Só na última década, mais de 50 filmes inspirados em histórias em quadrinhos foram lançados mundialmente. Isso sem falar na programação de emissoras de TV ou no menu do Netflix. Alguns personagens, que pareciam coadjuvantes e sem grande importância no universo de empresas do ramo, como Marvel e DC Comics, ganharam produções próprias e um novo séquito de fãs. Quem imaginava, há algumas décadas, que Homem-Formiga e Deadpool teriam filmes para chamar de seus, por exemplo?
Pode-se dizer que o quadrinho nunca foi tão popular. Isso também se deve a eventos como a Comic Con Experience, cuja edição mais recente aconteceu no último fim de semana em São Paulo e que atinge um público maior e mais variado do que prêmios e encontros mais tradicionais, como a HQ Mix ou o FIQ. Por lá, circulam cerca de 200 mil pessoas por edição, e esse público pode encontrar um grupo cada vez maior de quadrinistas no Artists’ Alley, ou “Beco dos Artistas”, área da Comic Con em que os artitas interagem com o público. Este ano, estiveram no “beco” Ivan Reis, Roger Cruz, os irmãos Gabriel Bá e Fábio Moon, e veteranos do quadrinho autoral, como Lourenço Mutarelli.
Todos eles sabem das dores e alegrias de trabalhar na indústria da HQ impressa, aquela que possibilitou todo esse fenômeno de popularidade dos quadrinhos. Apesar da popularidade e de alguns picos de interesse graças a lançamentos cinematográficos, as vendas de HQs impressos não são expressivas no Brasil há anos. Enquanto isso, Marvel e DC prolongam a vida de seus personagens sempre que permitem que um novo desenhista ou roteirista se apodere de suas histórias. Foi assim que artistas como Ivan Reis, Rafael Albuquerque e Bilquis Evely conquistaram seu espaço nos quadrinhos “de herói” (como se diz, em oposição às histórias mais autorais). Todos trilharam um caminho que se abriu no fim da década de 1980, quando um brasileiro provou que desenhar super-heróis gringos não era um sonho distante.
O PRIMEIRO A MOSTRAR QUE DAVA PARA VIVER DE HQ
Quando criança, Marcelo Campos, 52, se apaixonou por quadrinhos, mas ser um desenhista especializado nesse estilo de narrativa não era uma opção. Pelo menos para brasileiros que, assim como ele, viam apenas norte-americanos e europeus assinando edições da Liga da Justiça, Vingadores e afins. Nascido em Três Lagoas (MS), herdou da mãe o gosto por HQs, e fez o seu primeiro curso de desenho em 1983, aos 18 anos, na Escola Panamericana, quando se mudou para São Paulo. Na mesma época, seu irmão mais velho enviou uma das histórias que ele produzia por conta própria para um concurso de uma editora — e assim foi publicada a primeira obra de Marcelo em papel. Foi a fagulha que ele precisava para se entregar ao desenho.
“Lembro de ir em uma palestra de um cara da Editora Abril, que gostou dos meus desenhos e me chamou para fazer um teste lá”, conta. O sucesso rendeu a ele um trabalho como assistente de arte na redação infanto-juvenil da editora, que incluía as revistas da Xuxa, Angélica, He-Man, Bravestar etc.
Seu desejo, no entanto, era ir além: “Eu queria mesmo era entrar na Marvel ou na DC, mas não tinha nenhum brasileiro lá. Eu achava que não tinha a chance mais remota de acontecer”.
Apesar da expectativa fazer o tempo passar devagar, o salto de sonho para realidade aconteceu em pouco tempo. Marcelo já tinha sido promovido a diretor de arte na Abril quando foi convidado para desenhar as suas primeiras páginas para a DC Comics. Começou desenhando títulos menores, tentando equilibrar o seu tempo. Trabalhava das 9h às 18h e virava a noite fazendo gibi. Essa rotina só mudou em 1988, quando foi chamado para desenhar a Liga da Justiça. Já imaginou o que significava para um fã fervoroso de HQ desenhar o Super-Homem?
