• LOGO_DRAFTERS_NEGATIVO
  • VBT_LOGO_NEGATIVO
  • Logo

APRESENTA
APRESENTA

Como a Herself, da Raíssa Assmann Kist, está quebrando o tabu sobre a menstruação

Fernanda Cury - 31 mar 2020
"Existe um conhecimento que nos é negado e que não é acessado por nós desde sempre, por conta do tabu. Minha motivação ao sair de casa todos os dias é trazer esse questionamento para mais e mais mulheres", conta Raíssa.
Fernanda Cury - 31 mar 2020
COMPARTILHAR

 

Ela é neta de agricultores de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. Seus avós trabalharam a vida inteira na produção de tabaco, com agricultura familiar, e sua família convive até hoje com os danos à saúde física e emocional causados pela atividade. “Em 2016, como estudante de Engenharia Química – e sabendo do impacto da indústria química na vida das pessoas – eu me questionei sobre o meu papel e, principalmente sobre o que, de fato, eu estava fazendo para mudar a realidade de famílias como a minha, que dependem de uma indústria nociva pois, em muitos casos, a única alternativa que as pessoas têm”, conta Raíssa.

A partir dessas reflexões ela decidiu empreender e subverter o formato tradicional dos negócios. “Sei que em todas as pontas existem pessoas, famílias como a minha, que são impactadas. Acredito que podemos fazer diferente, com responsabilidade socioambiental e com uma produção consciente”.

Na pesquisa de iniciação científica, em 2015, Raíssa procurou tirar do papel ideias que contribuíssem para solucionar problemas na vida das pessoas. Mas, depois de um tempo, entendeu que não conseguiria se adaptar ao universo da pesquisa, sentia que havia certa desconexão com o mercado. Ela não queria ver soluções publicadas em livros, mas sim em coisas palpáveis e concretas, que revertessem em benefícios para os outros.

Assim ela criou a Herself, uma empresa que tem a missão de trazer o aspecto social e político da menstruação para o desenvolvimento das mulheres e está dando o que falar. Acompanhe nossa conversa com a Raíssa.

Como surgiu a Herself? 

Raíssa: De 2015 para 2016, com 22 anos, eu vivi uma fase difícil. Estava insatisfeita comigo e não me sentia realizada no cenário em que me encontrava e nem no futuro que estava sendo projetado para mim. Queria encontrar formas de me expressar – e, para montar a Herself, precisei fazer um mergulho interno. Empreender me trouxe o sopro de vida e energia que estava procurando.

Ter vivido situações ligadas ao tabu da menstruação também foi muito importante para criar a Herself. Minha menstruação foi tardia e me questionava se estaria tudo bem comigo – não conseguia informações em lugar nenhum, nem com minha família, nem na escola.

Em 2016, passei a me questionar de onde vinha tanto constrangimento para falar sobre menstruação. Por que algo tão natural para a mulher era visto como errado? Querendo ressignificar a minha relação com a menstruação, percebi que poderia fazer a diferença na vida de outras mulheres.

Como você identificou o nicho e investiu neste setor?

Raíssa: Percebi que, aqui no Brasil, estávamos sem inovação para protetores menstruais desde 1930. E que, além da questão do produto, existia a possibilidade de lidar com a menstruação de uma nova maneira. Com a intenção de ampliar o impacto, minha sócia e eu decidimos perguntar para mulheres de vários cantos do país como elas se sentiam em relação ao assunto – para entender se era uma insatisfação compartilhada e se existiria uma oportunidade de fazer diferente, mudar alguma coisa.

Entrevistamos 800 mulheres. Foi emocionante conversar e ver que a questão da menstruação não estava resolvida: a inquietação era de muitas. Quando pedia para idealizarem um produto, elas que traziam a sugestão de que poderia ser uma calcinha (algumas até se ofereciam para testar). Em uma hora de conversa, a postura das entrevistadas mudava incrivelmente: de mulheres que odiavam menstruar para mulheres que gostariam de participar da cocriação das primeiras calcinhas menstruais do Brasil.

Tivemos certeza que a questão da menstruação não estava resolvida. E de que ninguém havia, até então, perguntado para as mulheres como elas se sentiam usando os protetores menstruais existentes. Nós perguntamos e, a partir daí, decidimos começar a criar um novo mercado.

