Na manhã de 7 de dezembro do ano passado, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu provou, pela primeira vez na vida, uma carne produzida em laboratório. “Como se diz? Deliciosa e compassiva”, disse ele, referindo-se ao fato de que o alimento, para estar naquele prato, não requereu abate nem dano a nenhum animal.
Ele estava na sede da empresa Aleph Farms, startup que nasceu na Faculdade de Engenharia Biomédica do notório Instituto de Tecnologia de Israel, o Technion, e desenvolveu plataformas, batizadas de BioFarms, para a produção da carne cultivada a partir de células de animais.
No processo, células de alta qualidade são obtidas do gado, sem que seja necessário abate ou qualquer dano ao animal, para depois serem cultivadas fora do corpo dele. O ambiente controlado do laboratório garante a segurança do produto, sem que o uso de antibióticos seja necessário.
E é esta a tecnologia que a BRF anunciou na semana passada que vai trazer para o Brasil – e que deve chegar ao mercado já em 2024.
O codesenvolvimento e a produção da carne cultivada servem ao planejamento estratégico da gigante de alimentos brasileira, que espera registrar receitas superiores a R$ 100 bilhões até 2030 com produtos que tenham destaque na revolução alimentar.
Mas, mais do que isso, a parceria reforça os compromissos de ESG (relacionados às práticas ambientais, sociais e de governança) e também de inovação da companhia. A carne cultivada, afinal, é muito mais sustentável e usa menos recursos naturais, além de evitar o desmatamento.
Na pecuária tradicional, por exemplo, o abate leva de três a quatro anos – consumindo recursos como terra e água. Na produção em laboratório, apenas quatro semanas. Para cada 1 quilo de carne bovina, em média gastam-se 15 mil litros de água. Para a carne cultivada esse volume é 70% menor. Além disso, ela evita desmatamento e emissão de gases.
“Só para dar um exemplo, o consumo de terra na tecnologia de carne cultivada é 98% inferior”, afirma Sérgio Pinto, diretor de Inovação da BRF, estrutura sob a qual funciona o BrfHub, que faz conexão com o ecossistema de inovação.
Nesta entrevista, Sérgio conta sobre como a parceria com a Aleph Farms aconteceu, sobre os planos da companhia e sobre como a inovação é o motor que vai fazer a BRF alcançar seus planos de expansão, sustentabilidade e segurança alimentar.
Por que a BRF decidiu produzir carne cultivada?
São três grandes fatores. Um é que notamos há algum tempo uma demanda crescente por proteínas, por alimentos, no mundo, que tem nos impactado muito, e ainda mais fortemente agora na pandemia.
Acompanhamos, também, uma evolução tecnológica que nos permite ter modelos de produção que causem menos agressão ou que exauram menos o meio ambiente – , e aí eu falo de consumo de água, de energia, de terra.
Só para dar um exemplo, o consumo de terra na tecnologia de carne cultivada é 98% inferior. Essa parceria garante, assim, práticas mais sustentáveis e que atendem aos nossos compromissos ESG. E por fim, porque a BRF não é somente uma empresa de proteínas, ela é uma empresa de alimentos. E se existe a possibilidade de entregarmos um alimento superior para o consumidor, vamos fazer isso.
Em vez de desenvolver internamente a solução, a BRF procurou uma parceria no ecossistema de inovação. Por quê?
Porque a gente acredita que esse é o modelo correto de fazer isso. A BRF não acredita nesse modelo de inovação verticalizado, no qual a companhia é a responsável por tudo.
A BRF já tem uma cadeia extremamente conectada, mas o mundo tem mudado e se transformado de forma muito, muito agilizada.
Então não importa quantas tecnologias, quantos bons talentos você tenha dentro de casa, tem muito mais lá fora. As conexões, seja pelo BrfHub, que a conecta com startups e com o setor acadêmico, ou essa parceria com a Aleph Farms, mostram como a gente tem que trabalhar num modelo mais colaborativo, num modelo mais associativo com cada uma das empresas ou entidades envolvidas.
