Foi por acaso que a então estudante de jornalismo Mauana Simas, 27, começou a estagiar no Programa Especial, exibido pela TV Brasil. Ao seu lado na equipe, havia uma repórter com síndrome de Down, uma apresentadora cadeirante, uma intérprete surda. A experiência mudou a forma como Mauana via a deficiência: “Este público geralmente é visto como menor, como se precisassem de ajuda, de cuidado. Mas, ali, eles eram meus colegas de trabalho. Se não fizessem bem a parte deles, iriam atrapalhar a minha e vice-versa. Era uma posição profissional muito de igual para igual”, conta.
O estágio durou dois anos, mas seus reflexos têm vida muito mais longa: hoje, Mauana é fundadora, ao lado de Gabriel Mayr, 33, da Nós Todos Filmes, uma produtora especializada em acessibilidade audiovisual que oferece três tipos principais de serviço: adicionar um intérprete ou a legendagem descritiva à imagem (para surdos) e fazer a transcrição em áudio (para cegos). O negócio envolve uma equipe de 12 colaboradores – três deles, consultores com deficiência. A precificação, como boa parte dos serviços na área audiovisual, é feita por minuto e a adaptação completa de um filme de 90 minutos fica entre 9 e 10 mil reais.
A Nós Todos nasceu em 2013. Àquela altura Mauana sabia que o serviço era necessário e acreditou nele, mesmo sem saber se o mercado abraçaria a ideia. Com um ano de operação, a surpresa: sua produtora ganhou um gás inesperado no fim de 2014, com a publicação da Instrução Normativa 116 da ANCINE, que determina que todos os produtos audiovisuais financiados com recursos públicos devem contemplar serviços de legendagem descritiva, audiodescrição e janela de Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS.
EMPREENDER PARA CRIAR O MERCADO EM QUE SE QUER ATUAR
Mauana conta que a ideia de fundar a Nós Todos surgiu no fim de 2012 quando, formada em jornalismo e há dois anos emendando projetos audiovisuais, ficou sem trabalho. Depois do estágio no Programa Especial, ela havia passado por três produtoras, nas quais fez projetos para clientes como os canais Canal Futura e Multishow. Quando o último destes trabalhos terminou, Mauana pensou no que gostaria de fazer. Ela recorda:
“Percebi que queria voltar a trabalhar com acessibilidade. Comecei a pesquisar quem fazia isso, mas não encontrei ninguém para bater na porta e me apresentar”
Foi então que Gabriel Mayr, seu namorado na época e fundador da Urece, entidade que promove eventos esportivos para portadores de deficiência, sugeriu que ela mesma abrisse uma produtora para fazer o que gosta. “Eu conhecia os processos, tinha uma rede de contatos… Pensei que poderia ser mesmo uma possiblidade”, diz Mauana. Ela fez um esboço da ideia e, também incentivada por Gabriel, participou em 2013 do programa Shell Iniciativa Jovem para finalizar o plano de negócios. No fim do ano, a empresa estava formalizada, com Mauana e Gabriel como sócios. O casal não está mais junto, mas a parceria profissional continua e vai bem.
Juntos, eles investiram 10 mil reais na abertura da empresa – entre formalização, computador para edição de vídeos e gastos como papelaria e site. A Nós Todos ainda foi premiada com mais 8 mil reais pelo Shell Iniciativa Jovem, valor foi totalmente convertido em mais equipamentos, como câmera e iluminação. Mauana conta que, pelo menos no começo, a Nós Todos foi muito embalada pelo sonho de trabalhar com acessibilidade:
“A gente se perguntava quem compraria nossa ideia. A adaptar audiovisual é um investimento e ainda não existia a instrução normativa, ou seja, ele podia até acontecer por responsabilidade social, estratégia, mas não era obrigatório”
No primeiro ano a Nós Todos já encontrou algumas respostas: alguns clientes compraram a ideia. Eles produziram uma série de videoaulas para pessoas surdas, ganharam um edital do Canal Futura e fizeram projetos-piloto. As cifras eram modestas, mas validaram a proposta. Até que, para finalizar o ano, em dezembro a ANCINE publicou a instrução normativa que encheu os sócios de otimismo para 2015.
Era hora de correr atrás: os dois frequentaram eventos, conversaram com produtores, compareceram a dezenas de reuniões. Enviaram ao todo 80 orçamentos. Mas só fecharam quatro projetos. “Foi um ano horrível”, conta Mauana. Com pouco faturamento, tiveram de enxugar os custos e maneirar na empolgação: fecharam a sala comercial, trocaram de contador para um serviço online, negociaram mensalidades de associações. E, para se sustentar, em paralelo, Mauana fazia trabalhos como freelancer:
“Quando a grana apertou, entrou a culpa. Eu tinha que trabalhar em outros projetos, para ganhar dinheiro, e sofria por ver o meu próprio, a Nós Todos, ficando para trás”
Foi preciso muita resiliência para aguentar firme um ano inteiro de quase marasmo, mas eles conseguiram atravessar a tormenta. Estão inteiros, navegando numa maré melhor, mas ainda pretendem tirar do período ruim um ensinamento: decidiram enviar aos 80 clientes sondados e que não fecharam uma pesquisa para entender as razões da recusa.
