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Com uma fábrica robotizada na maior floresta tropical do planeta, ela preserva a natureza e exporta ingredientes para dezenas de países

Maisa Infante - 22 out 2024
Fernanda Stefani, sócia da 100% Amazonia.
Maisa Infante - 22 out 2024
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Aos 16 anos, Fernanda Stefani estava assistindo ao Jornal Nacional com a mãe e ouviu, pela primeira vez, sobre biopirataria. Hoje, aos 57, ela ainda se lembra daquele momento e de ter pensado que estrangeiros vinham buscar ativos dentro da floresta enquanto os brasileiros não faziam nada. 

Naquela época, Fernanda vivia em São Paulo e sequer imaginava que a Amazônia faria parte tão intensamente da sua vida – pessoal e profissional. 

Isso mudou quando, por causa do trabalho, ela se transferiu para Belém, em 2006. Três anos depois, Fernanda fundou a 100% Amazonia, uma empresa de impacto socioambiental com certificação do Sistema B que transforma ativos amazônicos produzidos por comunidades tradicionais em ingredientes usados, principalmente, pela indústria alimentícia e de cosméticos. 

“Hoje, fala-se pouquíssimo em ética e negócios. Infelizmente temos um capitalismo horroroso, que é o capitalismo selvagem. Claro que a gente tem uma empresa para sobreviver; mas nesta sobrevivência, que é a geração de lucro, a gente consegue não só dar emprego, mas um emprego cheio de significado – que faça você ser uma pessoa melhor e ter outro olhar sobre a vida. Afinal, não existem negócios: existem pessoas que fazem negócios” 

Economista com expertise em inteligência comercial, Fernanda teve seu primeiro contato com a cadeia do açaí a partir da demanda de um cliente da empresa de trade em que trabalhava em São Paulo. O ano era 2004, quando ainda não havia uma loja de açaí em cada esquina na cidade.

Aquele trabalho a levou diversas vezes ao Pará, o maior produtor de açaí do mundo. Numa dessas viagens, conheceu executivos da Monavie (empresa de marketing multinível que encerrou as atividades), onde trabalhou por quatro anos alocada em Belém, na área de compras. 

“Tive a oportunidade de andar na Amazônia toda e ver o que era bacana e [também] ‘o que se falava mas não se fazia’, o famoso greenwashing. Aquilo me levantou uma pulga e comecei a ver que dava para fazer diferente”, diz Fernanda. “A 100% Amazonia nasce desse incômodo – de quatro anos andando na Amazônia, vendo oportunidades não apenas para açaí, mas para outros ingredientes.”

QUANDO DOIS CLIENTES GRANDES DECIDIRAM CORTAR A EMPRESA DE UMA NEGOCIAÇÃO, ELA RESOLVEU AMPLIAR O FOCO PARA ALÉM DO AÇAÍ

Quando começou a 100% em 2009, junto com a sócia Joziane Alves, o foco delas estava mesmo no açaí, de longe o produto mais conhecido do Pará. Com o tempo, o escopo foi se ampliando, na mesma medida do entendimento sobre a importância da biodiversidade para um negócio que quer ajudar a floresta a ficar de pé.

Teve até um percalço interno que foi um divisor de águas para que a diversidade se tornasse ainda mais importante. Em 2017, quando a 100% era uma comercial exportadora, dois clientes grandes acabaram negociando diretamente com os compradores – e a 100% Amazonia perdeu 70% do negócio. 

“Nós já estávamos perdendo um pouco da nossa visão inicial de fazer muitos produtos só com açaí. Quase 85% da nossa venda era de açaí. Então, foi quase que uma correção de rumo, porque a gente duplicou o que fazia em outros ativos e produtos, como óleos e manteigas” 

Hoje, a 100% Amazonia tem um portfólio de 27 espécies amazônicas, como cupuaçu, guaraná, taperebá e buriti, entre outros. Esses produtos são transformados em polpas, óleos e manteigas em uma fábrica própria, inaugurada em 2022, e exportados para mais de 60 países. 

Os ativos são comprados de 38 comunidades da Amazônia, incluindo grupos quilombolas e indígenas, que ajudam a manter a floresta de pé e a fazer acontecer a chamada bioeconomia. 

