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Contra a pesca fantasma, a Marulho transforma redes descartadas no mar em novos produtos e fonte de renda para comunidades caiçaras

Marília Marasciulo - 13 nov 2024
A oceanógrafa Beatriz Mattiuzzo, cofundadora da Marulho.
Marília Marasciulo - 13 nov 2024
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Todos os dias, cerca de 69 mil animais marinhos ficam presos em redes de pesca descartadas incorretamente, segundo levantamento da ONG Proteção Animal Mundial

“As redes continuam fazendo o que foram feitas para fazer: capturar os animais, que se prendem e acabam morrendo”, afirma a oceanógrafa paulista Beatriz Mattiuzzo, 30. “É a chamada pesca fantasma, porque as redes somem e é difícil fazer o monitoramento.” 

Em 2019, pensando em contornar o problema, Beatriz fundou a Marulho, empresa de Angra dos Reis (RJ) que busca dar nova utilidade às redes de pesca que seriam descartadas, transformando-as em produtos feitos artesanalmente pelas próprias comunidades caiçaras. “Somos uma empresa do setor dois e meio”, diz Beatriz. “É um negócio, mas é muito voltado para o impacto social e ambiental.”

No portfólio, estão desde sacolas até esfregões, ecobags e necessaires — todos feitos totalmente ou parcialmente do nylon aproveitado das redes, e cocriados com as redeiras e costureiras da comunidade local que trabalham na empresa ou baseados em demandas das redes sociais.

“Dá para fazer muita coisa. O que falta é design e outros insumos para trabalhar. Porque o é material muito resistente e feito para durar”

Tudo é vendido online e entregue para todo o Brasil — logística permitida graças ao Marulhão, um bote de fibra de 7,5 metros adquirido pela equipe com ajuda de apoios e patrocínios, no qual uma vez por semana a equipe viaja até o continente para despachar os pedidos. Os preços variam de 9 a 300 reais. Além do e-commerce, a Marulho também cria produtos específicos: em um evento do mundial de surfe, por exemplo, entregou cadeiras de praia personalizadas.

Por enquanto, a empresa ainda não dá lucro — em 2023, fechou o ano com 3 mil reais a menos no caixa — e conta com apoios e patrocínios para se manter sustentável. 

Em 2021, a Marulho foi contemplada com 150 mil reais em uma chamada de projetos do FUNBIO (Fundo Brasileiro para a Biodiversidade); no ano seguinte, recebeu 180 mil reais da Fundação Grupo Boticário. E desde então, conta com o apoio contínuo da OceanPact para financiar ações sociais e de educação ambiental. 

BUSCANDO UMA SOLUÇÃO PARA O EXCESSO DE SACOLAS PLÁSTICAS, ELA TEVE A IDEIA DE REUTILIZAR AS REDES DESCARTADAS

A ideia para fundar a Marulho veio em 2019, quando Beatriz se mudou para Ilha Grande (RJ) após uma temporada no exterior. 

De volta ao Brasil e ainda indecisa se queria seguir a carreira acadêmica, foi morar em uma pousada na Praia do Matariz, onde trabalhava como instrutora de mergulho. 

“É um lugar que grita as desigualdades do Brasil na nossa cara. Ao mesmo tempo em que eu trabalhava atendendo lancha e iate, via a comunidade caiçara não ter o reconhecimento devido. E isso me incomodava bastante”

Foi também lá que começou a ter contato com o problema da pesca fantasma. Com o crescimento da pesca industrial de sardinha, barcos pesqueiros que usavam redes de até dois quilômetros simplesmente descartavam as partes danificadas que não podiam ser reformadas — muitas das quais iam parar de volta no fundo do mar. 

“Eu sabia que aquilo era material sujo, pesado e não reciclável. Comecei a pensar no que daria para fazer, mas não vinha nenhuma solução na cabeça.”

Ao mesmo tempo, queria encontrar uma solução para ajudar a pousada a deixar de usar sacolas plásticas. 

Foi então que juntou as duas necessidades para criar sacos feitos de rede produzidos pelos pescadores – e assim surgiu, na metade de 2019, o redeco, primeiro produto da Marulho. Na época, Beatriz contou com a ajuda do também oceanógrafo Lucas Lopes Gonçalves, outro fundador da marca que hoje não está mais na empresa.

“Durante todo o ano, foi algo de muito pequena escala. Achamos na comunidade uma pessoa que topou, o Seu Filhinho, que faz parte da equipe até hoje, e o que a gente conseguia produzir, vendia para os turistas”

Em 2020, decidida a fazer a empresa decolar, Beatriz começou a estudar mais sobre empreendedorismo e negócios de impacto social. Ingressou também no programa de pós-graduação em práticas de desenvolvimento sustentável da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. 

“Foi o que me deu base para quantificar o nosso impacto. Entender se era ‘pira’ da minha cabeça ou se fazia algum sentido realmente.”

O PLANO AGORA É EVOLUIR PARA UM MODELO DE COOPERATIVA E REPLICAR O TRABALHO DA MARULHO EM OUTRAS LOCALIDADES

Atualmente, 22 pessoas trabalham na Marulho: 17 redeiras e costureiras da comunidade local, e outras cinco envolvidas em atividades de gestão. Essa equipe atua em toda a cadeia, começando por receber e coletar as redes descartadas. 

“Hoje os pescadores doam a rede diretamente para a gente, pois sabem que estão gerando renda para amigos e familiares”

Depois de recebidas ou recolhidas, as redes passam por uma etapa de higienização e triagem, em que são escolhidas aquelas que têm condições de serem usadas. Separadas e secas, são entregues para as artesãs e os artesãos, junto de outros insumos, como fios e cabos, para a produção.

O processo de produção dos produtos varia de acordo com cada peça, e o volume é combinado conforme demanda. Às vezes, um artesão pode fazer 300 redecos ou 60 fruteiras em um mês, segundo Beatriz. O cálculo é feito com base na renda, não na produção: as costureiras recebem em média 700 reais, e os redeiros, mil reais mensais. “Cada um tem os produtos que gosta mais de fazer”, explica.

Para Beatriz, o maior desafio atualmente é conciliar a responsabilidade como gestora da empresa e ajudar a capacitar a comunidade — um processo lento, que respeita o tempo de cada um. Afinal, segundo a empreendedora, a Marulho não foi idealizada para ficar centralizada em uma só pessoa. 

“Meu sonho é sair da produção e atuar só como facilitadora e em networking. Ir deixando de ser a porta-voz – para que a voz, cada vez mais, seja a das pessoas daqui”

Aos poucos, isso está acontecendo: hoje, apenas a fundadora e outra pessoa que trabalha na gestão da são de fora. As outras quatro são da comunidade local. 

Em breve, a Marulho espera ampliar sua atuação para duas outras localidades: uma em Angra e outra em Paraty, também no litoral fluminense. Essa expansão vem acompanhada de uma evolução no modelo de negócios:

“A Marulho está caminhando para um modelo de cooperativa, assumido pelas comunidades e com produtos feitos a mão”, diz Beatriz. “Principalmente quando se fala em replicar nosso modelo em outros territórios – o que devemos fazer a partir do ano que vem.”

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