Como não tínhamos dinheiro para investir, decidimos mais uma vez contar com a rede que participou da cocriação e fazer a validação em conjunto com mais mulheres. Nossa entrada no mercado foi a partir de um financiamento coletivo (crowdfunding). Dessa maneira, as mulheres puderam nos apoiar e encomendar o produto, validando a existência do mercado e uma real necessidade das calcinhas. Era como se a gente estivesse perguntando “Mulheres, vocês querem viver seu período menstrual usando somente uma calcinha?”. A resposta foi incrível.

Como funciona a Herself?

Raíssa: A Herself atua como uma empresa social em busca do objetivo 5 dos ODS da ONU: equidade de gênero, a partir da quebra de tabu sobre menstruação. Atuamos em duas frentes: com desenvolvimento de produtos tecnológicos para menstruação e com acesso à informação segura e de qualidade sobre o funcionamento do corpo das mulheres. Formamos, de um lado, a Herself Calcinhas e Biquínis Menstruais; de outro, a Herself Educacional.

A Herself desenvolve tecnologias para menstruação. Somos pioneiras no Brasil na produção de calcinhas e biquínis tecnológicos para menstruação. Mais que isso: desenvolvemos nossa própria tecnologia, nossos produtos são feitos localmente e com 100% de matérias-primas brasileiras.

Já pela Herself Educacional, empresa fundada em 2019 com a Victoria Castro – bióloga e educadora – acabamos de lançar um curso online sobre Educação Menstrual, com o conteúdo que, ao longo de 2019, foi oferecido em oficinas presenciais para crianças e mulheres adultas em vulnerabilidade social. Trata-se de um modelo de negócio cruzado.

Mesmo nos relacionando com mulheres de todo o País, nascemos e permanecemos em Porto Alegre. Não por acaso: a proximidade com os fornecedores nos dá muita segurança sobre a matéria-prima usada nas calcinhas ou a forma como o produto é feito (se a produção ou o tecido estivesse na China, por exemplo, isso não aconteceria – e é essa segurança que garante total transparência). E como se trata de uma empresa que quer impactar positivamente a comunidade, também é importante atuar em uma cidade que conhecemos bem. Nossas peças têm a garantia de uma produção limpa e consciente, com valorização da mão de obra, da economia solidária e o fomento ao desenvolvimento local. A Herself também funciona a partir da crença de que não basta criar e vender produtos ecológicos. Para nós, a sustentabilidade precisa estar presente em todas as práticas da cadeia produtiva.

“Entendemos desde o início que, se uma marca não se preocupa com o bem-estar de todas as pessoas envolvidas, com todos os recursos humanos e ambientais envolvidos, ela não é sustentável”.

Como é a sua atuação?

Raíssa: Minha atuação tem foco nas estratégias de crescimento de impacto e sustentabilidade da empresa, desenvolvimento de pessoas, consolidação da cultura da Herself, desenho e refino de processos para que nossos valores estejam presentes de ponta a ponta na empresa.

Como foi no início? Quais seus maiores medos, preocupações?

Raíssa: O maior desafio desde o início foi cultural. Encontramos diferentes pessoas que tentaram nos convencer que a questão da menstruação já estava resolvida. Ouvi frases de profissionais experientes e professores da academia, sugerindo que focássemos no mercado pet para cadelinhas no cio, por exemplo. Era muito difícil avançar em algumas mentorias quando o assunto central sempre era voltar no primeiro estágio de sensibilização “dos homens” em relação à menstruação e à necessidade do produto na opinião deles. Nunca chegávamos a falar sobre as dores da estruturação da equipe, dos processos, do negócio em si.

Desde o início, percebemos a importância de trazer as informações sobre os aspectos positivos da menstruação, sobre os benefícios do autoconhecimento e sobre autocuidado. Nossa educadora menstrual, Victória Castro, também sócia da Herself Educacional, e outras referências de saúde feminina e ginecologia foram essenciais nesse processo.

Nosso maior desafio foi lançar um produto novo, cujo funcionamento as pessoas não conheciam e que passava por enfrentar uma cultura do nojo. Também ressignificamos a relação das mulheres com a tecnologia para produtos menstruais, apresentando um novo olhar de valorização da menstruação a partir da cultura menstrual.

Teve algum momento em que você pensou em desistir? Se sim, por que e como enfrentou?

Raíssa: Pensei em desistir quando percebemos que teríamos que conhecer muito mais do que imaginávamos sobre modelagem e confecção. Costureiras experientes em moda íntima e moda praia tiveram dificuldade com os nossos tecidos e na finalização da calcinha. Nos protótipos finais com os tecidos oficiais, vimos que costureiras com experiência não conseguiram finalizar a peça, a calcinha ficava retorcida. O modelo era muito diferente de tudo que elas já haviam feito até aquele momento.

