Ludmilla Rossi e Flávia Saad, ambas de 36 anos, têm em comum o amor à cidade natal de ambas, Santos (SP), mas têm competências complementares, o que as ajudou a criarem um projeto que começou como um blog de conteúdo hiperlocal, o Juicy Santos, e se desdobrou no Juicybazar, um bazar solidário que, em sete anos, aumentou a vida útil de mais de 30 mil produtos e gerou mais de 280 mil reais para diversas ONGs. Nessa trajetória não faltaram histórias de bairrismo, mas também reviravoltas, epifanias, mentores e até um diagnóstico de câncer.
Ludmilla se diz empreendedora “desde criança”. “Vendia marcador de livro na sala de aula, troquei trabalho de escola por um chaveiro…”, conta. Aos 14 anos já usava a internet (lembremos que há 20 anos isso não era tão comum assim), cursou publicidade e marketing e, no primeiro estágio, o chefe gostou da iniciativa dela em inserir a empresa no então nascente mercado digital e perguntou se ela queria ser dona do próprio negócio. “Eu sempre quis”, conta. Assim, em 2001, surgiu a MKT Virtual, pioneira no mercado digital na Baixada Santista, reunindo o ex-chefe, Ludmilla e seu então namorado e hoje marido, Maurício, que estudava programação.
Passaram por toda a jornada do empreendedor, “principalmente do despreparado”. O mercado local era pouco animador. “Quebramos pedra para ensinar a diferença entre site e e-mail”, conta. Em 2005, ganharam tração, abriram um escritório em São Paulo e conquistaram como cliente a banda santista Charlie Brown Jr. Mas Ludmilla conta que ela e o marido só se tornaram gestores de verdade após a empresa crescer e se mudar para um novo escritório, em 2010, já com vinte funcionários. Logo perceberam a carência de mão de obra qualificada em Santos e passaram a oferecer capacitação em marketing digital. Aos poucos, o ecossistema da empresa passou a contar também com a produtora de conteúdo audiovisual Mokotó e a produtora de experiências interativas e games Mukutu. “Ainda faltava uma coisa”, diz. Era Flávia.
Desde 2008 Ludmilla tinha a sensação de não saber o que acontecia de legal em Santos. “Havia um apagão de informação”, diz. Decidiu que precisava de um braço de mídia e conteúdo, focado na Baixada Santista. A ideia só decolou três anos depois, quando encontrou a vizinha de infância Flávia Saad, jornalista que, na época, trabalhava na área digital do grupo A Tribuna.
O encontro das duas aconteceu, por coincidência, no dia do aniversário de Santos (26 de janeiro). “Enquanto a Lud não sabia o que acontecia na cidade, eu era muito mais informada, tinha um monte de fontes, era pauteira”, conta Flávia. Ludmilla completa: “Sentimos essa sinergia no dia em que nos conhecemos e, menos de um mês depois, o blog estava no ar”. Flávia entrou no Juicy Santos para aplicar a cultura de redação jornalística e trazer reportagens bem apuradas, enquanto Ludmilla trouxe design e UX. “No primeiro dia batemos 500 visitas, recebemos um monte de mensagens com elogios e pensamos: ‘tem alguma coisa aí’. Aqui se investia pouco, e falamos para nós mesmas: ‘esse blog vai mostrar que um veículo digital consegue dar resultados’”.
COM CONTEÚDO LOCAL, O BLOG PASSOU A SER MAIS DO QUE ELAS IMAGINAVAM
O diferencial do Juicy Santos, desde o início, foi o conteúdo hiperlocal (há desde dicas para o fim de semana até vagas de emprego) e apaixonado pela cidade portuária . “Faltava qualificar o que acontecia em Santos e a história da cidade. A mulher que mais contribuiu com a economia do Brasil, a Pagu (a artista plástica Patrícia Galvão), que trouxe a primeira semente de soja da China, viveu em Santos, trabalhou na Tribuna e eu não sei onde morou, como foi a vida dela. Na Europa qualquer lugarzinho traz um olhar pitoresco. Desenvolvemos isso aqui”, diz Ludmilla, lembrando que muita gente mais jovem está indo morar na cidade em busca de qualidade de vida (algo que muitos aposentados também fazem). Para Flávia, “a galera da nossa geração quer poder pegar o filho na escola e ir para a praia, no parquinho, uma rotina diferente”.
