Como um doce pode ser, além de delicioso ao paladar, uma forma de discutir sobre representatividade, memória e ancestralidade? A Dona DÔ’s Doces prova que isso é possível.
A marca vende chocolates com sabores inspirados em doces típicos da África. São trufas, barras, bombons e ovos de Páscoa.
“Eu brinco que comecei do nada. Primeiro, quis ser a confeiteira do meu bairro e hoje eu sou uma confeiteira afrocentrada que quer adoçar histórias”
Quem diz isso é Domênica Sousa ou dona Dô, como gosta de ser chamada, fundadora do negócio ao lado do marido, Ronaldo. A confeitaria chegou a ganhar um reality show, em 2021 (“Que Seja Doce”, GNT), foi finalista do programa “Quanto Vale esse Prêmio Doce” (GNT, 2023) e eleita um dos dez melhores empreendimentos periféricos de São Paulo pela Expo Favela Innovation 2024.
Em 2014, Domênica e Ronaldo queriam apenas economizar na Páscoa. O plano era simples: aprender a fazer ovos caseiros para presentear os quatro sobrinhos mais seis afilhados e driblar os preços altos do mercado.
Naquela época, Domênica tinha descoberto que gostava de cozinhar e, principalmente, fazer doces, mas isso não foi sempre assim.
“Quando casei, não sabia fazer nada na cozinha e minha irmã falava que meu marido ia morrer de fome… Eu adoro contar essa esse episódio porque para mim é uma história de superação”
Depois da experiência, o casal seguiu produzindo ovos para a família nas duas Páscoas seguintes, até que uma amiga falou que eles deveriam fazer o doce para vender. Mas o papo ficou só nisso. Tempo depois, a amiga cutucou novamente Domênica e ela criou uma linha de ovos, definiu preços e… as vendas foram um sucesso.
Aí foi a vez de Ronaldo cutucar Domênica, perguntando se eles iriam ficar na sazonalidade e vender apenas na Páscoa. O casal decidiu arriscar. Primeiro, criou um cardápio de sobremesa para vender para restaurantes, com tortas e mousses, e depois uma linha de trufas. Até aí, as trufas tinham sabores tradicionais, diferente do que o casal faria depois.
Em 2018, o casal de Diadema, na Grande São Paulo, teve a oportunidade de participar do Afrolab, o programa de aceleração para empreendedores negros e indígenas criado pelo Instituto Feira Preta.
“Naquela formação, entendi o que era ser uma mulher preta empreendedora. E no mesmo ano, por ter feito parte da aceleração, pude participar da Feira Preta [o evento foi cancelado em 2025 por falta de patrocínio]”
Mas Domênica queria levar algo especial, além das trufas de chocolate, maracujá e coco. Foi aí que surgiu a ideia de acrescentar um sabor especial às suas criações e, após uma série de pesquisas, ela chegou ao qumbe, um doce típico da Somália à base de coco caramelizado.
“O qumbe veio para o Brasil junto com a população escravizada e sofreu um apagamento porque era consumido por pessoas que participavam de cerimônias de religiões de matriz africana”
O casal, no entanto, não parou no qumbe. Fizeram outras pesquisas, trocaram receitas com africanos e montaram uma linha completa de doces afrocentrados, batizada de Origens, aprovada por quem é do continente inspiração.
“Em dezembro do ano passado, durante o Expo Favela, conheci um rapaz de Porto Príncipe [capital do Haiti]. Perguntei se ele queria provar a trufa de qumbe e ele ficou meio ressabiado, disse que no país aquele doce se chamava açucarinha. Quando ele comeu, ficou emocionado e ainda trouxe um amigo para provar a trufa no dia seguinte.”
Além do qumbe, outro doce que recheia os chocolates da marca é o adis abeba, mesmo nome da capital da Etiópia.
“A Etiópia foi o único país que não teve seu povo escravizado, mas ele foi invadido pela Itália. O adis abeba se assemelha a uma palha italiana, feito com bolacha e uva passa. E aí fica a pergunta que ainda ninguém soube me responder: a palha italiana é inspirada no adis abeba ou o adis abeba é inspirado na palha italiana?”