UM DESAFIO PARA GANHAR ESCALA: O TEMPO DA FLORESTA É DIFERENTE DO TEMPO DAS PESSOAS

Existem dois pilares que norteiam a compra desses ativos. Um deles é a criação de ingredientes a partir de recursos da floresta que possam ser exportados em escala para empresas que entendam o valor da floresta em pé. O outro é o benefício desses ativos para a saúde. 

“Não é só comprar qualquer coisa para manter a floresta em pé, mas comprar produtos que são super frutas, ou super alimentos ou super ativos da linha de cosmética que fazem bem para as pessoas”, afirma Fernanda. “Então, tem uma questão de saúde e funcionalidade, que também fomenta uma compra regular, constante e justa para as comunidades.”

A escala é uma questão importante porque o tempo da floresta é diferente do tempo das pessoas. Mas o trabalho de décadas junto com as comunidades já traz muito mais robustez para o negócio. Porém, muitas vezes, é preciso educar o comprador. 

“A gente não é uma Coca-Cola, mas conseguimos ter volumes de toneladas… Agora, quando temos clientes muito grandes, eu falo que é possível aumentar a produção, mas requer tempo. Então, no primeiro ano serão cinco toneladas; no outro, talvez, dez. Mas não dá pra ir de dez a cem de uma vez. A única maneira que a gente escala é quando vamos em regiões diferentes” 

Em 2017, a 100% Amazonia criou o Aryiamuru (que significa “a mãe da mãe” em tupi guarani), um programa de relacionamento que ajuda o pessoal de compras a se relacionar com as comunidades. 

Fernanda explica que o contato com os povos tradicionais, que incluem quilombolas e indígenas,  passa por uma consulta livre, prévia e informada, que é a maneira descrita na Convenção 169 da Organização Internacional de Trabalho (tratado internacional sobre os direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais no que diz respeito à sua organização e modo de vida). 

“Uma coisa é eu chegar numa comunidade dizendo: quero comprar o que vocês têm aqui… Não é bem assim. Você tem que chegar, perguntar, criar uns protocolos de consulta. A língua da Amazônia é diferente, própria, e nós, do Sudeste, temos que ouvir mais do que falar” 

É preciso, também, entender que esses interlocutores da 100% Amazonia cresceram dentro daqueles ecossistemas, sem contato com o meio urbano. “Estou falando de comunidades que, às vezes, nunca vieram a Belém.”

UMA FÁBRICA ROBOTIZADA NO MEIO DA AMAZÔNIA TRANSFORMA FRUTAS E SEMENTES EM POLPAS, ÓLEOS E MANTEIGAS

Em 2022, a 100% Amazonia inaugurou a Fábrica da Floresta, onde consegue processar e agregar valor aos ativos fornecidos pela comunidade. E assim a empresa deixa de ser apenas uma comercial exportadora para ser também produtora. 

A fábrica fica em Abaetetuba, a 220 quilômetros de Belém e a 13 km do porto, e foi construída de forma modular com contêineres que vieram do Rio Grande do Sul. É uma indústria 4.0, robotizada, que transforma as frutas, cascas e sementes em polpas, óleos e manteigas. 

A tecnologia embarcada faz com que a fábrica não precise de muitos funcionários, o que gera algumas críticas e questionamentos a um negócio que se propõe a ser um fomentador do emprego e da vida na região.

“O pessoal questiona como vamos dar emprego para as pessoas numa fábrica toda automatizada. Mas a gente entende que a maior valia dentro da floresta é a própria floresta, as pessoas que ficam lá. Eu prefiro pagar mais para que elas se mantenham ali com uma boa renda, um bom faturamento – que tenham uma boa perspectiva de vida morando na floresta” 

Fernanda enfatiza o papel do ser humano na proteção do meio ambiente. “Não é o homem que desmata? Pois é ele que guarda também. Então, se ele pode se tornar um guardião, ao invés de um desmatador, faz sentido que as pessoas fiquem ali. Porque quem desmata não é a comunidade, é sempre gente de fora.” 