As primeiras calcinhas ficaram desconfortáveis. Sem entender nada de costura ou maquinário específico, não conseguimos ajudar. Estávamos entrando em um universo desconhecido e buscamos, eu e a outra fundadora da Herself, Nicole, aprender a fazer o básico de modelagem para chegar no resultado final. Precisávamos garantir que as peças não teriam a sensação de um absorvente ou uma fralda.

Buscamos cursos específicos de modelagem, queríamos saber fazer para poder ajudar as costureiras e ir aperfeiçoando as peças. Conseguimos uma professora do curso de Moda da universidade que salvou nosso início. Em 3 meses, aprendemos a fazer a modelagem, desenvolvemos o segundo modelo de calcinha do financiamento coletivo e graduamos os primeiros seis tamanhos de calcinha. Os encaixes da modelagem continuaram sendo um desafio até 2018, quando finalizamos nosso Manual de Confecção, depois de trabalhar com nove modelistas envolvidas.

Ao longo do processo também aprendemos que uma marca de moda não precisa se restringir à funcionalidade ou à estética. Hoje a Herself usa a moda como ferramenta de comunicação de causas, fazendo com que temas complexos sejam transmitidos com leveza e beleza, por meio de cores e estampas, por exemplo.

E quais estratégias têm dado melhor resultado nesta trajetória?

Raíssa: Resolver necessidades reais das pessoas. Resolvemos problemas que de fato existem e não fazemos mais do mesmo no mercado de moda ou de higiene feminina – que lucra em cima da insegurança das mulheres. Isso não nos representa. Subverter a lógica tradicional é a nossa melhor estratégia e uma das razões de existência da Herself.

Por outro lado, quais caminhos foram deixados de lado no decorrer do processo? 

Raíssa: A estratégia de lançar produtos ou serviços por financiamento coletivo foi algo no qual apostamos mais de uma vez no início e seria incrível continuar, por se tratar de uma ferramenta que envolve diretamente as mulheres que usam os nossos produtos. Mas percebemos que teríamos um alcance menor, grandes dificuldades na operação em função das limitações da própria ferramenta e que esse processo também interferiria na confiabilidade do produto.

Na sua opinião, o que o empreendedorismo feminino tem de diferente?

Raíssa: O empreendedorismo feminino cria um ponto de partida diferente para os negócios. Resgata valores mais humanos que pareciam ter sido perdidos. As mulheres têm mais facilidade em perceber os problemas éticos que estão envolvidos no jeito de produzir, comunicar e gerir. Em função dessa lente, criam novas práticas. Contribuem para que a realidade delas e das próximas gerações seja transformada.

Enquanto a diversidade não ocupar todos os espaços, sempre haverá necessidades sociais, ambientais, econômicas e culturais que não estarão sendo atendidas. Nós, mulheres, enxergamos essas necessidades. Somos agentes de transformação e mudança para uma lógica mais coerente, ética e sustentável para todas e todos. Resgatamos valores e nos posicionamos contra uma lógica insustentável de exploração.

Você é uma das participantes do Programa Aceleração Itaú Mulher Empreendedora 2020, certo? O que a motivou a participar? O que espera dessa participação?

Raíssa: Sim, fiquei super interessada ao perceber que seria um programa específico para negócios sociais de mulheres e que contaria com apoio do time da Yunus. Aprender praticando sobre o jeito Yunus de fazer negócios sociais, além de conhecer uma rede de mentoras e consultoras incríveis no programa, que garantem um entendimento real e aprofundado das necessidades de cada negócio, foi essencial para nós.

Com o lançamento da Herself Educacional ano passado, buscamos redesenhar nosso modelo de negócio para escalar nossas métricas de impacto e estar no programa nos permitiu desde o início redesenhar nossas estratégias no momento perfeito. Além disso, o fato de estar em uma rede maravilhosa com outras mulheres empreendedoras garante a dose ideal de representatividade, inspiração e motivação para fazer acontecer.

Qual seu maior objetivo? O que te motiva a sair da cama todo dia?

Raíssa: Existe um conhecimento que nos é negado e que não é acessado por nós desde sempre, por conta do tabu. Minha motivação ao sair de casa todos os dias é trazer esse questionamento para mais e mais mulheres.

Sou apaixonada pelo ativismo menstrual. É a (r)evolução mais íntima que cada uma de nós pode ter ao se conectar com algo que é tão singular, único e natural para cada uma. Sinto como missão trazer o aspecto social e político da menstruação para as mulheres. O impacto e ao mesmo tempo a potência que esse processo tem em nossas vidas precisa ser ressignificado para gerar ainda mais transformação.

