Como a brasileira Totvs criou um sistema de inteligência cognitiva para concorrer com gigantes

Giovanna Riato - 10 ago 2017O CEO Laércio conta como a Totvs conseguiu chegar a outros mercados, mas diz que internacionalizar é um desafio permanente.
O CEO Laércio conta como a Totvs conseguiu chegar a outros mercados, mas diz que internacionalizar é um desafio permanente.
Giovanna Riato - 10 ago 2017
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Se firmar como uma empresa brasileira de sucesso localmente e fora do país é um desafio e tanto. Fica ainda mais difícil quando é preciso concorrer com corporações gigantes para realizar tal proeza. Este é um desafio que a Totvs (lê-se tótus) enfrenta desde sua fundação, há 34 anos, e, aparentemente, vai bem. Se o sucesso pode ser medido por números, a companhia de software e tecnologia tem alguns interessantes para mostrar: 8 mil funcionários diretos, 30 mil clientes na carteira e presença em 51 países por meio de franquias e escritório próprio no México e na Argentina. Todos os anos a companhia investe 12% a 14% da receita líquida em inovação – que passou de 2 bilhões de reais em 2016, número vistoso entre a maioria das empresas nacionais (e até entre as gringas).

Mesmo assim, em 2015 a companhia entendeu que, se quisesse garantir este espaço nos próximos anos, teria de passar por um processo de mudança. Quem fala a respeito é Laércio Cosentino, 56, o CEO e fundador da empresa ao lado de Ernesto Haberkorn:

“A transformação digital impõe mudança aos negócios e na forma de consumir. Muitos mercados viraram de cabeça para baixo neste caminho. No setor de TI não é diferente. As empresas são obrigadas a repensar processos e negócios”

Diante do desafio, ele prossegue, a solução foi organizar uma jornada de transformação na Totvs, com um panorama de quatro anos. “Estamos bem no meio dela. O objetivo é simplificar, ficar mais fácil e ágil”, diz, e conta que todo o processo é apoiado em três pilares. O primeiro é a cultura interna, justamente a parte da jornada de transformação que Laércio acredita estar mais perto de ser concluída. Além de amplo trabalho de engajamento de funcionários, a empresa mudou em abril deste ano para nova sede, um prédio de 62 mil metros quadrados na Zona Norte de São Paulo construído sob medida para novas as necessidades da companhia.

MUDAR DE CASA PARA MUDAR DE CULTURA

O empreendimento leva o clima das jovens empresas de tecnologia para a Totvs, com integração total entre as áreas em espaços abertos, laboratório de user experience e firulas queridas pelos funcionários, como um tobogã para descer de um andar ao outro, áreas de jogos com pebolim e videogames ou o espaço de silêncio, perfeito para um cochilo depois do almoço ou para executar um trabalho que exige concentração, contam os colaboradores.

A Totvs mudou de sede este ano, apostando em uma mudança cultural para manter-se à frente no cenário digital.

A Totvs mudou de sede este ano, apostando em uma mudança cultural para manter-se à frente no cenário digital.

A segunda estrutura que sustenta a transformação da empresa está no atendimento. “O nosso cliente precisa sentir essa mudança interna”, afirma o CEO. Nesta área, a maior investida da empresa foi passar a vender seus serviços por assinatura na nuvem, substituindo o modelo antigo de licenciamento de software — um caminho que todas as empresas de tecnologia da informação estão cursando. Na prática, a mudança necessária se traduziu na redução do tíquete médio e no aumento do nível de exigência de quem compra. Laércio conta que, na área de TI, o cliente só fica com a Totvs se o serviço for ótimo, porque é muito fácil cancelar e trocar por outro. E fala da da decisão estratégica:

“Não adianta tentar sustentar o modelo antigo para ter mais rentabilidade hoje, pois pagaríamos um preço mais alto no futuro”

Uma das maneiras que ele encontrou de corresponder ao patamar mais elevado de exigência é intensificar a parceria com as empresas que contratam a Totvs. “Hoje temos soluções e clientes de todos os portes, mas percebemos que as grandes companhias ainda têm dificuldade para atender as pequenas. Nós, que crescemos com as pequenas, entendemos elas: conseguimos garantir que façam mais por menos e, quando é necessário, pegamos o cliente pela mão e ajudamos ele a sobreviver à transformação digital”, diz, citando o borbulhante mercado local de micro desenvolvedores e de iniciativas com atuação de nicho, além de pequenos comércios.

SIRI, WATSON, CORTANA E…. A BRASILEIRA CAROL: A GUERRA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

O terceiro pilar da jornada de transformação da empresa, enfim, está em processos e no portfólio de produtos. “A ideia é fazer reavaliação cuidadosa da nossa oferta para entender se está de acordo com o que o mercado quer. Às vezes é preciso deixar produtos para trás”, afirma sem lamentação, apesar de admitir que o processo pode ser doloroso. Nesta área, uma das cartas na manga da empresa é a Carol — o sistema de inteligência artificial e machine learning desenvolvido pela companhia brasileira que também ganhou nome feminino, assim como a Siri, da Apple e a Cortana, da Microsoft.

Laércio fala que com as soluções da empresa, eles geram informação e conhecimento para os clientes e que era essencial apostar em recursos cognitivos:

“Dados só funcionam se a gente conseguir transformá-los em estratégia, em previsibilidade para o negócio. Este é o papel da Carol”

A solução começou a ser desenvolvida há dois anos e roda com alguns parceiros da Totvs como piloto. “Estamos ajustando o modelo de negócio, definindo pacotes e preços de assinatura, para começar a vender nos próximos meses.”