Ludmilla deixou Flávia como “dona” do Juicy Santos, e a jornalista teve que aprender a ser empreendedora. “Caí de paraquedas e fiz uma pós em gestão e marketing porque precisava ter outras habilidades, gestão de pessoas, financeira”, conta. Uma de suas ideias foi incentivar os empreendedores locais, em especial, a turma da economia criativa. Para Ludmilla, “movimento” é a palavra que resume a ideia por trás do Juicy Santos:
“Entendemos intuitivamente que nascemos para gerar movimento: de pessoas, dinheiro, coisas”
A ideia de criar um bazar de trocas surgiu em 2011. “Sempre tivemos em comum gostar do vintage, e aqui não tinha onde comprar, é uma cidade conservadora”, diz Flávia. No início, a proposta era apenas estender a vida útil dos produtos, mas “tínhamos vontade de fazer um negócio social, com viés beneficente”, conta Ludmilla. De um simples bazar de trocas, pensaram em um embrião de negócio social. “Pedimos para as pessoas doarem o que não querem mais e vendemos, por um valor super barato, gerando dinheiro para quem precisa. Já transformamos 30 mil produtos usados, que seriam descartados, em valor novamente. A pessoa passa refletir sobre o consumo. Abre o armário e pensa: ‘porque eu tenho cinco camisas brancas iguais?’”, diz Ludmilla.
O primeiro Juicybazar aconteceu no salão de festas de uma amiga. “Chamamos umas 50 pessoas e tiramos 1.800 reais de venda. Fomos ao supermercado, carregamos o porta malas, chegamos na creche e parecia uma festa”, lembra ela. No mesmo ano, fizeram o segundo, já no espaço do escritório. “Foi crescendo, com a divulgação sempre nos nossos canais. Um belo dia, tinha fila na porta. Não dava pra circular”. A arrecadação crescia, mas a gestão ainda era de um bazar “dazamigas”. Com pouca estrutura, o sucesso mostrava a elas que era preciso dar um passo além.
O QUE PODE SER MELHOR PRA UM BAZAR QUE AS ROUPAS DE UMA EX-BBB?
Na hora do salto, receberam uma força da jornalista e blogueira Juliana Goés, participante da 8ª edição do Big Brother Brasil e influenciadora online na área de lifestyle e beleza. “Ela queria adotar um estilo de vida mais minimalista e falou: ‘posso ser parte disso?’”, conta Ludmilla. Criaram um espaço premium dentro do Juicybazar com a marca da ex-BBB: “Muita gente ia só para tirar foto, mas sabiam que lá iam encontrar coisas mais selecionadas. Foi um sucesso. Pulamos de uma arrecadação de 16 mil para 62 mil reais. Batemos a marca de 1 500 pessoas de público, foi o grande divisor de águas”. O sucesso trouxe novos desafios, e elas precisariam de outro salto e contratar gente. Como Ludmilla toca uma operação com 45 funcionários na agência de marketing e a Flávia toca o dia a dia do site, na 10ª edição (em 2017) elas contrataram uma produtora. Idealizaram um evento para 1 800 pessoas, que arrecadou 92 mil reais, com custo de 7 mil, contam.
Enquanto falava sobre as entidades que já receberam recursos do Juicybazar, Ludmilla mencionou que em 2011 teve um câncer e, por isso, buscou ONGs que atuavam com o tema, como o Instituto Alguém e o Beabá, focado em desmistificar o câncer em linguagem adequada para crianças, que já apareceu aqui no Draft. Ela teve um carcinoma epidermóide de língua, que se manifestou através de uma pequena afta, que não sarava. “Eu podia ter perdido minha habilidade de me comunicar e comer, o que acontece em estágios mais avançados de câncer de língua”, diz.
Após duas cirurgias, está livre do tumor, sete anos após o diagnóstico. A jornada mostrou a Ludmilla a importância de informação e empatia sobre o câncer. “Colocar nossa estrutura e ajudar as pessoas a falarem do assunto e a abrirem o olho para essas causas não ajuda só diretamente as ONGs, mas também faz as pessoas entenderem o diagnóstico de maneira mais natural, o que pode salvar de um tratamento mais pesado ou mesmo de uma situação irreversível. Foi justamente o que me salvou.”