Para colocar a estrutura de pé, a 100% Amazonia captou 6 milhões de reais no programa Crédito do Produtor do Banpará (Banco do Pará). 

Fernanda brinca que esse dinheiro veio da Vale, já que a mineradora precisa oferecer contrapartidas ao governo do Pará por causa da exploração de minério, a principal atividade do estado.

Hoje, a Fábrica da Floresta produz 2 mil toneladas de ingredientes por ano, mas tem capacidade para triplicar esse número. A localização no meio da floresta está alinhada ao propósito da empresa – e, claro, tem o seu custo. 

Fernanda calcula que essa operação custaria cerca de 35% menos se fosse feita em São Paulo. Porém, ela acha que vale muito a pena pagar o preço.

“Para desenvolver a região, a gente precisou fazer o que nunca ninguém fez, que é trazer uma fábrica toda robotizada para que esse recurso que sai da floresta custando 10 reais o quilo se torne um recurso que custa 100 reais o quilo. Precisamos agregar valor” 

Praticamente toda a produção da fábrica sai do Pará direto para outros países, que são os grandes compradores dos ingredientes amazônicos. Hoje, a 100% Amazonia exporta para cerca de 60 países. 

PARA FERNANDA, O MERCADO EXTERNO NÃO OLHA SOMENTE O PREÇO E SABE VALORIZAR OS ATRIBUTOS DA 100% AMAZONIA

Em volume, a indústria alimentícia é a maior compradora, mas a ideia é trabalhar a perspectiva de território, e não de “categoria de indústria”. 

Em outras palavras, se num território há dez tipos de produtos que podem ser extraídos, é isso que será feito. “É a biodiversidade como estratégia de negócios”, diz Fernanda. “Não somos uma empresa que trabalha só com açaí. Somos uma empresa que trabalha com a floresta.” 

Esse é um atributo valorizado ainda mais pelo mercado externo, afirma. Por isso, a exportação está no core da 100% Amazonia. 

“No mercado externo a qualidade é um fator preponderante. E temos clientes que valorizam o nosso trabalho de transformar os ingredientes que vêm das comunidades como uma oportunidade de mostrar, de fato, a sustentabilidade do meio ambiente, não só a sustentabilidade da empresa” 

Ela destaca o peso dessas questões na condução do negócio e a relevância de liderar a 100% Amazonia ao lado de Joziane: “Somos uma empresa que tem duas mulheres diretoras e trabalha muito alinhada com o impacto global na questão da diversidade, da inclusão de gênero, de oportunidades de renda, de melhorar. Tudo isso é bastante importante pra gente”. 

Fernanda explica que o mercado brasileiro tradicional, em contrapartida, é muito focado em preço, o que traz algumas distorções.

Muitas vezes, um produto que custa mais caro traz embutido o manejo responsável, a responsabilidade social com os produtores, o que inclui a remuneração deles – fatores desconsiderados por muitos compradores nacionais, principalmente os menores, cujas empresas não estão ainda alinhadas com as ODS.

“O mercado brasileiro não valida porque é majoritariamente feito de dinheiro e preço. É um mercado que, ao invés de olhar o trabalho que a gente faz, quer saber qual é o nosso preço. Não necessariamente eu sou mais cara, mas eu, como empresa de mulher, como uma empresa de menor porte, não tenho acesso a capital para ficar bancando” 

Apesar das dificuldades de se operar no meio da floresta e de ser ouvida em um mercado que ainda prioriza valores não ligados ao desenvolvimentos sustentável, Fernanda diz que se sente realizada fazendo o que faz. 

“É claro que somos um grãozinho no oceano. Mas acho que o que acabamos fazendo aqui é ser uma luz. E a luz pode ser mais fraca ou mais forte, mas ilumina. Então, a gente serve de muita inspiração.” 

Quando se fala em negócios, pouco se fala em responsabilidade corporativa, diz Fernanda. Que discorda frontalmente dessa visão:

“Pra mim, toda empresa tem um papel social. Sendo empreendedora, percebi a capacidade que temos de mudar, por exemplo, a maneira como contratamos e como ensinamos. E isso é muito valioso.”

 

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