Comida Sustentável – ou como organizar a vida, em comunidade, e fazer algo que alimente o corpo e a alma

Carol Ramos - 23 fev 2017O proposta do Comida Sustentável é que a vida também o seja (foto: Chris Cineviva).
O proposta do Comida Sustentável é que a vida também o seja (foto: Chris Cineviva).
Carol Ramos - 23 fev 2017
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A história do Comida Sustentável, de Débora Di Benedetti, 38, é mais sobre o processo que torna um modelo de vida sustentável possível e menos sobre as refeições veganas que ela prepara, energiza e entrega semanalmente a seus clientes na capital paulista. É sobre como é criar a rotina que se quer viver. Sobre como isso, às vezes, leva tempo. E tudo bem ser assim.

Débora mudou-se da cidade paulista de Jundiaí aos 19 para ir trabalhar em Fortaleza, no grupo de comunicação em que estava há quatro anos. Lá, formou-se em Comunicação Social pela Universidade de Fortaleza, em 2001, pouco tempo depois migrou para a área de marketing do Sistema Jangadeiro de Comunicação (na época, filiada do SBT). Em 2003, ela fez uma pós em Marketing e Serviços e, em 2005, mudou-se para Londres para realizar um sonho: estudar artes visuais. Lá, graduou-se em Cinema e Vídeo pela University of East London.

O marido, Samuel, ajuda na feitura dos pratos e faz as entregas do Comida Sustentável.

O sócio e amigo, Samuel, ajuda na feitura dos pratos e faz as entregas do Comida Sustentável.

Aos poucos, porém, ela começou a sentir que algo estava esquisito e não encaixava. Sensibilizada com a disparidade econômica de Londres, “uma cidade rica e cheia de problemas sociais”, Débora começou a olhar-se no espelho e a questionar os valores éticos da sua área de trabalho, o marketing. Isso a levaria a gestar um novo caminho profissional — que, no entanto, não se apresentou de cara.

Ela voltou ao Brasil em 2011, em meio a uma profunda crise existencial. Sem ter ainda clareza do que fazer da vida, decidiu usar o marketing e o cinema como ferramentas para falar de sustentabilidade nas grandes cidades. Como ia falar de agricultura urbana, segurança alimentar, permacultura e consumo responsável, ela escolheu o ato de comer como um tema norteador dessas narrativas. Nessa época, Débora também começou a participar do MUDA-SP (Movimento Urbano de Agroecologia), uma rede formada por organizações como o Slow Food, o Instituto Kairós e a Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. Foi quando as coisas começaram a mudar.

Cineasta, Débora fazia a captação de eventos, encontros e inúmeras entrevistas de ativistas e coletivos e consolidava em um canal no Youtube este grande acervo de conteúdo sobre veganismo, hortas urbanas, feiras de orgânicos e movimentos políticos que lutam por novas leis ambientais na capital paulista. O trabalho já não era o mesmo. Mergulhada na documentação das iniciativas verdes e sustentáveis na cidade, o conceito de sustentabilidade iria avançar em mais uma área de sua vida: a moradia.

VIVER NUMA TRIBO EM PLENA MEGALÓPOLE

Há cerca de dois anos, ela passou a viver em uma comunidade urbana que funciona em um casarão de 12 cômodos, no bairro do Pacaembu, um dos mais arborizados de São Paulo. Lá, a proposta é compartilhar espaço e decisões cotidianas. Ela fala a respeito da escolha do grupo, formado por terapeutas, professores de yoga e profissionais liberais, que à época estava definindo como seria a experiência de morar juntos:

“Não queríamos ir para uma ecovila no alto da montanha e viver meditando. Decidimos fazer esta experiência aqui em São Paulo, onde o caos está instaurado”

A comunidade chama-se Amorada Ahow (o nome, ela conta, é uma junção do ato de morar com amor com uma saudação tribos norte-americanas, o “ahow”). Débora diz que, para ela, a casa é um sítio urbano. “Quando vou para o jardim, esqueço que estou na cidade”. O quintal é grande, há uma área com horta, árvores e um gramado onde acontecem cursos, práticas de yoga e meditação, fogueiras e rodas de mantra.