EM BUSCA DA SUSTENTABILIDADE FINANCEIRA DE UM NEGÓCIO SOCIAL
Além da ajudar o Beabá com o Juicybazar, Ludmilla usou um dos seus “braços”, a produtora de games Mukutu, para criar o aplicativo Alpha Beat Cancer, que ajuda as crianças a lidarem com o diagnóstico e o tratamento e recebeu diversos prêmios, como o World Summit Awards, um dos principais prêmios de inovação social do mundo. No evento de premiação em março deste ano, em Viena, Ludmilla conheceu e conversou bastante com a jornalista norte-americana Janine Warner, pioneira do jornalismo digital, que hoje dirige a ONG SembraMedia.
De perfil franco, Warner assustou Ludmilla com um diagnóstico: “Pelo que entendi, seu projeto não é sustentável financeiramente. Se vocês não resolverem isso, ele fecha em dois anos, porque todo mundo está trabalhando de favor. Vocês gastam tempo para convencer essas pessoas, uma hora eles vão desistir”. Ludmilla traduz as palavras da norte-americana:
“Tudo precisa gerar receita, por mais que você não vise o lucro, tem que pagar os custos, gerar o mínimo de valor”
Depois desse “choque de realidade”, Ludmilla buscou, profissionalizar a gestão, agregando dois colaboradores pagos, além dos voluntários. Para conseguir pagá-los, era preciso gerar uma receita inicial, sem tirar do caixa dos outros negócios, o que foi possível com o aporte inicial de uma amiga que entrou como patrocinadora. “As regras eram não gerar nenhum passivo, conseguir parceiros que queriam uma visibilidade maior no evento e assumissem alguns custos, e pagar todos os parceiros estruturais, para ter uma relação mais profissional. Também pagamos o aluguel do espaço e deixamos 10% da arrecadação para ter um respiro financeiro”.
Na primeira edição “sustentável” do Juicybazar, a 11ª delas, o público superou 3 mil pessoas e foram comercializados 15 mil produtos, gerando um total de 110 mil reais, dos quais pouco mais de 61 mil foram destinados à Beabá e mais duas ONGs: a EcoFaxina, que promove mutirões de limpeza na região dos manguezais próximos a Santos, e outra entidade dedicada ao combate ao câncer, a Associação Santa Isabel.
Uma novidade foi a venda de ingressos antecipada no bazar. Pagando 49,90 reais é possível entrar antes do restante do público e o valor ainda inclui um café da manhã. Ludmilla conta que, este ano, a operação do Juicybazar teve um custo total de 49 mil reais.
Além dos colaboradores remunerados, o Juicybazar segue sendo realizado com a ajuda de voluntários: 60 pessoas que se dedicam antes, durante e depois do evento. “Esse ano tivemos um voluntário que é engenheiro elétrico, e pegou todos os utensílios domésticos e consertou para que a gente pudesse vender”, conta Flávia.
Outra novidade foi a solicitação de uma prestação de contas para as ONGs beneficiadas sobre como elas pretendem utilizar o dinheiro. “Fizemos um termo de compromisso, colocando algumas condições. As ONGs vão mandar em seis meses um report do que foi feito com o dinheiro. Isso vai ser fundamental para o próximo passo do JuicyBazar se consolidar como um negócio de impacto social”, diz a empreendedora Ludmilla.
Se o bazar encontrou seu caminho para a sustentabilidade financeira, o mesmo ainda não acontece com o blog Juicy Santos. “Com duas colaboradoras em período integral, nos vimos em déficit. O modelo de negócio ainda não está resolvido. Temos uma receita com o AdSense (anúncios) no site e com conteúdo patrocinado, mas este ano inventamos uma linha de camisetas”, conta Flávia. Deu certo. As camisetas, em edição limitada, trazem estampas com frases e referências que só quem é santista entende. Elas já venderam mais de 1 500 unidades, e com isso ganharam mais que com o AdSense. O caminho de quem empreende nunca é fácil, mas seguir o que se acredita, sabendo a hora de amadurecer e não tendo medo de inventar coisas novas costuma dar um bom caldo.
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