Os cerca de 500 quilos de lixo orgânico produzidos diariamente por dez dos principais restaurantes de São Paulo estão ganhando um destino mais nobre que o lixo. Graças ao trabalho do Instituto Guandu, fundado pela jornalista Fernanda Danelon em 2012, os resíduos têm sido utilizados para adubar as hortas urbanas criadas justamente (e aí está o óbvio e inovador) para abastecer as cozinhas dos próprios restaurantes. Um ciclo que vai do “prato ao prato”, como ela diz, trazendo para uma perspectiva mais sustentável um dos maiores problemas do mundo moderno – o processamento do lixo orgânico, que chega a 200 milhões de quilos por dia no Brasil – a empresários e cozinheiros que lidam com a questão todos os dias:
“O conceito é o de transformar o lixo em comida. Uma revolução possível e que está literalmente nas mãos de quem trabalha com alimentos”
O Instituto Guandu foi criado por Fernanda com a finalidade de prestar consultoria a empreendimentos do setor de gastronomia ou que trabalhem com comida, o que aumenta a possibilidade de atuação não apenas a restaurantes e hotéis, por exemplo, mas também a condomínios residenciais e empresas privadas que mantêm refeitórios internos. “Transformamos o problema do lixo orgânico numa solução sustentável, cuidando dos resíduos e fomentando a agricultura urbana orgânica, promovendo a segurança alimentar e a educação ambiental”, diz.
Fernanda começou a se aprofundar no tema quando ainda trabalhava como jornalista e se especializou em Sustentabilidade. Passou a conhecer mais de agroecologia e de economia criativa e a se envolver com o tema de forma mais prática. “Em 2011, me tornei freelancer e comecei a ter mais tempo para me dedicar a assuntos que me interessavam. Entrei para o grupo dos Hortelões Urbanos, no Facebook, e comecei a participar de mutirões para a criação e manutenção de hortas urbanas comunitárias, como a horta do Centro Cultural São Paulo e a da Praça do Ciclista, na avenida Paulista”, conta.
AOS POUCOS UMA IDEIA DE NEGÓCIO COMEÇOU A BROTAR
Como em um ciclo, uma coisa levou a outra e, em 2011, ela entrou para a Frente Parlamentar pela Agroecologia e Agricultura Orgânica do Estado de São Paulo e integrou a criação do Muda-SP (Movimento Urbano pela Agroecologia) e da Frente Municipal pela Sustentabilidade. Durante uma oficina de compostagem e hortas urbanas, Fernanda teve contato com alguns chefs de cozinha e percebeu que, pelo conhecimento que tinha na área, poderia atuar como uma ponte entre eles e produtores, oferecendo ao mesmo tempo solução ambiental para o grande volume de resíduos orgânicos gerados pelos restaurantes. “A ideia que eu precisava para criar o Instituto Guando tinha se materializado”, conta ela. “Comecei com a missão de atender os restaurantes inclusive para cultivar produtos de qualidade para eles. Muitos precisavam de ervas, folhas e outros vegetais que nem sempre conseguiam encontrar nos mercados”. Juntou a fome com a vontade de plantar.
O primeiro a acreditar no projeto de Fernanda foi o chef Alberto Landgraf, do restaurante Epice. Com o tempo, vieram outros. Hoje, além dele, o Guandu trabalha com mais nove restaurantes: Attimo, Jiquitaia, Tête-à-Tête, Martin Fierro, Casa Jaya, Dona Vitamina e Freddy, e por fim os restaurantes Eau e Kinuo (dentro do hotel Grand Hyatt São Paulo). Além deles, a rosticeria Mesa III, da chef Ana Soares, também é cliente.
“Cobramos um valor mensal pelo pacote de serviços, que inclui a coleta seletiva, compostagem otimizada e manutenção da horta. Nosso valor é de 50 centavos o quilo do lixo orgânico. Isto dá uma média de um salário-mínimo (905 reais) por restaurante”, diz ela, sobre o modelo de negócios que aos poucos dá sustentação financeira ao Instituto.
O serviço prestado é uma consultoria que inclui a coleta seletiva, a compostagem e a manutenção da horta e, de certa forma, é paga “em lixo”. O cliente paga 50 por quilo de lixo revertido em adubo. Ou seja: quando o transporte do Guandu passa para pegar o lixo orgânico do restaurante (ou hotel, ou empresa etc), os funcionários pesam o material. Se numa noite o peso é de 50 quilos, significa que o valor a ser pago naquele dia é de 25 reais. Os valores vão sendo somados diariamente até o fechamento do mês.
