O embrião da Estante Mágica, plataforma que estimula a publicação de livros escritos por alunos da educação infantil e fundamental, nasceu logo após a morte de Rachel de Queiroz (1910-2003). Robson Melo, 32, conheceu as obras da autora ainda na época de colégio, mas a aproximação, de fato, veio por meio do avô, Pedro Leôncio, que nos anos 1970 mudou-se do Ceará para o Rio de Janeiro. Lá, morador na favela da Rocinha, passou a trabalhar com marcenaria.
A história é daquelas que parece saída de um livro. Pobre e analfabeto, o artesão sequer imaginava que uma das estantes de livros que tinha recebido para consertar era de uma grande escritora. “Um dia, cheguei na casa do meu avô e ele estava chorando porque tinha morrido a ‘dona Rachel’. Estavam anunciando na televisão e foi aí que me toquei e falei: ‘Vô, ela foi a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras! Estudei isso na escola'”, conta Robson, o sócio-fundador da Estante Mágica.
Entusiasmado, o avô deu a Robson o livro Dora, Doralina, que havia ganhado, com dedicatória da própria Rachel de Queiroz, e cujas palavras não foi capaz de ler. “Li para ele e essa foi a segunda vez que o vi chorando. Hoje, meu avô é o nome de uma das salas da Estante Mágica, que é para ficar claro para todo mundo que nunca mais alguém deve passar a vida sem poder ler algo que foi escrito para si.”
Mas foi apenas em 2008, que a vida de Robson, que fazia Direito na UERJ, foi cruzar com a de Pedro Concy, 31, hoje CEO da empresa e que, na época, realizava a mesma graduação pela UFF. Os dois estagiavam no departamento jurídico da (então) Vale do Rio Doce, como fala Robson:
“Entramos no Direito achando que ali resolveríamos os problemas do mundo, mas foi no empreendedorismo que sentimos poder nas mãos para fazer essa transformação”
Os amigos, que além da formação tinham em comum a paixão por leitura, resolveram, então, “meter as caras”: abriram mão da carreira de advogado e passaram a estudar finanças, educação e tecnologia para abrir o próprio negócio.
COMO TRANSFORMAR A VONTADE DE MELHORAR O MUNDO NUM NEGÓCIO VIÁVEL
Por ter estudado em uma escola com o pior Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) da cidade do Rio de Janeiro, a educação passou a ser “uma mola propulsora de ascensão social” para Robson, como ele diz. Por isso, quando decidiram empreender, os advogados tinham ao menos uma certeza em meio a tantas dúvidas: a empresa promoveria educação. “A gente queria que fosse um negócio voltado para a leitura, uma das capacidades mais basilares para qualquer processo educativo.”
A partir daí, vieram as tentativas. Eles chegaram a ter uma livraria online e a fazer festas infantis com leitura e contação de histórias. Mas a mágica, mesmo, ainda não tinha sido encontrada e os sócios se questionavam como poderiam dar protagonismo às crianças neste processo:
“Era difícil convencer um estudante a ler só entregando o livro para ele. Aí, pensamos: por que o aluno não pode escrever o próprio livro?”
Após muitas visitas a escolas para apresentar a ideia, em 2012, a Estante Mágica estava, enfim, de pé. Os sócios investiram, nesse começo, cerca de 4 mil reais, montante que serviu para a compra de uma impressora, um computador e algumas capas de livro pré-prontas.
A primeira dificuldade foi encontrar gráficas que fizessem a impressão digital por um preço acessível. De acordo com Robson, poucas estavam preparadas para produzir em larga escala e no tempo que eles precisavam. Quando finalmente encontraram um parceiro, em 2014, ele diz que aconteceu a grande virada da empresa.
“De 2012 para cá, crescemos em uma média de 2,5 vezes ao ano. Entre 2014 e 2015, começamos a fazer as primeiras contratações. Terminamos 2017 com 35 funcionários e, hoje, estamos com 102 colaboradores em nossa sede no centro do Rio”, diz Robson, que tem planos de contratar mais 18 pessoas ainda este ano.
O crescimento não se traduz apenas no aumento do quadro de funcionários: no primeiro ano de operação, a startup faturou 120 mil reais. Saltando para 2017, fechou as contas com 8 milhões de reais. “Tudo isso foi feito com muitas noites sem dormir, mas, principalmente, ouvindo nossos clientes”, afirma o empreendedor.