Assumir o carro-chefe da DC representou uma grande evolução na sua carreira. Com o tempo, ele passou a entender o leitor de cada quadrinho, as particularidades de roteiro, a diferença entre cada estilo de narrativa, traço, arte-final etc. Aos poucos, foi se tornando um expert e, paradoxalmente, isso fazia crescer nele uma vontade por ter mais liberdade criativa:
“A DC não me dava liberdade para fazer meu estilo. Eu seguia modelos de estética de desenho que não curtia mais. Queria fazer mais cartoon”
Como um trabalho puxa o outro, os desenhos de Marcelo enfim chegaram até a Marvel, onde ele assumiu edições de X-Men, Vingadores etc. “Nesse período, eu já sentia que tinha feito tudo. Foi aí que eu decidi abrir uma escola-estúdio, a Fábrica de Quadrinhos, onde a gente faria artes para publicidade e daria cursos”.
DE QUADRINISTA A EMPREENDEDOR, UM SALTO DIFÍCIL
Foi assim que Marcelo passou de quadrinista a empreendedor, embora ele não reconheça em si muitas das capacidades necessárias para gerir um negócio. “A cabeça de desenhista é meio diferente. Aprendi muita coisa abrindo uma empresa, principalmente que sócio é algo complicado”, diz. A Fábrica durou de 1998 a 2003, quando Marcelo percebeu que os trabalhos para publicidade estava “engolindo” a sua proposta principal, de formar desenhistas.
Da experiência ele diz ter tirado o aprendizado de que ter uma escola é uma empreitada que requer mais cuidado. Assim, depois nasceu a Quanta Academia de Artes, que há 10 anos oferece cursos de Desenho, Técnicas de Pintura, Ilustração, Histórias em quadrinhos e Arte Digital. Mais do que isso, o endereço, na Vila Mariana (Zona Sul de São Paulo), se tornou um ponto de encontros de talentos emergentes, entre alunos e professores. No corpo docente estão diversos artistas que cresceram apaixonados por quadrinhos.
UM OFÍCIO QUE TAMBÉM PASSA DO PAPEL PARA O DIGITAL
Ronan Cliquet, 28, está no rol dos artistas da Chiaroscuro, agência que exporta talentos para a Marvel, DC, Skybound e Image Comics. Natural de São Vicente (SP), ele era fã de X-Men e Homem-Aranha desde a infância, quando estudou desenho na escolinha Prancheta.com. Aos 18, mudou-se para São Paulo, para estudar Artes Visuais. Chegando na capital, ele enviou uma série de trabalhos para Joe Prado, que na época trabalhava na agência Art Comics e depois virou sócio da Chiaroscuro, ao lado de Ivan Costa. O resultado foi uma oportunidade de desenhar edições para a editora norte-americana Top Cow, e de lá ele chamou a atenção da DC, onde atualmente desenha as edições do Lanterna Verde.
Ronan fala das habilidades que precisou desenvolver para se firmar como artista regular da casa: “O primeiro susto que levei foi ser obrigado a entregar uma página por dia”. Seu processo também mudou com o tempo — passou do lápis para o desenho digital. Isso eliminou o scanner da sua vida e o ajudou a fazer a própria arte-final. Aliás, esse é um toque que ele dá para seus alunos na Quanta que querem seguir carreira nos quadrinhos para grandes editoras:
“O ilustrador brasileiro precisa saber de tudo para ter trabalho o tempo inteiro, porque as exigências são muito variadas”
Todos esses aprendizados vieram a calhar quando ele lançou sua primeira HQ autoral, A Fonte, no ano passado. A publicação foi da SESI-SP Editora, uma das poucas editoras, segundo Ronan, que oferece boas condições para quadrinistas no Brasil.
