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“Construí meu próprio motorhome numa Fiorino e assim realizo meu sonho de viajar pelo mundo”

Camila Caggiano - 25 out 2019
Durante suas viagens, Camila se dedica a fotografar e escalar. E compartilha todo o conteúdo no blog Sob as Estrelas.
Camila Caggiano - 25 out 2019
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por Camila Caggiano

A minha natureza sempre foi acreditar que podia fazer qualquer coisa que quisesse. Estava na faculdade o dia que o fotógrafo Klaus Mitteldorf, uma lenda da fotografia, entrou para dar uma palestra. Fiquei encantada com as fotos e decidi que queria trabalhar com ele.

Entrei numa livraria, comprei um exemplar do livro e descobri que o prefácio tinha sido escrito pelo reitor da faculdade. Invadi a sala do reitor dizendo que precisava trabalhar com o Klaus Mitteldorf. Ele disse que não estavam mais em contato, mas me passou um número de telefone. Liguei para o estúdio e marquei uma entrevista.

A primeira pergunta que o Klaus fez foi sobre a minha experiência. Respondi que estava trabalhando no Estúdio Abril (braço de brand content da editora) havia três meses. Ele respondeu: “Você sabe que não tem experiência suficiente para trabalhar comigo”. Sem pensar respondi: “Sei, e sei que se você me contratar nunca mais vai querer outra assistente”. E foi assim que me tornei assistente desse fotógrafo de renome mundial.

Muitos anos depois, decidi trabalhar em cinema. Me inscrevi num workshop de direção de fotografia. Ali escutei de outro aluno que era quase impossível ser assistente de câmera — a primeira etapa da hierarquia da carreira de direção de fotografia –, sem ter formação em Cinema. Minha graduação em Publicidade não me ajudaria em nada.

Descobri que a fotografia de cinema estava dividida em duas áreas, câmera e elétrica. Se ser assistente de câmera era difícil, comecei a investigar sobre a elétrica. Me disseram que era um trabalho exclusivamente masculino, trabalho braçal. “Mas não existe nenhuma mulher?”, questionei. “No Brasil, não”, foi a resposta. Meus olhos brilharam e pensei: “Ótimo, vai ser fácil me destacar”.

No inicio foi duro, havia muito preconceito, mas minha força física devido aos esportes me permitia competir com os homens. Depois de alguns meses recebi o DRT (certificado que permite atuar na profissão) como primeira eletricista de cinema do Brasil

Mas com o passar dos anos, essa ousadia, quase uma rebeldia adolescente, foi diminuindo e comecei a aceitar muitas coisas como sendo difíceis ou achando que não valia a pena lutar por elas. A rotina no trabalho e relacionamentos abusivos me afastaram da minha essência. Tornou-se comum entrar num relacionamento recebendo total admiração e terminar escutando que eu não tinha valor algum. A cada final de relacionamento, eu me sentia mais inferior. Até que um dia decidi dar um basta e cuidar da minha saúde mental.

Poucos meses de terapia foram suficientes para descobrir o mecanismo de projeção que normalmente acontece nos relacionamentos. A terapeuta me perguntou: “O que você gosta nele?” Respondi que o achava uma pessoa muito forte. Ela falou: “Ele mal saiu de uma história e já está com outra mulher enquanto você resolve passar o Réveillon isolada para se conhecer e você acha que ele que é forte?”

Voltei a acreditar em mim e cuidar da minha autoestima. Assisti a um documentário, Maidentrip, sobre uma menina que fez a volta ao mundo de veleiro, sozinha, aos 15 anos de idade. Me vi naquela menina. Também vi todos os sonhos que deixei para trás e me perguntei: “Quando foi que os sonhos morreram?”

A resposta foi fácil de encontrar. Eles morreram no dia que comecei a ganhar bem. Troquei os sonhos por uma rotina glamourosa de trabalho dentro de estúdios de fotografia. Mas conhecer o mundo seria fácil, afinal eu tinha dinheiro para viajar.

A realidade da vida de autônoma não é bem essa. O que acontece é que, se você tem dinheiro é porque está trabalhando, logo não tem tempo para viajar. Se tem tempo é porque o trabalho ficou escasso, logo não pode se aventurar em viagens

Mas eu não podia acreditar que tinha desperdiçado anos de vida desistido dos sonhos. Aos 42, me sentia em ótima forma física, participava de competições esportivas e os sonhos ainda existiam em mim com a mesma força de quando era adolescente.

Vou rodar o mundo, estava decidido. Como vou fazer isso? Ao contrário do que eu imaginava no inicio da minha carreira, o trabalho não tinha me tornada milionária.

