O tradicional colégio Pedro II, criado em 1837, no Rio de Janeiro, ostenta uma galeria de ex-alunos de respeito. Alguns se tornaram grandes nomes da literatura, como Raul Pompeia, Lima Barreto e Manuel Bandeira (que depois voltou à instituição como professor). Outros deixaram sua marca na música, como Noel Rosa, Lamartine Barbo e Arlindo Cruz. Há ainda os que chegaram a nada menos que a Presidência da República, como Floriano Peixoto, Hermes da Fonseca, Nilo Peçanha, Rodrigues Alves e Washington Luís.
Sempre que pensava nesses medalhões, Gabriel Mayr se sentia meio intimidado. Não era um grande destaque em nenhuma matéria, tampouco estava acima da média nos esportes. Seu plano era fazer faculdade de Educação Física e dar aula em alguma escolinha de futebol. Não era um plano ruim, mas às vezes ele se perguntava: será que teria histórias realmente interessantes para contar aos netos?
Hoje, ele sabe que sim. Aos 32 anos, Gabriel já tem uma história cheia de altos e baixos, que fala sobre inclusão, persistência, conhecimento e pioneirismo. Ele é coordenador de projetos na Urece Esporte e Cultura. Dentro de alguns dias, entre 24 e 26 de julho, estará no Quênia para apresentar um dos projetos da associação no Global Entrepreneurship Summit, evento que tem o endosso de ninguém menos que o presidente os Estados Unidos Barack Obama para promover o empreendedorismo social. Uma história que que começou ali no Pedro II, onde ele se tornou amigo de dois estudantes deficientes visuais.
Um dia, esses dois colegas o chamaram para jogar bola no Benjamin Constant, um instituto na Urca que é referência nacional em atendimento a deficientes visuais. Foi assim que Gabriel entrou em contato com o futebol para cegos. Nessa versão do esporte, a bola faz barulho (graças a guizos na parte interna) e há apenas cinco jogadores em cada time — o goleiro é o único que pode ver e tem a tarefa extra de orientar a zaga, avisando sobre a posição dos adversários e sugerindo passes. Gabriel sofreu alguns frangos até chegar à conclusão de que era um goleiro ruim. Mas descobriu que podia ser um bom técnico.
Os jogos no Benjamin Constant também o aproximaram do atleta Anderson Dias, que nasceu em uma família pobre em Belford Roxo (zona metropolitana do Rio) e ficou cego aos três anos de idade. Por meio do esporte, Anderson conseguiu estudar (é formado em fisioterapia) e viver experiências inesquecíveis. Em 2004, quando o futebol para cegos estreou nas Paraolimpíadas, ele estava lá, em Atenas, e sua equipe conquistou a medalha de ouro.
De volta ao Rio, em 2005 Anderson e Gabriel decidiram criar uma associação para promover o esporte para cegos. Nascia a Urece, com dez pessoas, muitos planos e quase nada de experiência administrativa. “A gente não sabia nem o que era CNPJ”, lembra Gabriel. Por meio do programa Shell Iniciativa Jovem (que oferece mentoria a startups sociais), conseguiram elaborar um primeiro plano de negócios para a associação. Mas entre elaborar e implementar, eles perceberam que havia uma grande distância.
COMO VENDER ALGO QUE AINDA NEM EXISTIA?
A busca por patrocínio de clubes não deu certo. A Urece se apresentava como um projeto esportivo, mas era vista como atendimento social. Além disso, patrocinadores são atraídos para ações que tragam visibilidade e força para suas marcas — algo que a associação não conseguia prover.
Para complicar, ela oferecia gratuitamente um serviço caro. Numa situação convencional, um treinador pode dar conta de 40 jogadores, por exemplo. Mas quando se trata de pessoas com deficiência visual, cada professor só consegue atender uma turma bem menor.
Se a associação passava por maus bocados, pelo menos pessoalmente Gabriel conquistava algumas vitórias. Graças à sua participação, como técnico especializado, num intercâmbio que aconteceu ante das Paraolimpíadas de Atenas, ele foi chamado para a seleção inglesa e passou um ano no Royal National College for the Blind, onde aprendeu muito sobre cronogramas de trabalho e cultura organizacional.
A experiência na Inglaterra também o deixou a par de bolsas de estudo, e em 2007 Gabriel embarcou para um mestrado na Bélgica, onde desenvolveu uma metodologia de inicialização no futebol para cegos — ou seja, um manual para preparar novos professores. Como pesquisas nessa área são raras, ele logo se viu envolvido com projetos em outros países da Europa, assim como nos Estados Unidos.
Um desses convites se referia ao primeiro campeonato internacional de futebol para mulheres cegas, com sede na Alemanha. Chamado para uma palestra, Gabriel convenceu a organização do evento a incluir um time do Brasil. Detalhe: sequer existia uma equipe feminina desse tipo no país. Mas a ideia deu certo.
O novo time foi apadrinhado pela famosa Marta (eleita a melhor jogadora de futebol do mundo por cinco vezes consecutivas) e, com isso, a Urece conseguiu seu primeiro patrocínio: cerca de 30 mil reais, dados pela Copagaz, que na época patrocinava a equipe feminina do Santos. Treinadas por Gabriel, as atletas da Urece não só foram à Alemanha como voltaram com o título de campeãs.
Gabriel e Anderson estavam certos de que a associação fazia um trabalho de qualidade. Ainda assim, a entidade mal se mantinha de pé e quase fechou em 2012 por falta de recursos.
HORA DE REVER ESTRATÉGIAS
Era preciso rever os planos, e Gabriel voltou ao programa Shell Iniciativa Jovem. Ali, constatou que faltava à Urece tomar uma série de atitudes para organizar o negócio: abrir um canal com investidores, mostrar mais proatividade em relação aos editais para esporte, se organizar internamente, monitorar (e divulgar) os próprios resultados e criar laços com outras entidades interessadas em promover a transformação social pelo esporte. Gabriel revê a própria ingenuidade dos primeiros anos:
“Antes, a gente ficava à espera do ‘príncipe encantado dos editais, algo que fosse feito sob medida para nós. Agora, isso mudou”
Enquanto a associação se reorganizava, surgiu um convite para trabalhar com a Fifa na Copa do Mundo de 2014. A ideia era que parte dos jogos contasse com uma transmissão de rádio específica para cegos (a saber: enquanto a narração esportiva comum é bem opinativa, esta tem foco na descrição, não apenas dos lances, mas também dos uniformes, da reação dos jogadores na hora do gol e até da localização da “ôla” nas arquibancadas).
A narração para cegos durante a Copa seria feita em quatro estádios, incluindo o Maracanã (onde há interesse em oferecer esse serviço permanentemente). Para fechar com a Fifa, foi preciso elaborar um documento de 40 páginas sobre a Urece — o que foi, por si só, uma grande aprendizagem sobre os próprios objetivos e pontos fortes.
“A gente fazia coisas sem nem saber que estava fazendo”, conta Gabriel. “Eu ficava intimidado ao participar de conversas em que alguém falava coisas como ‘advocacy’… Depois pesquisei e vi que era participar de audiências públicas, por exemplo, algo que a gente já fazia!”
Por falar em “advocacy”, a Urece já participou até de audiências da ONU sobre iniciativas que podem ser adotadas para melhorar a inclusão dos deficientes físicos na sociedade. Gabriel também conta com orgulho que seu time foi o primeiro no Brasil a contar com um jogador estrangeiro (o argentino Lucas Rodriguez) e, em parceria com a Penalty, ajudou a desenvolver uma chuteira própria para cegos, com um bico que facilita a direcionar o chute e laterais que permitem mais controle da bola. “Somos pequenos, mas estamos ligados a ações pioneiras”, diz Gabriel.
MATURIDADE, ENFIM
Após os primeiros anos de “ingenuidade” institucional, a Urece amadureceu, conseguiu reconhecer o seu valor e, graças a este processo de autoconhecimento, pôde abraçar uma série de novas oportunidades. O trabalho mais estruturado em busca de editais passou a trazer resultados. Atualmente, atendem diretamente cerca de 50 pessoas nas atividades esportivas.
Somado a isso, a entidade também buscou uma saída para bancar seus gastos administrativos. Até 2013, o foco era primordialmente em promover equipes esportivas e a reabilitação através do esporte, porém no ano passado houve uma grande mudança: ao passar a produzir cardápios em braile, a associação se aproximou de um modelo de negócio social.
Por meio de uma doação, conseguiu adquirir uma impressora de textos em braille, com a qual produz cardápios para restaurantes (uma lei estadual obriga os estabelecimentos a oferecer essa versão a seus clientes). Com o recrudescimento na fiscalização, a demanda, que era de um por mês em 2014, segundo Anderson, passou a ser de centenas por mês este ano.
O barulho da impressora enche a pequena sala num prédio comercial no centro do Rio, onde Gabriel me conta a trajetória da Urece. Ao nosso lado, um funcionário da associação, deficiente visual, confere as folhas recém-impressas. Por todo o lado, há caixas de papelão (são os preparativos para a reforma do local, que acontecerá em breve, graças a uma doação do consulado alemão). Outra parceria recente, com o Instituto PHI, prevê a aquisição de novos computadores.
As fontes de renda da Urece, atualmente, são patrocínios, projetos incentivados por leis federais e estaduais de incentivo ao esporte, doações de pessoas físicas e, como dito acima, a produção de cardápios em braile.
O grande sonho hoje, conta Gabriel, é conseguir construir uma sede própria, com direito a quadras para as equipes de futebol, atletismo e goalball (um esporte próprio para deficientes visuais) que a associação mantém. Que venham as cenas dos próximos de uma associação que, como diz seu slogan, “não enxerga obstáculos”. Taí uma história que os netos de Gabriel provavelmente gostarão de ouvir.
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