Também professor na Quanta, BRÄO, 36, lançou este ano seu trabalho autoral mais recente, Diva Satânica, por meio de uma campanha de financiamento coletivo no Catarse, mas não tem a intenção de abandonar seus outros trabalhos — as aulas de aquarela que dá na Quanta e um freela de animação. “Há 10 anos, eu era muito fechado e arrogante. Aos poucos, entendi que tinha que manter a cabeça aberta, trabalhar com outras frentes”, diz. E complementa: “Quadrinho independente não dá dinheiro no Brasil. Quem faz é porque morre de amor”.
É aquela história: paixão pelo ofício é importante, mas não paga as contas. E muita gente não pode se dar ao luxo de tirar férias para descansar ou se dedicar mais à família, amigos etc. “Principalmente no início de carreira, você tem que entender que precisa se dedicar mais à técnica e lidar com prazos. É difícil, por isso 90% dos desenhistas trabalham com outra coisa, agência ou estúdio, ou ilustração, ou dando aula”, diz Sam Hart, desenhista de graphic novels como Robin Hood e Coldest City (que este ano foi adaptado para o cinema com o nome de Atômica).
O QUE FALTA É DINHEIRO, NÃO CRIATIVIDADE
Sam engrossa o coro de artistas que dizem que a indústria brasileira de quadrinhos sofre por falta de dinheiro, mas não de criatividade. “Apesar disso, hoje há muitas formas de publicar. É possível fazer um financiamento coletivo, imprimir em gráficas com qualidade, ou mesmo lançar digitalmente”, diz.
O niteroiense Marcello Quintanilha, 46 anos, um dos brasileiros mais premiados no quadrinho internacional, é da mesma opinião. Autor de obras como Salvador, Sábado dos meus amores, Tungstênio e Talco de Vidro, ele mora em Barcelona, mas cria histórias de contexto brasileiro. Apesar de publicar exclusivamente no impresso, ele diz que não vê problema na transformação da indústria:
“Não acredito em conflito de mídias. O trabalho precisa ser veiculado, independentemente do meio”
Em todos esses cenários, diz, o artista é responsável por praticamente todo o processo: concepção, produção, impressão, distribuição, controle financeiro etc. É por isso que Marcelo Campos costuma dizer que não existe mercado de HQ no brasil: “O que existe são cenas. Lembro que em 1988 a gente já discutia o que ia acontecer com o mercado de quadrinhos no Brasil”. Apesar da sua preferência pelo material impresso, ele diz que o alcance digital é muito maior, e por isso deve ser explorado.
No entanto, escolher os meios de publicação é o menor dos problemas, na opinião de BRÄO. Para ele, a maior dificuldade do quadrinista é encontrar o seu próprio estilo de desenho:
“Muitos artistas em início de carreira tentam criar narrativas intelectuais demais, e acabam desistindo da profissão depois que não conseguem vender o trabalho. Outra ilusão comum é achar que as redes sociais geram sucesso imediato”
Para ele, o melhor caminho é começar pequeno. Fazer projetos baratos, lançar pela internet e construir um público aos poucos. “Costumo dizer para meus alunos que demora mesmo. Acho que, de tudo o que tentei, só 20% deu certo”.
Todo o processo de organizar a sua produção autoral e publicar por conta própria vale a pena para chamar atenção de grandes editoras. Amilcar Pinna já estava trabalhando em edições de X-Men First Class quando lançou sua HQ Another Planet. Mais tarde, foi convidado para desenhar Vingadores: Age of Ultron justamente porque a Marvel buscava o traço característico da sua publicação. “De lá para cá tem sido cada vez melhor em termos de liberdade”, conta. Segundo ele, seu maior desafio hoje não é entregar uma edição em cinco semanas, mas manter a criatividade afiada e a motivação: “Tenho que tomar cuidado para não virar algo automático e perder interesse”.
A busca por manter criatividade é algo que nem sempre é fácil, concorda Sam Hart. Ele mesmo passou por períodos difíceis de “branco total”. “Fiquei dois anos sem conseguir trabalhar direito por conta de um problema de família que me afetou muito”, diz.
