Há quem invista em especializações. Eu invisto no Burning Man. Para quem não conhece, o evento nasceu em 1986 em Baker Beach, em San Francisco (EUA), mas em 1990 se mudou definitivamente para o deserto de Black Rock, em Nevada.
Considerado um dos maiores eventos de contracultura autossustentável do planeta, ele reúne anualmente 70 mil pessoas que ajudam a construir e desmontar toda a estrutura do festival, além de promover interações inesquecíveis.
Mais do que a curtição de estar entre os maiores artistas do mundo, ser um burner – o que me aconteceu quatro vezes – trouxe valiosas lições de vida, inclusive de liderança
A primeira vez que ouvi falar do Burning Man foi em 2007, quando um antigo chefe, recém-chegado dos EUA, me mostrou fotos e partilhou sua experiência. Tive a sensação de que aquilo era uma espécie de Woodstock: um espaço de cultura e experimentalismo, onde era possível viver sem dinheiro.
Pensei, assim que o ouvi, que mesmo parecendo impossível, enfim, alguém havia conseguido criar um universo paralelo – e tudo o que eu desejava, a partir de então, era fazer parte daquilo. Isso aconteceu apenas em 2013.
Há que se deixar claro: há dez princípios que as pessoas devem seguir para interagir umas com as outras enquanto estiverem na cidade e que são grandes ensinamentos, entre eles a liberdade de ser você mesmo (radical self expression) e não deixar qualquer rastro, além de ser responsável mental e fisicamente por si, confiando nos próprios recursos internos; e substituir o consumo por experiências participativas.
Ser um burner é decidir por um estilo de vida mais livre e colaborativo e muitos participantes já adotaram isso para a vida. Mas, até então, tudo isso ainda era uma grande novidade para mim.
Entre 2013 e 2017, frequentei o evento apenas como um observador. Minha relação com a cidade era como a de um turista, não a de um cidadão.
Em 2018, entendi que a qualidade das relações que se constroem nos burns (cada edição do evento) é o que quero como o padrão para a minha vida e não algo para se viver por apenas sete dias.
Por isso, minha contribuição à comunidade burner não poderia ficar restrita ao pouco tempo que “sobrava” entre minhas atividades da Perestroika.
Foi quando tive a visão: eu preciso encarar o Burning Man como um curso, como um MBA, como uma especialização
É fundamental reservar um tempo na agenda, estudar, fazer os trabalhos em grupo. E investir dinheiro nessa educação alternativa, na qual eu mesmo guiaria minha jornada de aprendizagem.
A partir de 2018, passei a liderar a operação de um acampamento (nas vizinhanças de Black Rock City) que todos os anos recebe cerca de 120 pessoas. O Camp Amazone existe desde 2015 e foi iniciado por meu grande amigo Daniel Strickland, que é o artista responsável pelas três primeiras instalações de arte brasileira por lá.
Só posso dizer que articular 120 pessoas, de nove países, e cuidar da montagem de duas obras de arte, mais toda a estrutura de cozinha, chuveiro, iluminação e alimentação para todas essas pessoas no meio de um dos lugares mais inóspitos do mundo (com tempestades de areia, temperaturas que variam dos 40º aos -5º em apenas um dia), sem estrada, sem internet, sem celular, sem wifi, sem eletricidade e sem dinheiro (trocas comerciais não acontecem dentro da cidade) me trouxe muitos aprendizados que catapultaram a minha performance como líder. E ainda dizem que nada floresce no deserto.
Se não fosse pela pandemia, o Burning Man 2020 estaria acontecendo essa semana. E eu estaria por lá, preenchendo cadernos e mais cadernos metafóricos das lições mais empoeiradas, sonhadoras e psicodélicas. Esta edição, no entanto, acontecerá no ambiente virtual, entre 30 de agosto e 7 de setembro.
Em reverência a tudo que a cultura burner me proporcionou, divido alguns dos meus aprendizados com exclusividade aqui no Draft. Confesso que estou louco pela “volta às aulas”.
1) CRIAR EXPECTATIVAS É LIDAR COM FRUSTRAÇÕES
Saí frustrado da minha primeira ida ao Burning Man. Fui com uma galera de artistas, que sabia dormir amontoado e se virar com absolutamente tudo – e eu nunca tinha feito nada parecido, muito menos ir para um lugar em que é preciso levar água até para tomar banho… e trazê-la de volta!