A Aleph Farms e a BRF estão trocando tecnologia, trocando conhecimento, para o processo de desenvolvimento.
Ajudamos também no processo de conversa com o consumidor, no processo regulatório. O trabalho que fazemos nesse sentido é que cada área, cada empresa, consiga focar no que tem de melhor para entregar.
Como, entre cerca de 60 startups que estão nesse mercado no mundo, a BRF escolheu a Aleph Farms?
Para busca de parceria, fazemos um processo de análise dos perfis. E tínhamos algumas diretrizes muito claras. Por exemplo, não queríamos trabalhar com carne geneticamente modificada – e a Aleph Farms não trabalha com carne geneticamente modificada. Também não queríamos uma empresa que utilizasse soro fetal bovino, e a Aleph Farms não utiliza soro fetal bovino.
Além disso, o que congregou muito bem, é que tanto nós quanto a Aleph Farms compartilhamos da mesma visão e do espírito de sustentabilidade.
Essa sinergia em relação a práticas sustentáveis alinhadas a políticas ambientais avançadas foi também um dos principais motivos que nos levaram a optar pela Aleph Farms – e que levaram a Aleph Farms, também, a escolher a BRF. Sem contar que a Aleph é pioneira na produção de carne em laboratório e é referência no setor.
A parceria acabou de ser anunciada e está em fase inicial. O que essa fase inicial implica?
A diligência tecnológica acabou agora. Nela, entendemos o estágio de maturidade de todo o processo, todas as etapas de desenvolvimento de carne cultivada. Agora entramos em um processo regulatório, que toma tempo mesmo, no Brasil ou em outros países – ele está acontecendo até de uma forma rápida para padrões globais. Mas, ainda assim, acreditamos que ele leva ao menos um ano, um ano e meio.
Como a parceria foi construída? Pode contar um pouco de bastidor?
Tudo começou num mapeamento lá atrás, quando fizemos nosso roadmap tecnológico em 2015, e observamos que já existiam alguns estudos nesse sentido, mas estavam ainda muito restritos às universidades. A Aleph Farms, que brincamos que é uma veterana, porque está no mercado desde 2016, já chamava um pouco a atenção. Em 2019, eles tiveram um aporte financeiro da Cargill.
Mas eu diria que o turning point mesmo foi numa viagem que fizemos para conhecer todo o ecossistema de Israel. E ficamos maravilhados com a quantidade de possibilidades, tecnologias, empresas e boas pessoas.
E podíamos trabalhar e aproximar todas elas não somente da BRF, mas de todo o ecossistema agropecuário do Brasil. E nos vários fóruns, palestras, feiras e discussões dos quais participamos, também ficava latente a admiração que todo aquele grupo, aquele corpo tecnológico tinha pela própria Aleph Farms – isso num lugar em que se você transpira tecnologia, conhecimento.
A Aleph Farms era sempre a cereja do bolo desses eventos.
Além disso, ela nasce de uma spin-off do Technion [Instituto de Tecnologia de Israel], que é um dos principais institutos acadêmicos do mundo. Então lá realmente ficamos bastante interessados.
É preciso agora adaptar a tecnologia de carne produzida em laboratório para agradar ao gosto do brasileiro. O que o brasileiro procura e como esse mercado vem se transformando nos últimos anos?
Estamos estudando ainda a questão da adaptação ao gosto do brasileiro. Mas acreditamos que, como todo alimento, ele tem suas particularidades, não somente em relação ao país, mas em relação às regiões de nosso país.. Sempre uso o exemplo do próprio feijão: o que o carioca come é diferente do feijão do paulista, que é diferente do feijão do baiano, que é quase como uma sopa. Entendemos então que o produto deveria ter alguma adaptação do perfil de corte.
Agora, a carne cultivada vai ter a mesma aparência, a mesma estrutura inicialmente, o mesmo perfil nutricional.