QUANDO UM ACASO CONFIRMA A SUA APOSTA
Inicialmente, lá atrás, Mauana pensara no negócio voltado a consumidores que pudessem pagar para ter seus conteúdos audiovisuais adaptados para acessibilidade. Era uma aposta. A nova legislação, no entanto, fez com que ela e Gabriel ajustassem o foco de vendas: desde então, a estratégia é buscar os produtores independentes, que receberam algum incentivo público para produzir e, portanto, têm de oferecer a contrapartida da acessibilidade, por lei.
Isso inundou a Nós Todos de trabalho. Eles devem fechar 2016 com 12 projetos (sendo que quatro são séries com dezenas de episódios) audiovisuais tornados acessíveis. Com isso, vão faturar 52 mil reais. Hoje, Mauana e Gabriel não se dedicam 100% à Nós Todos: ambos são envolvidos com a Urece, da qual Gabriel é um dos fundadores. Tudo indica, ou assim eles desejam, que a partir de 2017, a produtora seja a única fonte de renda de Mauana. Por ora, eles comemoram o break even, conquistado no meio deo ano. E seguem desbravando o mercado. Há muito por fazer. Desde comunicar o que fazem até atingir um espectro maior de clientes.
MAS O QUE É ACESSIBILIDADE AUDIOVISUAL?
De acordo com o Censo 2010 do IBGE, no Brasil há mais de 8 milhões de pessoas com deficiência visual ou auditiva severa. É um público considerável, que está à margem de produções audiovisuais. Há três principais maneiras de tornar um produto audiovisual acessível. A primeira é a janela de LIBRAS, para pessoas que nasceram surdas, nunca foram oralizadas e não têm fluência em português. Para aqueles que perderam a audição ao longo da vida e por isso conhecem o português, há a legendagem descritiva, que transmite em legendas os diálogos e referências sonoras como trilha e ruídos. Os deficientes visuais são atendidos pela audiodescrição que, como o nome indica, relata por áudio elementos visuais do cenário e movimentos de câmera, e é inserida junto com o áudio original.
Os produtos da Nós Todos são sempre editados ao lado de consultores com deficiência. E há ainda as particularidades de cada projeto: para uma série infanto-juvenil, por exemplo, eles buscaram uma intérprete de 12 anos. Para outro projeto, voltado a crianças de 6 a 12 anos, estão usando palavras menos rebuscadas na adaptação. “Tentamos adaptar ao máximo para que aquilo fique tão legal quando a obra”, diz Mauana.
OS DESAFIOS DE ATUAR EM UM MERCADO INABITADO
A lista de projetos que a Nós Todos fechou este ano é um sinal de que ser pioneiro, em um novo mercado, tem suas vantagens. E também uma quantidade enorme de desafios. “Muitos clientes estão pela primeira vez trabalhando com estes serviços. É algo muito novo, então é natural que ainda não haja parâmetros – tanto de conhecimento técnico para identificar o que é uma boa adaptação, quanto para entender a precificação do que oferecemos”, diz Mauana.
Outro desafio é encontrar mão-de-obra qualificada para atuar nas adaptações. Hoje, a empresa tem três consultores com deficiência, mas a fundadora diz que é difícil encontrar consultores que entendam de linguagem estética.
E há o medo do futuro. Este é comum a qualquer empreendedor. Mas, especialmente atuar no âmbito da Cultura e suas políticas públicas — nunca se sabe se o chão que se pisa é firme o suficiente para a caminhada. Mauana sabe que a instrução da ANCINE foi um divisor de águas para a consolidação da Nós Todos, e também está ciente de que depender do incentivo governamental é também a grande vulnerabilidade de seu negócio.
“O Ministério da Cultura quase foi extinto. E se eles acabam com a ANCINE? Estamos num momento bom, a tendência é que a gente consiga se estabelecer, mas isto é sempre um ponto de atenção”, afirma.
Determinar o futuro é impossível, sabemos. Então Mauana tem aproveitado para mexer no que é possível. Por exemplo, aprender com os seus próprios erros. Ela considera um dos principais erros tem alugado a sala comercial, logo no início da jornada: “Achávamos que precisávamos de uma estrutura impressionante. Jogamos muito dinheiro fora com isso quando ainda estávamos numa fase experimental”. Daí, ela tira uma lição importante:
“Você não precisa se mostrar um peixão grande para aparecer. É possível fazer um trabalho muito positivo sendo pequeno e se desenvolvendo aos poucos”
Para o futuro, a Nós Todos espera se estabelecer no mercado (e que este se estabeleça). Quer também dar um novo passo, visando levar acessibilidade audiovisual também para museus. Mas o crescimento ainda é uma incógnita: “Acho que muitas empresas perdem um pouco da missão quando crescem muito e passam a ter grandes preocupações, custos fixos altos. Tenho um certo medo disso. Já o Gabriel acha que vamos dar uma guinada”. É impossível saber o final deste filme. Mas ele segue sendo contado com afeto, coragem — e acessibilidade.
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