Além disso, tem tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo que a sensação recorrente é a de que se está perdendo algo importante, o que é muito angustiante.
Claro que foi uma experiência incrível, mas eu estava tão focado nas expectativas criadas que não curti. Como consequência, notei que a insatisfação era um padrão e precisei levar isso para a terapia.
2) O MOVIMENTO GERA ENGAJAMENTO
Em 2017, além de já ter uma noção de localização e dos cuidados necessários para sobreviver no deserto, tive a oportunidade de ir ao evento com um grupo muito mais estruturado, o que fez toda a diferença. Um “conforto” que precisaria ser compensado por pelo menos um turno na cozinha e ajuda a desmontar o evento.
Por incrível que pareça, essa experiência de ficar na cozinha, descascando abacaxis e cebolas, num espaço em que todo mundo se respeitava e se divertia, foi tão incrível que acabei trabalhando em três períodos, ao invés de um só
No final do evento, a conexão com o grupo ficou tão forte que, mesmo com o trabalho braçal, o sentimento geral era de pertencimento.
3) IMPREVISTOS VÃO ACONTECER E VOCÊ SABERÁ COMO DAR CONTA DELES
Encarei uma nova ida para o Burning Man em 2018, mas desta vez fiz parte do grupo de organização.
O episódio mais marcante foi perceber que o número de bicicletas alugadas pelos membros do meu acampamento foi maior que a quantidade disponível e me senti responsável por essa confusão, embora o meu papel fosse apenas o de checar quem estava ou não inscrito.
Para resolver a questão, decidi ir com uma amiga até outra cidade, que ficava a uma hora e meia do evento, para alugar 14 bicicletas. Essa Jornada do Herói, que teria durado, no máximo, três horas, acabou levando 16 horas para ser resolvida
E foi bem sucedida porque mantive a calma para lidar com uma série de imprevistos envolvendo quatro viaturas da polícia, dois guinchos, uma pick-up inteiramente arranhada e um caminhão trancado numa vala.
Imagina o boost nas minhas skills de negociação.
4) SEJA VOCÊ UMA INSPIRAÇÃO PARA AS PESSOAS
Em 2019, fui ao evento como organizador do acampamento. O maior desafio que enfrentei foi engajar as pessoas a colaborarem com os inúmeros serviços necessários para que tudo ficasse bem dentro do acampamento.
Não tive escolha a não ser decidir que se algo tinha de ser feito, eu o faria — mesmo sozinho. Quem chegou para ajudar admitiu que o fez inspirados por me ver trabalhando.
5) O FUTURO É AUTOSSUFICIENTE
Também no evento do ano passado, fui uma das 35 pessoas que participaram de uma reunião com 20 prefeitos norte-americanos interessados em aprender as melhores práticas do Burning Man, entre elas zero produção de lixo em eventos e alta eficiência na regulamentação, fiscalização e segurança.
No futuro, a ideia é que essas condutas que já são muito bem estabelecidas no Burning Man sejam multiplicadas pelo mundo.
BÔNUS: TALENTO NÃO É MOEDA, É UM PRESENTE!
No Burning Man, aprendi que se eu tenho um talento posso oferecê-lo como presente, e não como troca por algo que me interesse. E esse é um grande aprendizado: propósito é algo que você faz de graça, sem pensar na recompensa.
Palavras como empreendedorismo, cultura maker, pensamento beta, propósito e colaboração — termos cada vez mais apontados como tendências — são vividos na essência durante todo o evento porque diz respeito à sobrevivência dos participantes
Sem alguém disponível para desenvolver uma sombra 3D para 40 pessoas, a chance de que elas não resistam ao calor do deserto é real. O seu talento, que seja descascar cebolas, faz toda a diferença para que tudo aconteça da melhor forma. E é exatamente o que acontece com a vida.
Felipe Anghinoni é professor, sócio-fundador da Perestroika e burner (para saber mais ou trocar ideias sobre o Burning Man, caminhões na vala e um monte de outras coisas, me add no insta: @fanghinoni).
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