A ideia não é a gente ter uma carne temperada, mas sim uma carne que vá atender aos interesses do brasileiro. Por exemplo: o brasileiro, historicamente, sempre gostou muito de picanha, um corte que não é muito valorizado no exterior. Mas agora o brasileiro começa a se interessar pelos cortes dianteiros, que o mercado externo sempre apreciou muito. Essas variações sobre o que produzir também estarão contempladas nessa tecnologia.
O plano é estar no mercado já em 2024. Quais são os próximos passos?
Temos, além daqueles marcos regulatórios importantes, que trabalhar evoluções na tecnologia importantes, como toda parte de multiplicação celular, feita nos biorreatores. E temos também um processo de construção das BioFarms no Brasil, que estamos estudando bastante e rapidamente. Além disso, tem o processo também de compreensão do consumidor, de entendimento: como falar sobre o produto, sua aceitação ou não, em quais geografias. Só depois disso entra a fase de entrada no mercado.
Quais os maiores desafios na produção de carne cultivada?
Os biorreatores ainda não estão 100% adaptados para produção de carne celular. Historicamente, eles foram muito voltados para reprodução de órgãos humanos, então tem esse trabalho tecnológico. Há também a dificuldade de selecionarmos células que são estáveis, uniformes o suficiente, e as estruturas nas quais se faz toda a perfusão celular, mais adequada ao consumo.
Existe ainda a necessidade da mimetização de um processo metabólico.
Pense que o sabor de uma carne tem relação com a ração que o boi comeu, os eventos externos que ele teve no campo, se o campo tinha mais ou menos aclives ou declives. E nós temos que mimetizar esse processo metabólico em laboratório. Ainda hoje ele consome muita energia. E sabemos que todos esses marcos regulatórios ainda são muito incipientes.
Entrar nesse mercado faz parte de um plano maior de expansão da BRF, de produzir alimentos com maior valor agregado e de reduzir o impacto ambiental. Como a inovação ajuda nisso?
A inovação é motor fundamental do crescimento, da visão 2030, que foi apresentada pela companhia em dezembro de 2020. Temos, como uma das avenidas de crescimento e desenvolvimento, sermos líderes, pioneiros, vanguardistas em todas as proteínas alternativas. E de fato acreditamos nisso.
Acreditamos que todas as proteínas – as vegetais, as cultivadas e as tradicionais – vão coexistir.
Acreditamos que vai funcionar como um processo de escolha de gôndola: cada consumidor vai atrás do benefício que mais lhe convém. Mas a gente sabe que existe um trabalho de transformação muito importante na forma como manejamos nosso ecossistema de produção agropecuário. E temos que evoluir nas três frentes.
Você já disse que proteínas alternativas e proteínas cultivadas devem coexistir. Como exatamente a BRF enxerga o mercado futuro de alimentos?
Acreditamos que o mercado de alimentos é o próximo mercado a sofrer disrupção. Isso aconteceu em todos os mercados: em hospitalidade, em transporte, no setor financeiro, está acontecendo muito forte na saúde.
Agora, também, vemos uma série de movimentações em cima de food e a acreditamos que vai haver uma grande transformação na forma como os processos produtivos são trabalhados.
Isso para garantir mais sustentabilidade para todo o ecossistema e melhor nutrição para os consumidores. Mas também temos que garantir uma diminuição de perdas de alimentos. Temos que garantir segurança alimentar. Existe, portanto, o universo de segurança e de acesso, ao mesmo tempo em que vai haver um mundo de transformação.
Não vai ser tanto sobre os hábitos, os rituais culinários, porque esses são processos longevos, que representam a cultura, a história de um país, de uma região.
Vai ser, sim, sobre a forma como a gente produz esses alimentos, como garantimos que eles vão ter a melhor entrega nutricional, a melhor segurança, o menor consumo de recursos – e que isso tudo aconteça sem desperdício ao longo da cadeia. Acreditamos que esses vão ser os grandes pilares de transformação da indústria.
No evento virtual de três dias – que contou com painéis, mesas-redondas, workshop e exposição virtual de foodtechs –, executivos da BRF explicaram, ao lado de outros grandes nomes do mercado, como a inovação está transformando a indústria de alimentos.
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