Sabemos que errar é natural, o importante é aprender com os erros e recomeçar, não é? Quais os maiores erros que você cometeu na vida empreendedora?

Raíssa: Falhei quando não busquei ajuda para lidar com desalinhamento de expectativas na primeira sociedade que fundei – com a primeira cofundadora da Herself. Talvez pudéssemos ter terminado nossa relação de outra maneira. Procuro ter outra dinâmica de alinhamento com a minha sócia atual, Victoria Castro.

Também falhamos no primeiro orçamento da Herself, quando estipulamos uma meta de financiamento coletivo que era 3 vezes menos do que o que gastamos. Para nossa sorte, superamos a meta quase em 5 vezes. Ainda sobre estratégias de crowdfunding, lançamos o segundo financiamento coletivo de biquínis tecnológicos para menstruação no inverno. Ainda que a Herself tenha impacto nacional, o público da região sul e sudeste é o maior.

Na transição do financiamento coletivo para o site oficial da Herself, falhamos na operação e o site não existia no primeiro dia do lançamento. Fizemos uma contagem regressiva e tudo mais, mas o site não existia.

Qual foi a sua maior conquista até aqui?

Raíssa: Em 2016, decidi que iria ouvir o coração e fazer algo que estava pulsando em mim. Aprendi a acreditar em mim mesma, a me libertar de algumas crenças limitadoras e entender que a vontade de fazer a diferença era o que eu mais precisava, mesmo sem experiência ou formação acadêmica. Talvez existisse valor naquilo que eu estava pensando em fazer e me entreguei inteira para essa descoberta. Fazer a Herself sair do papel foi o maior mergulho em mim mesma, o maior frio na barriga que já senti.

A rede de mulheres que se formou a partir da Herself é, sem dúvidas, a minha maior conquista. Com muita dedicação, conexão e muitas mãos de mulheres, conseguimos tangibilizar uma solução para algo que nos incomodava pessoalmente. Tivemos incômodos, dúvidas e anseios, mas fomos encontrando o nosso jeito de viver, de consumir e fazer negócios. A Herself vem transformando a vida de muitas mulheres e a minha também. E saber dessas histórias de perto, olhar para essas pessoas diariamente e ter a certeza que a semente dessa missão está plantada, que muitas meninas já estão tendo uma experiência muito mais positiva com a primeira menstruação. É um resultado transcendente, é a minha maior conquista.

Qual é o seu sonho? O que ainda falta realizar?

Raíssa: Ainda estamos muito distantes de ter um contexto de dignidade menstrual no nosso País e no mundo. Saber que meninas e mulheres deixam de frequentar a escola por falta de acesso a protetores menstruais ou por não ter informação sobre o que está acontecendo com seu corpo nos faz entender que nossa missão está só começando. Unindo os recursos e a tecnologia da Herself com a orientação científica e biológica da Herself Educacional, tenho certeza que podemos transformar a situação da pobreza menstrual no Brasil. Já atuamos com oficinas de bioabsorventes e educação menstrual dentro de institutos penais em duas cidades do Rio Grande do Sul e nosso sonho é escalar esse impacto para outros institutos penais, trazer soluções para mais meninas e mulheres em situação de vulnerabilidade social.

“Sonho com o dia em que a menstruação não seja mais vista como um limitante na vida de nenhuma de nós”.

Se pudesse dar apenas uma dica para quem está querendo empreender, qual seria?

Raíssa: Coragem para buscar a própria verdade. Diante de um presente que não nos representa e um futuro melhor que buscamos, podemos nos tornar protagonistas da mudança.

 

Para saber mais:

Empresa: Herself

O que faz: A Herself é um negócio de impacto social que além de criar produtos e serviços, atua com a intenção de disseminar conhecimento sobre menstruação entre todas as mulheres e proporcionar, por meio de tecnologia e inovação, mais liberdade e conforto a todas.

Sócias: Raíssa Assmann Kist e Victoria Ferreira de Castro

Funcionárias: 10 mulheres

Sede: Porto Alegre – Rio Grande do Sul

Início das atividades: 2017

Investimento inicial: R$ 113 mil em financiamento coletivo

Contato: Raí[email protected]

Esta matéria  pode ser encontrada no Itaú Mulher Empreendedora, uma plataforma feita para mulheres que acreditam nos seus sonhos. Não deixe de conferir (e se inspirar)!

APRESENTA
COMPARTILHAR
APRESENTA

Confira Também: