Costumo dizer que a vida é como um copião de cinema, mas o filme somos nós que editamos.
Cada experiência vivida contribui para construir a narrativa e, quando olhamos para trás e revemos todas as cenas, percebemos o quanto tudo faz sentido
É assim que vejo a minha trajetória à frente do Instituto JNG, criado há dez anos com a proposta de oferecer a solução de moradias independentes para pessoas com deficiência.
Na verdade, para contar essa história, é preciso voltar um pouco mais no tempo…
Comecei minha trajetória profissional no mercado financeiro. Em 1985, fui para a Inglaterra fazer o mestrado em Planejamento Social. De volta ao Brasil, comecei a trabalhar na Organização das Nações Unidas (ONU), em Brasília.
Foi nesse período que casei e tive meus dois filhos, Camilo e Nicolas. Mesmo com dois filhos pequenos e mudanças frequentes por conta de nossos empregos e trabalhos, atuei em universidades, organizações internacionais e direcionei meu foco de estudos para a área da saúde.
Trabalhei no Ministério da Saúde e, ao lado do Marcos Mandelli e da Lair Guerra de Macedo, elaborei o primeiro programa de luta contra a Aids do país, em 1988.
Quando meu filho Nico nasceu, percebi que ele tinha uma condição diferente.
Comecei uma luta com os pediatras para saber o que era, mas fui tratada como uma mãe nervosa e ansiosa.
Após uma bateria de análises e exames, o resultado foi que o desempenho dele era abaixo da média para faixa etária em todas as áreas de desenvolvimento.
Eu, então, perguntei: “Isso é para vida toda ou pode mudar?” E tive a sorte da médica, especialista em desenvolvimento infantil, responder: “Ninguém pode afirmar nada sobre o que vai acontecer”
Esta é a resposta que toda mãe deveria ouvir, pois não há limites para o desenvolvimento. Viver é poder ser permanentemente surpreendido.
Percebemos que o mais importante era atender suas necessidades, tratar cada sintoma para oferecer as melhores condições para que Nico se desenvolvesse.
Entendi a força de conseguir estar atenta às mudanças e, para isso, aprendi e ativei minha capacidade de observar e escutar além da voz.
Observar, refletir sobre a relação desse filho com tudo que o cerca (a deficiência também se define em relação ao ambiente em que a pessoa vive), pesquisar e buscar as melhores terapias e intervenções, e voltar ao início: observar, refletir, pesquisar e atuar
Hoje, falamos em Transtorno do Espectro Autista (TEA) como um guarda-chuva que abarca muitos transtornos do desenvolvimento infantil.
O TEA vem sendo muito estudado e, hoje, existem intervenções muito específicas e isso é, sem dúvida, um avanço.
Mas nenhum diagnóstico substitui a força de aprender a lidar com a situação. Lidar é mais potente e nos ensina mais do que esperar ou lutar pela “cura”.
Foi desse jeito que atravessamos a infância e a adolescência do Nico. Mas quando a fase escolar terminou, percebi a urgência de estar mais atenta à idade cronológica do que à funcionalidade do meu filho.
Pensei: “E agora? Como será a vida adulta dele?”.
Vi as pessoas da idade dele indo para faculdade e escolhendo uma carreira. O irmão foi estudar no exterior e morar sozinho
É uma fase da vida muito delicada para jovens com deficiência intelectual.
E já bastante treinada no meu ciclo de observar, refletir, pesquisar e atuar (sempre retroalimentado), entendi que entrávamos numa dimensão maior da vida. A própria vida do Nicolas!
É como jovem adulto que se começa a viver, fazer escolhas e ter autonomia. Jovens típicos fazem isso naturalmente.
Confrontam-se com a construção de sua identidade, provando de diferentes fontes, o que os leva a um natural afastamento dos pais. É saudável.
Foi nesse contexto e ao lado da Ana, mãe do João, e da Mônica, mãe da Gabriella, dois jovens com TEA que estudaram com o Nico, que começamos a nos questionar: “Como vai ser depois que eles saírem da escola?”, “Vão trabalhar?”, “Onde vão encontrar amigos para se socializar?”, “Onde vão morar?”.
É comum as escolas abrirem grupos para adultos com deficiência continuarem se socializando, mas nós três entendíamos que sair da escola é um marco na vida dos jovens que nossos filhos também precisavam viver. Assim, começamos uma busca por informações
Em 2011, descobrimos uma organização de moradias para pessoas com deficiência na Inglaterra, e decidimos adaptar a proposta para o Brasil.
Financiamos a viagem de um especialista que pudesse nos dar um parecer técnico sobre o que encontraríamos, mas eu também estive lá. Vi que existe, é real, é transformador, é disruptivo, é possível!
Foram dois anos de preparação. Fizemos um acordo de cooperação técnica com a organização britânica, trouxemos a metodologia, que foi adaptada com a consultoria de professoras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Essa metodologia inclui método, métrica, avaliação da autonomia e um programa personalizado para que a pessoa com deficiência se desenvolva de acordo com a sua rotina diária.
O Instituto JNG nasceu em 2013. Desde então, nos deparamos com muitas dificuldades.
Percebi que o tema da moradia para vida independente da pessoa com deficiência não estava na pauta do próprio movimento da sociedade civil que luta pelos direitos dessas pessoas.
Achamos que era suficiente provocar o debate e articular com os principais atores interessados: as famílias e os próprios jovens adultos com deficiência, os formuladores de políticas públicas dos poderes legislativo e executivo, profissionais que atuam com esse público e alguns agentes do setor imobiliário.
Não foi suficiente. Propúnhamos uma nova forma de pensar a vida adulta de pessoas com deficiência intelectual e/ou autismo.
Vislumbramos a necessidade de um novo marco conceitual com raízes distantes do capacitismo que está presente (ainda) nas famílias e nas instituições
Apoiar no lugar de fazer por elas, aceitar a vida como ela é e, nesse contexto, remover as barreiras que impedem a inclusão das pessoas com deficiência na sociedade.
Conseguimos o envolvimento de algumas famílias que decidiram topar a experiência pioneira.
E assim, em plena pandemia, a obrigação de “ficar em casa” foi o terreno propício para que essas famílias se interessassem pelo tema da moradia para a vida independente.
Pensamos inicialmente que a cidade de São Paulo seria a indicada para um projeto com tamanha envergadura, no entanto, ao abrirmos as inscrições para formação de um grupo piloto, obtivemos 12 inscrições da cidade do Rio de Janeiro e quatro de São Paulo
Decidimos dar início ao primeiro projeto piloto de moradia para a vida independente apenas com convicções de que as pessoas com deficiência são cidadãos com direitos adquiridos por lei, de que o capacitismo impede que tenham uma vida adulta digna e de que “Juntos, Podemos Morar Sozinhos” (nasceu o slogan), ou seja, precisamos nos unir para transformar.
Tivemos a sorte de encontrar pelo caminho o líder um projeto muito legal de residencial para estudantes, Juliano Antunes, que abriu as portas e o seu coração para acolher nosso projeto como parceiro da Uliving.
Em novembro de 2021, cinco jovens entre 25 e 32 anos saíram da casa de seus pais para mostrar que, sim, é possível viver com mais autonomia e independência sempre que, para isso, haja o apoio adequado e capacitado para a promoção da autonomia.
A Uliving-Rio, que fica na Praia do Flamengo, foi o cenário no qual vimos a inclusão acontecer de forma natural e verdadeira, a partir do dia a dia e convivência entre pares com e sem deficiência.
O espaço é um sonho, criado na proposta de coliving. Os apartamentos são pequenos e o local conta com refeitório comum, coworking, área de lazer com piscina, jogos e até um cineminha. Das 200 unidades, dez são ocupadas pelo JNG. Ali, jovens típicos e atípicos convivem
O projeto-piloto teve duração de dois anos, período para ajustes de metodologia e processos, além de avaliação do perfil dos agentes de apoio e realização dos treinamentos. Mantemos uma base de apoio no prédio 24 horas.
O trabalho foi financiado por essas famílias pioneiras e, paralelamente, o Instituto é membro da Rede Brasileira de Inclusão, que reúne organizações que fazem incidência política para a garantia dos direitos das pessoas com deficiência.
Não perdemos de vista a necessidade de discutir a política pública para dar acesso às pessoas. Nós não nascemos para atender apenas 2% da população rica do Brasil, não é o nosso propósito.
Durante a experiência-piloto, podemos afirmar que tivemos muitas conquistas, não só com e para os moradores, mas com impacto direto em seus familiares.
É possível aprender a viver de forma mais independente e com autoestima através das escolhas da vida diária e a partir da construção de identidade que o seu próprio espaço e privacidade oferecem para jovens adultos com deficiência
As famílias precisam mostrar esse horizonte de possibilidades para seus filhos, irmãos. Para essas pessoas, a perspectiva de uma vida adulta independente precisa ser construída, não se dá por meio das oportunidades mais comuns para os jovens neurotípicos.
Gosto de contar que o Nico nasceu no berço do JNG e, mesmo assim, teve dúvidas se queria morar sozinho. Entendi que a insegurança era natural. É papel da família acolher os receios e respeitar o tempo de cada um, mas também mostrar que existe a possibilidade de eles criarem o seu próprio caminho.
Lembro de como fiquei emocionada quando Nico decidiu que iria. Ele está lá desde o primeiro dia. Não queria ir e agora não quer voltar.
Hoje, a moradia independente para pessoas com deficiência é uma realidade no Brasil.
O projeto está pronto para ser replicado em outras cidades. As métricas mostram nossos resultados, mas a experiência incrível que é vê-los viver e terem autonomia é inexplicável.
Gostaria de falar aos pais de uma criança com deficiência. No primeiro momento, é normal o susto, mas mantenham a calma e busquem o equilíbrio do ambiente familiar
Não deixem de dar atenção aos outros filhos, maridos e esposas, e invistam nos recursos necessários para que a criança se desenvolva no ritmo dela.
Aprendam a reconhecer e entender que os sintomas são manifestações de alguma coisa que não está legal e nem sempre o que não está legal é doença.
Pensem no futuro, ela tem o direito de viver como é.
Seja feliz em vida vendo seu filho viver.
Isso não significa abandono, pelo contrário, é fortalecer os laços, mostrando aceitação e apoio em cada fase da vida.
Flávia Poppe é economista com mestrado em Planejamento Social pela London School of Economics e especialista em Serviços de Saúde. Tem mais de 30 anos de experiência na área de políticas sociais. Atuou na iniciativa privada, programas de governo e organizações internacionais. É presidente e cofundadora do Instituto JNG.
Henri e Marina Zylberstajn já eram pais de duas crianças quando Pedro nasceu com Síndrome de Down. Ele conta como a busca de informações sobre a condição levou o casal a fundar uma ONG que promove a inclusão de pessoas com deficiência.
Diagnosticada com Atrofia Muscular Espinhal, Amanda Lyra cresceu ouvindo que nunca conquistaria seus sonhos. Ela decidiu acreditar mais em si do que nos outros e hoje atua como cantora, palestrante e consultora de marketing acessível.
Paloma Santos recebeu um diagnóstico para sua síndrome apenas quando já estava na cadeira de rodas. Hoje, a ilustradora e ativista leva a luta das pessoas com deficiência para a sua arte (e diversidade ao mundo das princesas).