Sustentabilidade na prática: na Amorada Ahow, no Pacaembu, 12 pessoas compartilham o espaço e o sonho de viver em comunidade.

Sustentabilidade na prática: na Amorada Ahow, no Pacaembu, 12 pessoas compartilham o espaço e o sonho de viver em comunidade.

Em 2015, Samuel e sua companheira, Magda Figueiredo, tiveram um filho. O pequeno Matias nasceu de parto natural, em um dos cômodos da casa. Débora conta que isso uniu ainda mais a “família”, que a cada dia tenta superar os desafios de fazer a gestão das coisas práticas de uma vida em comunidade. “Imagine doze universos tentando chegar junto! No começo era uma loucura, a cada reunião tínhamos idéias ótimas para mil projetos, mas nada saía nada do papel porque antes a gente precisava entender se comprava comida e papel higiênico toda semana ou uma vez por mês”, conta.

Em meio a esta mistura de euforia com meditação, Débora seguia cozinhando quase todos os dias na casa. Ela sempre pensava em fazer pães e geléias para vender. Não como negócio, mas como uma maneira de compartilhar com as pessoas a delícia de ter descoberto um novo jeito de viver.

CADÊ DINHEIRO PARA SUSTENTAR O SONHO?

Março de 2016. A falta de dinheiro bateu mais uma vez à sua porta e, sem pensar muito, um dia ela fez um post no Facebook colocando à venda a comidinha caseira que os amigos tanto gostavam. Uma amiga fez a primeira encomenda e Débora gastou 50 reais na compra dos ingredientes (veja bem, este é o “investimento inicial” de seu negócio). Daqueles 50 em ingredientes, ela faturou 250 em venda de refeições, “sem sentir que estava trabalhando”. Na mesma semana, ganhou mais 800 repetindo o esquema. Ela tomou um susto com aquilo:

“Como pode? Estudei um monte, rodei o mundo, e em uma semana cozinhando ganho mais dinheiro do que nos últimos meses filmando? Foi uma abertura de consciência”

Os pedidos começaram a crescer e assim — da necessidade de gerar receita e do desejo de seguir num propósito que alinhasse profissão às suas crenças pessoais — nascia o Comida Sustentável. “Depois de alguns meses, comecei a receber relatos de pessoas que se sentiram mais leves e dispostas com a minha comida e de outras que estavam afim de mudar hábitos, como diminuir o consumo de carne”, conta Débora. “Foi quando percebi que a alimentação serve mais ao mundo do que os filmes que eu estava fazendo.”

Débora desenvolve um cardápio semanal de cinco refeições veganas e 70% orgânicas, por 135 reais, mais a taxa de entrega. A divulgação acontece pelo Facebook, com certa antecedência, para que as encomendas possam ser feitas. São feijoadas, risotos, moquecas, quibes, paellas, burguers, quiches e outros pratos em que a criatividade e a diversidade de ingredientes suplantam a ausência de carne. Balanço dos primeiros oito meses: 40 receitas diferentes e quase 5 mil refeições.

A lasanha de abobrinha é um dos pratos do Comida Sustentável.

A lasanha de abobrinha é um dos pratos do Comida Sustentável.

Além das refeições, ela passou a cozinhar para eventos (casamentos, festas corporativas ou de amigos). E começou a fazer uma “Hamburgada Vegana” mensal na casa, em que servia opções do tradicional sanduíches recheados com feijão, grão de bico e ervilha. O sucesso, ela diz, foi imediato e atraiu novos clientes. A demanda de trabalho também aumentou e assim chegou um novo e importante colaborador, que viraria sócio, para o negócio.

