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“Deixar de investir em negócios de mulheres alegando que essas empresas não existem ou não têm maturidade é ignorância”

Dani Rosolen - 25 fev 2021
Ítala Herta, fundadora da Diver.ssa (foto: Natalia Gomes).
Dani Rosolen - 25 fev 2021
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Quantas mulheres existem no seu círculo de convivência de colegas empreendedores? E na sua aceleradora, quantas empresas apoiadas foram fundadas por mulheres? Quantas startups encabeçadas por fundadoras receberam aporte do seu fundo?

Se houver um recorte, e as perguntas forem refeitas com foco em mulheres negras do Norte ou do Nordeste do país, certamente esse número ficará ainda menor.

Mas não é por falta de empreendedoras com esse perfil.  

“Acho que as pessoas estão procurando nos lugares errados”, diz Itala Herta, 33, fundadora da Diver.ssa e ela própria negra e nordestina.

A Diver.ssa apoia e fortalece o empreendedorismo feminino de impacto social no Norte e Nordeste do país — e ajuda a aproximar essas empreendedoras de grandes empresas, por meio de consultorias.

Em apenas um ano de atividade, Itala já lista projetos para clientes e parceiros como Ambev (ela integra o comitê de diversidade racial da empresa), Google, Oi e Itaú — a quarta edição do programa Itaú Mulher Empreendedora, que priorizava micronegócios liderados por mulheres negras, indígenas e LGBTQIA+, teve curadoria da Diver.ssa.

Mais de 280 mulheres se inscreveram no programa, sendo que dez passaram pela Jornada de Aceleração de Apoio ao Micronegócio. E ao final, seis foram selecionadas para receber um investimento semente, entre elas Morena Mariah, fundadora da Afrofuturo, e Solange Borges, fundadora da Culinária de Terreiro.

A seguir, Itala fala sobre sua trajetória, a abertura das companhias à agenda ESG (que em seu pilar social contempla a diversidade) e aponta que o investimento é o único caminho para profissionalizar negócios de mulheres que empreendem para sobreviver.

 

Conte um pouco sobre sua trajetória. Você se formou em Relações Públicas. Como chegou ao empreendedorismo social?
Costumo dizer que minha maior escola de negócios foi minha mãe e meu pai — sobretudo minha mãe. Eles empreendiam porque precisavam muito, não por opção. 

Os dois eram donos de um restaurante e de uma lanchonete embaixo do imóvel onde a gente morava [em Salvador]. E eu vivia muito essa rotina do empreendimento, ajudando no dia a dia.

Dentro de Relações Públicas, em que atuei por mais de dez anos, sempre trabalhei na área de projetos socioculturais e de inovação social, trazendo esse recorte de diversidade.

Eu não comecei a empreender por opção. Não tive uma ideia e alguém para investir ou uma poupança, como é o caso de empreendedores privilegiados do Brasil… Foi ralação mesmo, e precisei acreditar muito em minha criatividade

Também tive a sorte de encontrar pessoas no meu caminho que apostaram na possibilidade de cocriar comigo.

Fui percebendo toda a inteligência e habilidades que eu tinha, e as poucas oportunidades para desenvolvê-las – até hoje. Vi que não me era permitido errar ou desperdiçar essas chances. O que construí de inovação foi a partir daquilo que me foi negado.

Seu primeiro empreendimento foi a aceleradora Vale do Dendê. Em janeiro de 2020, você deixou o negócio. Por quê?
Quando entrei na Vale do Dendê, estava fazendo uma transição profissional. Na época, eu trabalhava com responsabilidade social corporativa e resolvi empreender porque acreditava — e acredito — muito nesse projeto.

Ainda no início, quando a ideia era só um slide, conversávamos muito sobre algumas insatisfações. 

Como profissionais negros criativos do Nordeste, nos incomodava o fato de sermos estimulados a sair de Salvador para ter uma carreira bem-sucedida. Sempre acreditamos que a criatividade daqui é muito possível de ser escalada e potencializada

Minhas colaborações na Vale do Dendê foram muito na parte executiva e na criação de processos metodológicos da aceleração, com um recorte em empreendedores da periferia e de bairros populares. Entendi que a aceleração nada mais é do que um processo de aprendizagem.

Como uma pessoa que se interessa muito por educação, metodologia e tem essa agenda das mulheres há muito tempo no radar, decidi atender a um chamado antigo e que eu vinha adiando pois me dispersava contribuindo com projetos de outras pessoas. Resolvi concentrar minhas forças e me preparar para essa transição. Foi assim que acabei deixando a Vale do Dendê para criar e me dedicar à Diver.ssa.

E de onde veio a ideia da Diver.ssa? Qual é a proposta da empresa?
A ideia surgiu em 2018 a partir da provocação de como pensar uma forma de acolher mulheres que empreendem antes de trazer habilidades e ferramentais básicos para uma educação empreendedora.