DEPOIS DA EUFORIA, FIRMAR SEU LUGAR É UM EXERCÍCIO DIÁRIO
Se conseguir espaço no mercado já não é fácil, manter-se também não é. Adriana Melo, 41 anos, é uma das primeiras mulheres a alcançar notoriedade no mercado internacional e acumula passagens pela DC e editora Titan. Entre seus trabalhos estão edições de Homem de Ferro, Star Wars e, mais recentemente, Dr. Who. Mas se engana quem pensa que seu maior desafio em relação à profissão foi técnico.
“Quando tive minha filha, esperei quatro anos para voltar a trabalhar. Tive de ser humilde e abrir meu espaço no mercado de novo a cotoveladas”
Esse foi um processo grande de aprendizado para ela, pois também abriu seus olhos para quebrar outro obstáculo da vida do quadrinista, a solidão. “É normal ficar você, a mesa, o computador e a luminária. Você se fecha mesmo, ainda mais com prazo apertado, e eu já passei duas semanas sem colocar o pé para fora de casa. Mas agora valorizo demais o contato com leitores e outros quadrinistas”, diz.
Adriana se apaixonou por quadrinhos de heróis aos 17 anos, e decidiu que era isso que faria dali para frente quando leu uma entrevista de Roger Cruz, em que ele falava da profissão. Depois de colar a página da revista na porta do seu armário, ela foi a uma palestra de Marcelo Campos (onde ela lembra de ter sido a única mulher no meio de 30 homens) e conseguiu mostrar seus desenhos. “Ele me propôs um estágio. Eu poderia ir todos os dias no estúdio onde ele, o Roger, Fábio Laguna e outros artistas se encontravam para desenhar, para observar e entender como funcionava a produção de quadrinhos”, conta.
Passaram-se sete meses até que ela se candidatou para fazer 11 páginas de uma edição do Homem de Ferro para a Marvel. “Não tinha internet, era tudo resolvido por telefone, não tinha scanner, as páginas iam fisicamente até as editoras e as referências eu tirava de biblioteca mesmo”, diz. Até hoje, Adriana se diz surpresa por ter conseguido trabalhar com HQs: “Algumas pessoas emplacam rápido, mas é raro. No início, o trabalho não é constante e nem todo mundo pode ser dar ao luxo de esperar para ver a coisa rolar. Você trabalha para editoras menores que podem ou não te pagar. Quando você vira profissional e tem um título mensal, aí consegue se planejar financeiramente”.
Viver só de quadrinhos é algo que Adriana sempre quis, e hoje ela consegue, mas foi preciso manter os pés no chão e dar o suor pelo trabalho para ter disciplina para organizar a sua rotina. Ela dá a dica a quem quer seguir na profissão:
“O principal para quem está começando é planejamento e organização, duas palavras que assustam muitos desenhistas”
Em contato com os alunos todos os dias, Marcelo Campos conta que o que mais motiva seu trabalho ver novos talentos conseguindo entrar no mercado, trabalhando com desenho, seja quadrinho, ilustração, publicidade ou animação. “É legal ver que a mídia hoje presta mais atenção, dá valor maior para quem trabalha com quadrinho. Essa coisa de sucesso comercial mais aparente ajuda a perceber que desenho pode dar dinheiro sim. Não que essa seja a motivação principal, mas é muito importante”, opina.
QUADRINHO POPULAR NÃO É PALAVRÃO
O que todos eles gostariam de ver, no entanto, é o maior acesso de novos leitores. Marcelo aponta uma característica do mercado brasileiro que, na sua opinião, deveria mudar: a fixação por nichos. “Quem compra é também quem produz, assim o mercado não cresce. O quadrinho deveria ser mais popular”, afirma.
Essa popularidade não depende mais de bancas de jornal ou de grandes distribuidoras, como antigamente. Agora, está nas mãos dos artistas, que podem não ter o suporte ideal para vender seus trabalhos, mas estão longe de deixar o mercado nacional de quadrinhos morrer.
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