COMO, EXATAMENTE, A MÁGICA ACONTECE?
Hoje, consolidada como uma plataforma de projetos pedagógicos para escolas, a Estante Mágica terceiriza o desenvolvimento tecnológico e o processo gráfico. Já os funcionários da companhia são responsáveis, entre outras tarefas, por manter contato com as escolas e disponibilizar, na própria plataforma, as histórias e ilustrações criadas pelos pequenos autores. Robson detalha o modelo de negócio da empresa: “Esse material é enviado para a gente e vira um e-Book gratuito para a escola e para os pais. A monetização vem a partir do momento em que eles compram os livros físicos, com direito à tarde de autógrafo realizada nas escolas”.
O preço das publicações varia conforme a tiragem de livros e modelo escolhido. Os de capa dura são mais caros, 59 reais a unidade, enquanto os de capa mole saem por 39 reais. A precificação inclui um custo fixo e uma variável, que é o valor cobrado pelas quatro gráficas parceiras.
Atualmente, para a engrenagem toda da Estante Mágica funcionar, Robson acumula dois cargos (diretor de Gente e Bem-Estar e diretor de Educação), Pedro Concy é o CEO e existem, ainda, três sócios e o mentor Allan Panossian, 33, fundador do Kekanto (guia online de lugares e serviços feito pelas opiniões de consumidores). Segundo Robson, a cultura da Estante Mágica se baseia no encantamento: “Há uma preocupação constante em encantar toda a cadeia: nossos funcionários, os pais, professores e alunos”.
Ele ainda diz que o compromisso dos líderes da Estante Mágica é entregar sempre mais do que o cliente espera. Talvez por isso, não economizem nas expectativas. “Já colocamos 250 mil autores na rua e temos uma meta bastante agressiva de chegar a 350 mil este ano. Contamos com mais de três mil escolas parceiras no Brasil e queremos atingir, até 2030, um bilhão de crianças no mundo.”
CRESCER E MANTER O FOCO EM TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
A empresa já foi cotada para estar presente em algumas escolas na Argentina e no México e, os sócios, já deram uma aula sobre “Inovação da Educação” em Harvard, a convite, e lá foram provocados a tornar os livros da Estante Mágica viáveis em países como a Índia. Para que isso seja possível, calcula-se que as unidades precisariam custar 2 dólares. Mesmo sabendo que isso ainda pode levar algum tempo, a dupla já começou a estudar a ideia.
Antes de conquistar o mundo, no entanto, eles consideram aproximar-se das escolas públicas uma necessidade mais urgente, já que 90% dos seus clientes, hoje, são colégios particulares. O caminho não envolve apenas baratear os livros, mas entender todo um contexto. “Fizemos muito voluntariado na rede pública para desenvolver o produto de forma mais aceitável. A gente sabe que os professores dessas escolas têm uma realidade muito diferente de quem dá aula em colégios particulares”, fala o empreendedor, que sentiu na pele como aluno esta diferença.
Ele é o primeiro neto de uma leva de 14. Todos foram encaminhados para a universidade porque os avós não sabiam ler, mas conheciam o valor da educação. “Quando as pessoas renovavam as estantes que meu avô ajudava a consertar, geralmente doavam obras que não queriam mais. Então, vivi em uma casa cheia de livros de um casal analfabeto”, diz Robson, que vê no empreendedorismo uma saída para ajudar a combater disparidades como esta. “O papel do empreendedor é justamente enxergar o que pode fazer para tornar o mundo um lugar melhor, reduzindo a barreira que divide as pessoas entre as que sabem ler e as que não sabem, as que podem dormir sem fome e as que não podem.” Que história bonita o neto do seu Pedro tem a escrever.
Roberto Pascoal largou a publicidade e foi voluntariar em Angola, na África. De lá, voltou com a ideia do negócio de incentivo à leitura em regiões carentes e, desde 2013, já foram 15 mil livros doados.
Saiba como a indiana Kiran Bir Sethi inventou uma escola, que é referência mundial de uma nova filosofia de ensino infantil, após seu filho voltar para casa chorando porque, em vez de seguir o livro, tinha inventado uma história diferente.