Natália Garcia era repórter na Editora Abril, trabalhava no site da revista Casa Claudia, em 2008, quando comprou uma bicicleta dobrável. Formada em jornalismo dois anos antes, pela Cásper Líbero, não tinha especial interesse por mobilidade urbana. Tudo que queria era chegar mais rápido ao trabalho. De carro, no trânsito de São Paulo, demorava muito.
Natália não tinha a menor ideia de como sua vida e sua visão de mundo mudariam a partir da experiência com a magrela. “De cara, comecei a perceber que as melhores histórias estavam na rua, por onde eu passava. Os percursos, para mim, deixaram de ser meros ‘caminhos’ para virarem ‘lugares’”, diz.
No final de 2009, de férias, foi a Bogotá. Queria pedalar e a capital da Colômbia era o destino mais barato da América Latina. “Ainda não tinha ouvido falar de Enrique Peñalosa e das transformações urbanísticas que ele havia trazido à Bogotá como prefeito da cidade, entre 1998 e 2001”, diz Natália. Naquela viagem nasceu o desejo que viria a se tornar o projeto Cidade para Pessoas e que transformaria Natália, que completa 31 anos em 2014, numa das vozes mais respeitadas no Brasil quando se fala em transformar nossas cidades em lugares melhores para viver.
Na volta das férias, Natália pediu demissão e passou um ano gestando o Cidade para Pessoas, que se propunha a explorar histórias de transformação nas cidades e de como as pessoas se relacionam com o lugar onde moram. Nesse período, sobreviveu com frilas, como o projeto Isso Não é Normal, publicado no Estadão, que buscava analisar o impacto ambiental das mudanças climáticas nas cidades.
Por essa época entrevistou o arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl, que cunhou em Kopenhagen, ainda nos anos 60, a ideia de que as cidades deveriam ser para as pessoas – numa época em que as discussões urbanísticas giravam em torno de abrir mais avenidas e erigir mais arranha-céus.
O Cidade para Pessoas ia ganhando corpo. “Eu decidi viajar o mundo, com foco na Europa, seguindo as coordenadas de Jan Gehl. Listei 20 cidades. Depois depurei essa lista para 12, com a ajuda de urbanistas brasileiros”, diz Natália.
Num frila para a revista Galileu, Natália descobriu o que era crowdfunding – outro conceito de que ela nunca tinha ouvido falar. Aí descobriu o Catarse, que estava prestes a entrar no ar, inaugurando um mecanismo digital de financiamento coletivo no Brasil. Natália conheceu Diego Reeberg e Luis Otávio Ribeiro, fundadores do Catarse. E em um mês inscreveu lá o projeto, já com o nome Cidade para Pessoas – tomando o cuidado de pedir a Jan Gehl autorização para o uso do termo.
Natália pediu 25 mil reais no Catarse para viajar um ano pelas 12 cidades selecionadas, morando um mês em cada uma delas, e aprendendo como as pessoas podem viver melhor numa metrópole. Em dois dias o projeto já tinha 2 mil reais arrecadados. E atingiu a meta dentro dos 60 dias de prazo estipulados no Catarse para as doações. As entregas do projeto eram a publicação de reportagens no próprio site Cidade para Pessoas e também no site O Eco, uma agência de notícias ambientais, que doou dinheiro. O movimento Rede Nossa São Paulo e a empresa de consultoria de inovação Mandalah, outros doadores, também foram abastecidos por informações colhidas por Natália.
A entrega final é um livro que Natália pretende concluir em novembro desse ano. “Era para ser uma narrativa de viagem, mas acabei optando por um modelo diferente: um convite ao leitor para que ele explore sua própria cidade. O livro será um guia de passeios urbanos definidos a partir de um problema que ajude o leitor a redescobrir a cidade e sua relação com ela”, diz Natália.