O plano é atender às mais diversas possibilidades. Segundo Laércio, uma universidade testou a solução para evitar a evasão. A Carol cruzou dados como adimplência no pagamento das mensalidades, frequência do aluno, sites acessados pelo wifi da universidade, entre outros. Apuradas as informações, ela alertava sobre os casos com maior risco de abandonar a faculdade, assim é possível trabalhar preventivamente para impedir a “fuga” do estudante. Aplicação semelhante está na área da saúde para seguradoras, laboratórios ou hospitais. A ideia é entender e prever custos e, mais uma vez, permitir que a empresa se prepare para o que está por vir.

A solução também funciona para clientes menores. “Para o gerenciamento de um comércio, o proprietário pode ter acesso a dados de vendas de determinado item na região em que está, preço médio, aumento ou queda da demanda. Assim, consegue se planejar, formar estoque e preços”, diz o executivo. Com a Carol, a empresa brasileira trabalha para permanecer firme em um terreno disputado por gigantes, como a IBM, com o Watson, e Microsoft, com a Cortana. Ainda que o serviço seja completamente novo, a fórmula tradicional da Totvs se repete aqui na busca por diferenciação diante da concorrência: oferecer custo mais baixo e, assim, atender aos mais diferentes tamanhos de empresas. A abordagem também incluí transparência total, com clareza sobre os algoritmos usados e informações usadas nas análises, além de interface simples, fácil de usar.

O BRASIL PRECISA DE MAIS INVESTIMENTO EM INOVAÇÃO

A Carol é um dos frutos do Totvs Labs, o centro de desenvolvimento da companhia no Vale do Silício que conta atualmente com time de 20 pessoas, entre diversas nacionalidades. A tecnologia de inteligência artificial começou a ser desenvolvida ali. Também foi lá que surgiu o embrião do projeto de transformação digital da companhia, conta Laércio:

“Começamos o Lab em 2012, antes da onda atual de empresas brasileiras irem para o Vale do Silício. O objetivo sempre foi mapear tendências e traçar novas rotas”

Ele prossegue: “Uma das coisas que sempre nos impressionou ali é a proximidade entre universidades e empresas. É uma troca fantástica que não acontece da mesma maneira no Brasil”. Este distanciamento é uma das principais críticas de Laércio ao ambiente de inovação nacional. “Mas estamos correndo atrás do prejuízo e o ecossistema está se fortalecendo com uma série de iniciativas, fundos e aceleradoras. Estamos atrasados, mas vamos melhorar.”

Em sua visão, as grandes empresas têm papel importante neste movimento. “Nos últimos três anos, com a crise, o investimento das companhias em inovação está em queda no Brasil, enquanto no resto do mundo ele aumenta. Precisamos parar de retroceder”, afirma e diz, que, da parte dele, o plano é ir para frente: “Sempre tivemos inovação no nosso DNA. Lá atrás, em 1989, fomos os primeiros a aplicar o modelo de franquia na distribuição de software, algo que deu muito certo. Já erramos, mas sempre temos plano A, B e C para ter alternativas quando algo começa a ir por um caminho estranho. O tombo nunca foi grande demais.”

PENSAR GRANDE, MAS SEM PERDER O FOCO

Laércio fala sem modéstia do sucesso da Totvs, mas reconhece que olhar para fora do Brasil ainda é um trabalho que ainda exige empenho. Dos 30 mil clientes, ele calcula que só mil são de outros países, mas com um peso relevante de 5% no faturamento. “É sempre difícil olhar mais para fora porque somos líderes aqui, então não podemos perder esse espaço que já temos ao buscar outro no mercado internacional”, conta. Ele assume que manter a companhia firme e forte tem seu preço:

“Brinco que fomos a primeira startup do Brasil a escalar um negócio de tecnologia. Temos a responsabilidade de mostrar que é possível ser uma empresa nacional inovadora”

Apesar desta visão e de ter chegado cedo ao Vale do Silício, só agora a Totvs está desenhando um programa estruturado de cooperação com startups localmente, que deve ser lançado em breve. Até lá, a maior presença da companhia no ecossistema de inovação se dá por meio da Endeavor, de quem é parceira. Com jeitão simpático e bastante focado, envolto no ar de quem não tem tempo a perder, Laércio demonstra certa disposição em compartilhar com o meio empreendedor parte do que aprendeu ao longo da sua trajetória profissional.

Ele começou a carreira como estagiário na Microsiga. De olho no crescimento do uso de computadores, propôs a fusão com a Logo Center e subiu ao topo da cadeia alimentar corporativa em tempo recorde. “Virei CEO em seis anos. Estou aqui desde o primeiro cliente”, conta. Há dois anos a companhia começou um projeto de sucessão que deu errado e foi interrompido. Agora, é provável que ele só deixe o cargo quando completar 62 anos, cumprindo a regra de aposentadoria da Totvs. O prazo não parece desconfortável para ele. Além de ter muito trabalho pela frente, para consolidar a transformação digital na companhia, ele não deixa de olhar em volta: é investidor-anjo da Mendelics, empresa focada em genoma humano para o tratamento de doenças como o câncer. À frente da Totvs ou não, a mania de pensar grande lhe cai bem.

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