QUANDO A ÚNICA CERTEZA É O SEU PROPÓSITO
O Guandu surgiu como uma vontade pessoal de Fernanda mudar seu papel na sociedade. O já conhecido “fazer o que se acredita e poder ganhar por isso”: ideário de 10 em cada 10 pessoas. “Eu queria botar a mão na massa, queria ser protagonista de uma ação. Resolvi focar nos assuntos do meu interesse: hortas urbanas, agricultura orgânica, alimentação saudável e ecogastronomia, reocupação da cidade e criação de mais áreas verdes… Fui estudando e participando de ações até que tive um insight e vislumbrei o meu caminho”, conta. “Mas não foi fácil, empreender é um mergulho no escuro, e a nossa única certeza são nossos propósitos.”
O Instituto Guandu se caracteriza como um negócio social. “É negócio, pois tem como objetivo o lucro, e é social porque visa um impacto positivo na sociedade onde atua, além de reverter uma parte do lucro para a comunidade”, afirma Fernanda. Para fundar a empresa, ela esboçou um plano de negócios e começou a colocar em prática um projeto-piloto capaz de ser ampliado depois. “Para criar um negócio totalmente pioneiro como este, foi preciso botar em prática, iniciar as operações para só agora, quase dois anos depois, buscar investimentos necessários”, conta.
O Instituto, portanto, é um projeto que foi desenvolvido e incubado por ela (com um investimento inicial de 200 mil reais) e que, só agora, começa a andar como um modelo de negócios. Atualmente, Fernanda têm três funcionários: dois na coleta e um na compostagem. Também emprega indiretamente um jardineiro, que é contratado por dia, e não fixo. As coletas são feitas com uma picape Fiorino, adquirida há um ano pela empresa. A rotina é dura:
“A implantação do Instituto Guandu é tão difícil, tão desbravadora e tantas vezes tão solitária que, se eu não tivesse um propósito de vida, muito além do negócio, já teria desistido”
E ela completa: “Acreditar no que se propõe é libertador e sempre aparece alguém para ajudar a seguir em frente”. Como comprovação a si mesma de que está no caminho certo, gosta de citar as mudanças pelas quais o mundo está passando para se convencer de que o cenário atual (econômico, político, filosófico) permite um modelo de negócio como o Guandu.
Ela gosta de citar um pensamento, que diz ser a compilação das ideias de vários autores contemporâneos: “Estamos na transição de uma sociedade do consumo para uma sociedade do conhecimento. As redes sociais e o acesso à informação através da internet estão transformando a produção e distribuição de renda em todo o mundo”. Nesse sentido, Fernanda acredita que as pessoas estão buscando transformar o seu papel na sociedade, buscando ser mais ativas em suas resoluções e projetos de vida – um indício do crescimento da própria economia criativa.
“Existe uma demanda da sociedade contemporânea de se combater a corrupção, diminuir a violência e a desigualdade social, aumentar a qualidade de vida nas cidades”, diz, e prossegue: “A Monsanto teve suas ações desvalorizadas no mercado de Nova York. O McDonald’s refez seu cardápio colocando opções mais saudáveis. O mercado de orgânicos, ainda que pequeno, cresce 35% ao ano. São indícios de transformações profundas na sociedade global.”
Como ocorre com a semente do guandu, um tipo de feijão que dá nome ao seu Instituto, seu projeto quer se firmar com raízes bem fortes e, assim, transformar a vida das pessoas. Se não de toda a cidade, pelo menos daquelas que frequentam alguns dos principais restaurantes paulistanos. Neles, o que chega ao prato de um cliente é o que estava no prato do outro. Uma nova forma de pensar que compartilhamos muito mais do que costumamos imaginar.
Aromática, sensível e difícil de polinizar, a baunilha é cobiçada por chefs de cozinha, mas o quilo pode custar até 6 mil reais. Com capacitação e repasse de parte do lucro aos produtores, a Bauni quer promover o comércio justo da especiaria.
Marina Sierra Camargo levava baldes no porta-malas para coletar e compostar em casa o lixo dos colegas. Hoje, ela e Adriano Sgarbi tocam a Planta Feliz, que produz adubo a partir dos resíduos gerados por famílias e empresas.
O clube de assinatura com foco na pesca artesanal. A empresa que abre o mercado de trabalho para pessoas com autismo. Confira a retrospectiva com esses e outros negócios de empreendedores que insistem em tornar o mundo um lugar melhor.