A viagem de Natália aconteceu de maio a outubro de 2011. O site Cidade para Pessoas estreou em junho daquele ano. E o dinheiro acabou bem mais cedo do que ela imaginava. Natália voltou ao Brasil e relançou o projeto no Catarse. Pediu mais 15 mil reais – e arrecadou 20 mil. Entre agosto e dezembro de 2012, viajou de novo e completou o projeto. Ao todo, além do dinheiro de crowdfunding, Natália estima ter investido em torno de 40 mil reais do próprio bolso.
Há uma entrega prometida no projeto que Natália não conseguiu realizar: um pacote com desenhos das cidades visitadas realizados por artistas. “Meu conselho para quem colocar projetos em crowdfunding – não estabeleça recompensas extras ao seu projeto porque elas acabam se transformando num projeto à parte, para o qual faltam recursos de tempo e financeiros”, diz Natália.
O Cidade para Pessoas virou notícia em 2011. “Nunca fiz nenhum esforço para isso. Mas circulou uma versão meio romantizada do que eu estava fazendo, uma pauta do tipo ‘jornalista larga tudo para viajar pelo mundo estudando as cidades’ e isso acabou tornando o projeto bem conhecido”, diz Natália.
Desde a primeira viagem, em 2011, Natália deixou de fazer frilas que estivessem fora do escopo temático do Cidade para Pessoas. Aí começou o processo de construção da sua condição de viver integralmente do projeto. Natália tem um blog na revista Superinteressante, que inicialmente era publicado no Planeta Sustentável, projeto da Editora Abril, pelo qual recebe um fixo mensal. Além disso, Natália dá em média quatro palestras por mês. Ela é agenciada pela empresa The Mob, de Carla Mayumi, que também é sócia da Box 1824. Uma palestra de Natália custa 8 mil reais. E ela sempre customiza sua apresentação de acordo com o problema apresentado pelo contratante. “No final de 2011, fiz uma palestra no TEDx Jovem que me rendeu muitos convites para outras palestras”, diz Natália. “Desde 2012 todas essas palestras são pagas”.
Hoje a produção de conteúdo representa 10% dos ganhos de Natália. Além do blog na Super, ela faz um comentário diário na rádio CBN Paraná. Outros 40% da sua receita vem das palestras. E metade do seu faturamento vem das suas atividades como consultora. Nesse momento, Natália está com cinco projetos em curso nessa área. Três são sigilosos e os outros dois são um estudo sobre mobilidade urbana para a Fiat (em parceria com a The Factory, que publica o Draft) e o projeto O Futuro da Minha Cidade, da Câmara Brasileira da Indústria da Construção.
Natália nunca prospectou novos clientes. Uma oportunidade foi levando a outra. E os clientes vieram pelo networking e pelo resultado orgânico dos trabalhos que ela ia desenvolvendo. Mas houve um momento crítico nessa jornada: o período entre as duas viagens que realizou, do fim de 2011 a meados de 2012. Natália estava sem dinheiro e chegou a ficar com saldo negativo de mais de 10 mil reais na conta pessoal. Em nenhum momento, no entanto, ela esmoreceu. “Foi ruim. Mas era aquilo que eu queria fazer. Eu sabia que tinha que fazê-lo. O dinheiro sempre foi um meio, nunca foi um fim, no Cidade para Pessoas. Eu questionava o ‘como’, nunca questionei ‘o quê’”, diz Natália.
“Estamos usando as cidades utilitariamente – e não com a amplitude que poderíamos. Assim as cidades estão deixando de expressar a personalidade de quem vive nelas – porque nós não estamos lá.”
Até hoje, com pouco mais de três anos de existência, Natália e Cidade para Pessoas são uma coisa só. Ao olhar para o futuro, ela vê a possibilidade de crescer por meio de um modelo como o do TED, de licenciamento da sua marca para que outras pessoas também se dediquem a estudar as cidades. “Ainda preciso modelar isso. A finalização do livro está me ajudando nesse processo de pensar o formato e a metodologia do Cidade para Pessoas que podem ser replicáveis. O que sei até agora é que estou mais interessada na relação espacial, física, das pessoas com as cidades, na identificação do próprio DNA das cidades, e na criação de soluções específicas e concretas para questões locais, do que propriamente com o estabelecimento de respostas universais, que, na real, não existem”, diz Natália.