O malva pudding, por sua vez, é um doce típico da África do Sul. “Não achei um registro de uma história específica sobre ele, mas é uma sobremesa de travessa servida em grandes banquetes. Parece um pudim de pão. Mas assim como todas as outras receitas, a gente adaptou para que ficasse mais interessante ao paladar brasileiro.” O doce é feito com bolo, ganache de baunilha e geleia de damasco.
Caixa Joias da África, com os cinco sabores de trufas da linha Origens.
Outros chocolates inspirados em iguarias da África do Sul são as versões de trufas e barras com licor (Amarula) e o melktert, que leva ganache de leite com pedaços de biscoito e canela polvilhada. “A história que eu conheço é que esse doce foi adaptado pelos negros a partir da receita de uma torta trazida pelos holandeses que invadiram a África do Sul.”
NÃO É SÓ SOBRE VENDER CHOCOLATE, É SOBRE UM RESGATE HISTÓRICO E CULTURAL
Atualmente, as trufas da marca custam R$ 8,50; as barras, 38 reais; e os ovos de Páscoa têm preços variados. A marca também conta com itens presenteáveis, como a caixa Joias da África, com todos os sabores de trufas da linha Origens (75 reais). Mais do que vender chocolate, no entanto, o lema da Dona DÔ’s Doces é adoçar histórias, como gosta de destacar Domênica:
“Acho que uma das principais missões da nossa marca é fazer as pessoas entenderem que a nossa cultura sofreu um apagamento por conta da escravidão, seja na parte das vestimentas, seja na alimentação”
Ela ainda diz que é preciso quebrar a ideia de que a confeitaria só existe no eixo eurocêntrico, ideia aceita inclusive por muitas pessoas negras.
“Queremos mostrar que tem doce na África, fazer esse resgate e trazer essa cultura para os nossos. Eu gostaria muito que meu filho tivesse acesso a um doce que foi passado de geração em geração na nossa família, mas isso foi arrancado da gente. Então, estamos tentando recuperar essa história.”
O envolvimento de Domênica e Ronaldo com o chocolate começou na Páscoa e essa continua sendo, claro, uma ótima época para as vendas, com ovos da linha Origens embalados com capulana, um tecido africano.
A empreendedora resume a trabalheira desse momento:
“Já estou ficando quase louca! Além de encomendar ovos, muitas empresas costumam convidar a gente para participar de feiras de Páscoa — e estamos com quatro marcadas para os mesmos dias”
Para dar conta de todos os eventos, Domênica pretende contratar um funcionário temporário para produzir os ovos, junto com ela e Ronaldo, no ateliê que o casal construiu em sua casa, em Diadema.
Os cinco sabores da linha Origens na versão Ovo de Páscoa.
A empreendedora também deve contratar alguém para marcar presença nas feiras. “Aí eu vou ter que treinar essa pessoa, porque ela precisa saber contar a história que tem por trás, não é simplesmente vender o produto.”
Ano passado, Domênica diz que produziram 420 ovos e faturaram cerca de 35 mil reais. E a expectativa para este ano é dobrar a quantia e o faturamento.
Atualmente, os interessados em comprar produtos da marca podem encomendá-los pelo site ou pelo WhatsApp. Mas em breve, um dos itens da Dona DÔ’s Doces poderá ser encontrado no mercado, o African Bites, uma caixinha com 18 mini bombons da linha Origens (sabores da África).
“Estamos nesse processo de testes e de cumprir todas as obrigatoriedades para colocar esse produto no varejo.”
A caixinha de African Bites deve chegar ao varejo em breve.
Outro plano de curto prazo do casal é lançar uma linha chamada Brasilidades, com ingredientes tropicais; por enquanto, Domênica evita adiantar os detalhes.
“Essa linha vai rivalizar com a Origens, mas a gente quer mesmo criar um caos na cabeça das pessoas: e agora, qual eu compro? Compra tudo!”
Por fim, Domênica tem um sonho que, quando realizado, vai ajudar a enriquecer as histórias e sabores divulgados pela marca: “Minha meta é fazer um mochilão pela África para trazer diferentes tipos de doces de lá”.
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