Comecei a analisar como fazer uma viagem pelo mundo com baixo custo e cheguei a conclusão de que um dos maiores custos da viagem é a estadia. Até acampar, em muitos lugares pode ser bem caro. Aí veio a ideia. Se eu tiver um carro que eu possa dormir dentro, não gasto com hospedagem.

Saí a procura de um carro usado, barato, que eu pudesse jogar um colchão dentro, algum tipo de furgão. Até que vi na internet fotos de algumas campervans que pareciam um mini hotel. Então, decidi investir num carro novo, seria minha casa nos próximos anos.

Dentro das minhas possibilidades, optei por uma Fiorino. Decidi que não iria pagar para alguém fazer a adaptação, eu mesma faria. Aquela menina que se tornou a primeira eletricista de cinema do Brasil estava desperta dentro da mulher atual. Foram cinco meses de construção e muito pesquisa na internet. A única parte que terceirizei foi a parte elétrica. Justamente por conhecer bem o assunto, sabia dos riscos envolvidos.

Durante a construção do meu motorhome o que mais escutei foi que eu não poderia fazer isso, que eu era mulher e seria muito perigoso. Mas a ousadia adolescente, a autoestima, tudo estava de volta e nada me impediria.

Em dezembro de 2017, me tornei a primeira mulher a ir de São Paulo até Ushuaia, na Argentina, num motorhome feito com as próprias mãos. Foram três meses de viagem e 15 mil quilômetros percorridos

As pessoas me perguntavam se eu não tinha medo, se não me sentia sozinha, mas a grande descoberta que fiz nesse período é de como gosto de estar só. Claro que sendo uma pessoa comunicativa, nunca estou só. Mas poder me refugiar no meu carro e me isolar nos momentos que quero se tornou um grande prazer.

Morar em um caixotinho não é simples, exige muito desapego. Passei dias sem banho, o que descobri ser a maior dificuldade nesse estilo de vida. Mas junto com as dificuldades vem a sensação de liberdade e descobertas de como uma vida simples é gratificante

Passei minha noite de Natal sozinha à beira de um lago em Ushuaia. Um lugar afastado. Quando cheguei havia uma família fazendo um churrasco, mas logo foram embora e fiquei sozinha. Por sorte, antes de irem embora, me dei conta de que eu não tinha isqueiro para acender uma fogueira.

Perguntei se poderiam me vender o isqueiro deles. Os dias em Ushuaia são muito frios, as noites ainda mais, mesmo no verão. Me deram o isqueiro de presente. Acredito ter sido um dos mais importantes presentes que já ganhei de Natal.

Só senti medo em dois momentos da viagem. Um foi numa noite de tempestade com raios muito fortes. Eu sabia que dentro do carro estaria segura, uma das melhores gaiolas de Faraday é um carro. Mas ainda assim foi assustador. A segunda vez que senti medo foi quando resolvi conhecer uma cidade fantasma.

A noite de Natal em que Camila passou sozinha à beira de um lago em Ushuaia.

Passei a noite ali sozinha para fazer umas fotos. O cenário era de filme de terror e os sons noturnos de corujas e uivos fortaleciam a cena em que a mocinha morre.

Mas apesar da sensação estranha, fiquei tranquila. O medo surgiu na hora em que uns moleques chegaram em motos fazendo uma grande algazarra.

Eu era uma mulher sozinha, era o lado vulnerável. Apenas cumprimentei e fui embora. Nada aconteceu. Acredito não ter corrido riscos em nenhum momento da viagem.

Com a confiança adquirida e amor a essa nova vida, me preparo para uma nova jornada. Em dezembro deste ano parto rumo ao Alasca, em mais uma jornada solitária em meu mini motorhome.

A estimativa de viagem é de uma ano e meio a dois anos. É possível fazer em muito menos tempo, mas a intenção não é bater recordes de estrada, mas escalar (o atual esporte que pratico) e fotografar todas as montanhas das Américas.

A insegurança financeira é uma realidade, mas não será barreira. Já fechei parcerias e sigo conversando com algumas empresas. Além de que no mundo atual, não preciso mais fotografar para alguma revista, escrevo crônicas de viagem no blog que criei, fotografo, faço vídeos para o Youtube, ou seja, ao invés de fornecer material para outros, crio meu próprio conteúdo.

A viagem a Ushuaia rendeu um documentário que estará disponível ainda esse ano. Na jornada rumo ao Alasca pretendo fazer mini docs e relatar todo o aprendizado do caminho.

Daqui em diante sigo fazendo o que amo e gerando conteúdo que possa mudar a vida de outras pessoas que também estão em algum tipo de busca.

 

Camila Caggiano, 44, é fotógrafa e cronista do blog Sob as Estrelas. Trabalhou em grandes produções de cinema e, esse ano, produziu e dirigiu o documentário da sua viagem a Ushuaia, “Sob as Estrelas – diário de bordo”, que irá para as telinhas em breve.

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