Em termos de evolução do próprio trabalho do Cidade para Pessoas, Natália diz que está interessada em expandir o seu escopo atual, que é pesquisar, categorizar e sistematizar ideias e processos relativos às cidades, para um novo patamar: o da prototipação. “Estou interessada em testar as ideias na prática, em pequena escala. Um bom norte para todo empreendedor é trabalhar com projetos que tenham um tamanho seguro para falhar”, diz.
O primeiro passo em direção a essa nova seara acontecerá entre 8 e 12 de setembro, no evento CoCidade, com patrocínio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo: a Oficina Cidade para Pessoas, que será ministrada na Escola São Paulo, de modo gratuito, para 16 pessoas (você pode se inscrever aqui). “A oficina é inspirada no Mesa&Cadeira, de Bárbara Soalheiro. A ideia é que a gente saia para explorar a cidade em volta. Vou convidar os participantes a espetar ‘agulhas de acupuntura’ nos problemas que eles encontrarem nesse entorno. Cada dia do workshop contará com a presença de um especialista diferente. Depois escolheremos um dos problemas identificados e prototiparemos uma solução para ele. E esse protótipo irá depois para o Catarse, onde queremos ter um canal para o Cidade para Pessoas. A ideia é que, por meio de crowdfunding, esse projeto vire uma contribuição concreta à cidade”, diz Natália.
Natália tem um olhar agudo e é muito articulada em sua fala. Tem colocado sua curiosidade e sua clareza mental para trabalhar pelo seu negócio – que é melhorar as condições de vida nas cidades. Essa é a sua causa, o propósito que ela elegeu desde 2011 para guiar e dar sentido a sua vida e a sua carreira – duas coisas difíceis de separar. “A gente é muito mental, a nossa cultura é muito imagética, e a minha geração ainda tem a virtualidade, a coisa digital. Então estamos nos tornando analfabetos analógicos. Sem a experiência real, estamos perdendo a nossa inteligência física”, diz Natália, no que poderia ser uma síntese da cultura maker e do seu chamado por fazer, por realizar, por colocar a mão na massa.
“A gente estuda o hábitat de várias espécies. Mas pesquisa pouco sobre onde vive a nossa própria espécie – o Homo sapiens. Somos bichos que andam. Essa é a nossa particularidade – caminhar, em vez de correr, de voar ou nadar. E somos bichos que vivem em cidades. Nós ficamos menos humanos quando deixamos de caminhar. Que é o que tem acontecido em várias cidades. Quem tem cachorro sabe: se ele não passeia, deixa de saber se comportar no espaço público. Conosco é a mesma coisa. Nós desaprendemos a conviver na medida em que deixamos de passear”, diz Natália. “Estamos usando as cidades utilitariamente – e não com a amplitude que poderíamos. Assim as cidades estão deixando de expressar a personalidade de quem vive nelas – porque nós não estamos lá”.
Natália me diz tudo isso com brilho no olho. E com a força, em sua voz doce, de quem acredita e de quem está disposto a realizar. Sobre o colo, numa tipoia, repousa seu braço esquerdo – ela distendeu o ligamento do polegar numa freada brusca do ônibus que a trazia para a entrevista. Uma pequena prova de que as nossas cidades precisam de Natália, porque elas ainda não são exatamente para pessoas.
Bicicletas, scooters e motos elétricas já podem ser carregadas em tomadas comuns, têm mais tempo de autonomia, custam cerca de R$ 0,30 o quilômetro rodado, e aparecem cada vez mais nas ruas brasileiras.
De acordo com Itamar Marques, coordenador da Comissão de Mobilidade Urbana do CREA-RJ, ao liberar as catracas, as vias deixam de ser usadas pelos carros individuais, diminuindo as emissões de gases poluentes.
A insegurança, infelizmente, é companheira constante na vida de uma mulher. Saiba como Gabryella Corrêa transformou uma situação de assédio em impulso para empreender a Lady Driver, app que conecta passageiras e motoristas.