Samuel também era um dos entusiastas da culinária na comunidade. Chileno, ele chegou ao Brasil em 1986 para trabalhar como paisagista. No início do Comida Sustentável, em 2016, ele estava iniciando um trabalho como terapeuta: “Eu via a Débora atolada de trabalho, virando noite, e resolvi ajudar”. Ele acabou assumindo a parte comercial e ficou surpreso com o retorno financeiro daquele novíssimo empreendimento. Ele conta:

“Tivemos um mês muito bom e, no mês seguinte, não vendemos quase nada. Foi um pouco assustador, mas impulsionou um estudo de aprofundamento sobre nosso trabalho”

Neste momento, quando perceberam que ali havia um business nascendo, os dois começaram a fazer o exercício prático de ressignificar suas experiências em empresas tradicionais. Era hora de testar, na prática, o tal “pensar fora da caixa”, buscar maneiras mais horizontais, colaborativas e solidárias de gerir o negócio. O Comida Sustentável não tem funcionários contratados e chama colaboradores ocasionais, conforme a produção demanda. “Queremos que o pagamento possa ser proporcional ao valor vendido na semana”, diz Débora, que deseja criar uma cooperativa.

O faturamento médio do Comida Sustentável é de 15.000 reais por mês. A previsão deles é triplicar este montante até o final do ano. Sobre este primeiro ano em atividade, ela fala: “Somos um empreendimento social muito jovem e por ora não faria nada diferente. Nosso grande desafio é continuar crescendo com pouco capital de giro, até porque não temos estratégia de acúmulo de lucros e sim de crescimento horizontal, para que possamos trazer mais colaboradores alinhados com o propósito da Nova Economia”.

É COMIDA. MAS NÃO É SÓ COMIDA

O Comida Sustentável não nasceu ligado ao movimento vegano nem voltado ao nicho das dietas. Débora e Samuel pensaram em algo mais simples: que as pessoas alimentassem o corpo e a alma sem causar danos ambientais. Para transformar isso em realidade, os dois, que praticam meditação e entoam mantras há anos, resolveram levar estas práticas para o ato de cozinhar. Inspirados pela alimentação energizada dos ashrams (locais de retiro espiritual comuns na Índia), eles abrem e fecham cada dia de trabalho na cozinha com mantras, afim de oferecer benefícios mais profundos para quem consome as refeições. Entre os colaboradores do preparo das refeições há um monge e uma monja das organizações espirituais Brahma Kumaris e Vrinda, respectivamente.

O dia de trabalho começa com a entrega dos ingredientes orgânicos da Cooperapas, colhidos às 5 da manhã em Parelheiros, no extremo sul de São Paulo. “Quando falta alguma coisa, compro no Instituto Chão ou na Feira da Água Branca”, conta Débora, que trabalha com sazonalidade e vira e mexe precisa elaborar pratos com ingredientes que nunca cozinhou. Ela também recebe pedidos de cardápios especiais para pessoas que tem alguma doença, como diabetes. “Desenvolver esses pratos e receber mensagens dessas pessoas, contando que se sentem melhor por causa da minha comida, é muito gratificante”, conta. “No geral, as pessoas ficam felizes por estarem colaborando com um ciclo que não gera tanto lixo e que valoriza o trabalho do agricultor e sua permanência na terra.” Ela fala deste novo consumo:

“O consumidor está mudando e a forma de fabricar e comercializar as coisas também precisa mudar. É isso que estamos fazendo”

Há uma responsabilidade a mais, portanto. Ela conta que está avaliando se vale a pena aderir ao uso de embalagens biodegradáveis, feitas de mandioca, em vez das de alumínio, para diminuir o lixo gerado em seu processo de criação. Também avalia fazer a entrega dos kits usando um serviço de bicicletas, em vez de com o seu carro.

Esta forma de pensar e empreender, que não segue um plano de negócios tradicional e é mais solta, é uma conquista recente para Débora e Samuel. Eles contam que nesse exercício constante de desconstruir modelos que consideram datados, acabaram por descobrir que era melhor aceitar a impermanência e navegar de acordo com o fluxo, sem tantas expectativas e frustrações. “É pela observação diária dos resultados que nos preparamos para atender às necessidades do mês vigente”, diz ela. Assim, sustentando um dia por vez.

DRAFT CARD

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  • Projeto: Comida Sustentável
  • O que faz: Delivery de refeições veganas
  • Sócio(s): Débora Benedetti e Samuel Gonzalez
  • Funcionários: 2 (os sócios)
  • Sede: São Paulo
  • Início das atividades: março de 2016
  • Investimento inicial: R$ 50
  • Faturamento: R$ 15.000 por mês, em média
  • Contato: (11) 97312-6366
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