“A primeira coisa que elas fazem é cheirar”, afirma Rosani Schiller, 66, sobre a reação das pessoas ao ver uma bolsa das Redeiras, grupo de artesãs da Colônia São Pedro, distrito de Pelotas (RS).
Desde 2009, elas criam peças autorais a partir de redes de pesca e escamas de peixe.
“Quando tu explica que as bolsas são feitas com a rede que o pescador usou durante cinco ou seis anos para pescar camarão, as pessoas quase não acreditam”
As matérias-primas são coletadas e tratadas antes de serem transformadas em bolsas, carteiras, colares e biojoias com prata e linha de aço. Com isso, elas dão novo uso a materiais que anteriormente seriam jogados no lixo.
Hoje, esse grupo de nove mulheres é uma associação sem fins lucrativos, que conta também com o trabalho terceirizado de dezenas de pessoas. “Tem várias famílias que dependem desse dinheiro”, afirma Rosani, a atual presidente da associação.
Situada à beira da Lagoa dos Patos, a maior laguna da América do Sul, a Colônia São Pedro — mais conhecida como Colônia de Pescadores Z3 — foi fundada em 1921.
As mulheres sempre desempenharam um papel importante na atividade econômica local, seja na produção das redes ou na pescaria em si, seja na limpeza e na comercialização dos peixes e crustáceos, principalmente o camarão.
Nas horas vagas, algumas delas se dedicavam ao artesanato, a partir de materiais da pesca. Foi em 2007, que Mari Ângela Motta Lima, uma das artesãs mais antigas da Colônia, foi a uma feira em Brasília e conheceu a Associação Arpeixe, grupo de mulheres do Mato Grosso do Sul que trabalhava a pele de peixe.
Ângela soube que o grupo teve apoio do Sebrae. “Quando ela voltou, foi conversar com as amigas, que resolveram procurar o Sebrae em Pelotas”, diz Rosani. No ano seguinte, foram selecionadas pelo programa Territórios da Cidadania.
Na época, Rosani era consultora e articuladora da instituição. “O meu trabalho era reunir o grupo, identificar as necessidades e fazer a ponte entre elas, o Sebrae e os consultores.” Foram diversas atividades realizadas com as artesãs, de cursos técnicos a conversas sobre modos de organização.
Um momento-chave foi a visita da designer Karine Faccin, na incumbência de criar peças a partir do que as artesãs faziam.
Rosani relembra:
“A Ângela já trabalhava com a rede. Ela fazia xales, colares, mas com pedaços inteiros. Quando a Karine viu as peças, ela teve a ideia de trabalhar com a rede recortada em fio”
Em alguns meses surgiu a bolsa Lagoa dos Patos, o primeiro produto das Redeiras e, ainda hoje, o carro-chefe do catálogo. O grupo também contou com o acompanhamento da consultora Carla Oliveira, que propôs usar escamas de peixe recortadas para a fabricação de biojoias.
O ano de 2009 foi dedicado ao desenvolvimento dos produtos.
“Elas trabalharam o ano inteiro sem ganhar um centavo. Ninguém vendeu uma peça sequer. Foi um momento de investimento”
A estreia das Redeiras aconteceu em fevereiro de 2010, em São Paulo, durante a Paralela Gift, feira de design e artesanato autoral e contemporâneo. Karine e Rosani representaram o grupo no evento – e os produtos foram um sucesso.
“A gente ligava lá de São Paulo pra dizer ‘pode começar a produzir tantas dessa bolsa que já tem encomenda’ e elas daqui enlouquecendo [na correria do trabalho].”
A definição do preço dos produtos foi pensada a partir do trabalho e do tempo gasto em cada etapa.
A reciclagem da rede, que é limpa, cortada e transformada em bolas de fio, é remunerada por peso. Já a alça de cada bolsa tem um valor fixo. A costura no tear e o tingimento são pagos por minuto trabalhado, assim como a montagem da peça. Todas as atividades são registradas em uma planilha.
O preço para o atacado é feito aplicando um percentual sobre o custo. “Noventa por cento dos nossos clientes são atacadistas”, diz Rosani. Por esse motivo, as peças podem ser encontradas em diversos pontos de venda — entre eles, a loja do Masp, em São Paulo.
É a partir do valor para o atacado que são pensados os preços ao consumidor final.
“Para a nossa loja em Pelotas, a gente bota um percentual a mais. Quando vamos pra feira, o percentual é maior e, no site, maior ainda”
A bolsa Lagoa dos Patos, por exemplo, sai por 349 reais no site, e o colar Linguado, com escamas em formato de peixe, por 132 reais.
Cada artesã recebe pela peça que produziu e o que sobra vai para o caixinha, usado para comprar matéria-prima. Apesar de não terem fins lucrativos, já houve “distribuição dos lucros” em momentos superavitários. Isso ocorreu pela primeira vez em 2012, quando cada artesã recebeu entre 1 500 a 2 000 reais no fim do ano.
Tempos depois, ao invés da distribuição, elas decidiram que a associação iria comprar todas as peças produzidas. Com isso, cada artesã passou a receber mensalmente.
(Na tarde em que conversou com a reportagem do Draft, antes de pegar a estrada para a Colônia, Rosani mostrou os envelopes que iria entregar; em um deles havia 1 800 reais.)
O Sebrae atuou com as Redeiras de forma constante até 2013, mas Rosani seguiu trabalhando de forma voluntária.
Após sair do emprego, em 2018, ela se tornou integrante da associação e peça-chave dentro do grupo. É ela quem viaja para as feiras, recebe e envia os pedidos para os compradores e cuida da finanças.
Também é ela quem busca financiamento para novos projetos, como o que conseguiram em 2017 para formação e multiplicação do processo de produção de peças artesanais.
“A gente comprou acessórios e ensinou as famílias a reciclar. Também compramos teares e ensinamos para cinco pessoas”
Em 2012, a bolsa Lagoa dos Patos ficou em segundo lugar na categoria “Objeto de produção coletiva” no Prêmio Objeto Brasileiro. Mais recentemente, em 2023, elas deram início às vendas para o exterior. Durante uma rodada de negócios, a marca inglesa Shared Earth comprou 490 colares de diferentes modelos.
O próximo passo é a construção de uma sede, para a qual já há previsão de recursos de uma emenda parlamentar. “Estão investindo muito em turismo na Z3”, diz Rosani. “E ter uma sede bonita para as Redeiras faz parte desse processo.”
Quando tudo começou, as artesãs duvidavam que daria certo: elas achavam que as pessoas teriam nojo, que as peças ficariam caras, que não ia vender. “Eu sempre falava que o trabalho era maravilhoso”, diz Rosani. “Elas tiveram que acreditar vendo.”
Ao invés de se tornar um motivo de rejeição, a matéria-prima reciclada acabou se tornando o grande diferencial dos produtos das Redeiras.
“A reciclagem de um material que todo mundo sabe que faz mal para os animais marinhos é uma coisa que encanta”
A vontade de crescer existe, mas vai ser preciso enfrentar alguns obstáculos. O maior deles – por incrível que pareça – tem sido encontrar rede. Rosani já tem planos de ir nas comunidades próximas à Colônia Z3 para firmar parcerias com pescadores da região.
Outra dificuldade é o tricoline, tecido usado como forro das bolsas. A escassez do material obrigou Rosani a fazer um bate e volta de Porto Alegre a São Paulo.
“Voltei com duas malas com quase 300 metros de tecido, mas já está acabando…”, diz. “Talvez eu tenha que repetir a loucura!”
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