER A CONEXÃO COM A TORCIDA SEM DEPENDER DE RESULTADOS

Conquistar empatia passa por resgatar o que é, para Gustavo, a essência do futebol brasileiro, o chamado jogo bonito. Isso, segundo ele contou ao Draft recentemente, num café em São Paulo, já criaria conexões imediatas com os torcedores. 

Gustavo quer a torcida como verdadeiro stakeholder, a apoiar e vivenciar o Laguna à maneira que uma comunidade carioca, por exemplo, apoia sua escola de samba; ou a desenvolver fortíssimas afinidades eletivas, como acontece com o Athletic de Bilbao, por conta da questão basca, ou com o alemão St. Pauli, de Hamburgo, por seus posicionamentos políticos.

Para isso, o drible e o chapéu durante os jogos podem valer mais do que vitórias. 

“No futebol de várzea, em que há conexão entre os moradores locais e o time, o jogo interrompe e a torcida enlouquece quando há uma ‘caneta’ ou um ‘chapéu’… E no futebol, em geral, um time é menos vezes campeão do que é campeão”

Segundo Gustavo, as equipes que perdem conexão com a comunidade são movidas por resultados. Assim, para preservar essa fidelidade, fazia sentido pensar um clube que tratasse o futebol como entretenimento. Ele cita como benchmark os times universitários norte-americanos, em que entretenimento e pertencimento andam juntos. 

“A Universidade da Califórnia, em Los Angeles, tem estádio para 80 mil pessoas. Se tem um jogo de noite, no meio da tarde o pessoal já começa a fazer piquenique em volta; depois, no intervalo, toca a banda da universidade e aparecem as cheerleaders; e depois do jogo ficam por lá food trucks. O envolvimento é ao longo de todo o dia.”

Sem tal estrutura – não há universidades em Tibau do Sul –, a alternativa aqui é envolver a comunidade com geração de empregos e campanhas sócio-educacionais, como uma de limpeza da Praia da Pipa, que teve participação de todo o Laguna. Em suma, a ideia é contribuir para a vida da cidade.

O VEGANISMO É VISTO COMO UM TRUNFO DENTRO E FORA DO CAMPO

O veganismo é seguido há algum tempo por Gustavo e Deia, que atua como sócia-investidora. Ele achou então que não faria sentido deixar de compartilhar esse modo de vida com as pessoas que iria liderar diariamente. 

Para isso, Gustavo contou com a colaboração da SVB, a Sociedade Vegetariana Brasileira, que hoje oferece capacitação técnica e horas gratuitas de nutricionistas e outros profissionais. 

O Laguna é o primeiro time vegano do continente, e aparentemente o bônus da primazia tem sido maior que o ônus. Relatos de jogadores – alguns bastante rodados, como o atacante Bill (ex-Corinthians e Botafogo) e o volante Jean Mangabeira – sugerem que a alimentação à base de plantas permite uma recuperação muscular mais rápida do que uma dieta tradicional. 

Por enquanto, tudo ainda entra na conta do empirismo, mas uma coleta de dados para a consolidação científica disso não deve demorar. 

De qualquer forma, o veganismo também vem a calhar na estratégia de consolidação de torcida e seguidores. Segundo estimativas, existem no Brasil de 25 milhões a 30 milhões de pessoas que se declaram vegetarianas. 

“Se eu conseguir fidelizar 1% desse público eu já tenho mais gente do que qualquer programa de sócio-torcedor dos times da série A. E eu não preciso cobrar 150 reais, posso cobrar 6 reais – metade do preço desse café que estamos tomando”

A dieta é um dos elementos da agenda ESG do Laguna. Na esteira do primeiro time vegano do mundo, o inglês Forest Green Rovers, referência também pelas ações de sustentabilidade que desenvolve, há mais em vista em Tibau do Sul. 

Gustavo gostaria de ter, como o Forest Green, um gramado 100% tratado com adubação orgânica e com coleta de água pluvial. Mas um gramado orgânico implica, por exemplo, possuir um estádio próprio, algo hoje ainda fora da realidade local.

EXERCITANDO A UTOPIA PARA CONTORNAR OS PROBLEMAS CRÔNICOS DO NOSSO FUTEBOL

Num texto recente na Folha de S.Paulo, Tostão, colunista do jornal e “falso 9” do escrete canarinho de 1970, disse que falta ao futebol brasileiro profissionais que “unam conhecimento técnico, tático e emocional à capacidade logística, administrativa e de planejamento”. Gustavo na certa assinaria embaixo. 

Ao longo de seus muitos empregos como treinador e orientador metodológico de clubes do segundo escalão do futebol no país, ele foi registrando ideias enquanto observava falhas de gestores que seguiam uma cartilha prazo-curtista, não dando tempo para a implantação e a introjeção de uma cultura entre os jogadores. 

Na pandemia, comecei a pesquisar sobre gestão do futebol, e no Vila Nova tive muitas oportunidades de falar com os diretores. Eu anotei muita coisa. Me incomodava ver um time centenário com a Ponte Preta colocar menos público em seus jogos de série A do que times da Copa Pioneer [campeonato de futebol amador]”

Demissões de departamentos técnicos inteiros e descontinuidade de programas eram, e ainda são, mato no futebol. “Todos os clubes, independentes do trabalho que tu faz, quando troca a gestão, troca todo mundo. Não faz sentido”, afirma Gustavo. Outro erro, primário na sua visão, é a separação entre as estruturas dos times profissionais e suas bases. 

Procurando driblar esses problemas e equívocos crônicos, o Laguna encarna um exercício de utopia em vários níveis: administrativo, sanitário, comunitário, político, estético – como atesta a invulgar camisa rosa do uniforme – e até de natureza existencial. Pelo menos para quem insiste em identificar o futebol brasileiro com o tal jogo bonito.

 

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