Essa metodologia que criei, chamada de acolhimento estratégico, está baseada em três pilares: autoconhecimento, autoconfiança e autogestão. Antes de iniciarmos uma jornada voltada mais para dores específicas do ecossistema empreendedor feminino,  trazemos acolhimento jurídico, psicológico e treinamentos voltados para esses três pilares

Acreditamos muito na aprendizagem por meio de mentorias. Por isso, nossos programas apostam em mentorias coletivas e individuais — de mulheres para mulheres.

Percebemos que quando se cria um ambiente seguro de aprendizagem para uma mulher, ela se sente mais confiante para compartilhar questões sensíveis e tem a possibilidade de aprender muito mais rápido.

Se a proposta é diversidade, por que o foco são mulheres do Norte e Nordeste — e não do Brasil todo?
Primeiro, porque são muitas urgências que essas mulheres enfrentam, desde falta de oportunidades a investimentos. 

Na área criativa, uma pessoa inovadora, sobretudo uma mulher negra ou indígena, é muito mais descredibilizada, não reconhecida e invisibilizada por as pessoas acharem que o grande potencial no Brasil está apenas no Sudeste. 

Estou há mais de dez anos trabalhando no ecossistema de economia criativa, inovação social e empreendedorismo. Cheguei num ponto da minha carreira em que me sinto muito cansada de “apenas” treinar mulheres

É difícil negociar com possíveis investidores e parceiros o quanto é urgente colocar grana nessas mulheres — principalmente nessas do lado de cá [Norte e Nordeste]. O que percebemos é que existem muitas oportunidades incríveis, mas que ficam só no campo do treinamento. E muitas mulheres já estão prontas.

Por diversas vezes, me senti pronta, mas não tinha investimento para tirar a ideia do papel, ou multiplicá-la para outras mulheres. A Diver.ssa tem muito essa proposta de, além de acolher, buscar o investimento para dar consistência aos negócios.

Como se deu a parceria com o Itaú Mulher Empreendedora?
Tive a oportunidade de defender a proposta da Diver.ssa para o Itaú Mulher Empreendedora e, sobretudo, provocá-los a pensar nessas questões de raça, gênero e território. 

Me interessava racializar o programa, trazendo para a iniciativa — que sempre foi focada em startups — um olhar para os micronegócios

A partir dessa cocriação, conseguimos sensibilizá-los para priorizar as inscrições de mulheres negras e indígenas do Norte e Nordeste do Brasil, bem como trazer um aporte para as finalistas, que receberam um investimento semente de 10 mil reais.

E como a Diver.ssa ajudou outras empresas e instituições, como Ambev, Google, Discovery Brasil e Oi Futuro?
O Google foi nosso primeiro cliente. Trabalhamos com eles entre julho e setembro [de 2020], no curso Black Ads Academy [iniciativa para aumentar a representatividade negra na publicidade e no ecossistema de marketing digital].

Prestamos consultoria para trazer essa lente da diversidade de gênero e raça para o curso, mobilizando empreendedoras e empreendedores para participar. Mais de 9 mil pessoas se inscreveram; tivemos uma frequência assídua de 3 mil pessoas na sala durante os treinamentos.

A Ambev é um parceiro cada dia mais próximo. Estamos atuando em várias frentes, não só em consultoria, mas cocriando com eles outras oportunidades. 

Por exemplo, conectamos uma startup soteropolitana, a Pagode por Elas, à companhia; com o patrocínio da Skol, essa startup mapeou artistas da periferia de Salvador que trabalham com pagode e lançou uma websérie documental com cinco episódios contando essas histórias

Nas outras empresas, como Oi Futuro e Discovey Brasil, focamos mais em consultorias e treinamentos internos. Na Oi, estamos preparando um time de mentores e mentoras com nossa metodologia para que eles atendam mulheres em contextos diferentes em um programa de mentoria da empresa, que começará em março em todo o Brasil.

Aproveitando o gancho corporativo, desde junho você é integrante do Comitê de Diversidade Racial da Ambev. Como é fazer parte desse grupo de trabalho? E como o comitê funciona na prática?
A Ambev está muito atenta a algo que muitas organizações ainda não estão. A companhia entendeu que faz parte da sociedade e precisa firmar compromissos e responsabilidades para ajudar a resolver as urgências que vivemos.

A agenda de diversidade dentro da empresa ainda tem desafios, mas segue um caminho pragmático, com inteligências da Ambev e de outros especialistas trabalhando juntos [além de Itala, fazem parte do grupo Hélio Santos, do Instituto Brasileiro da Diversidade; Adriana Barbosa, do PretaHub e da Feira Preta; e Liliane Rocha, da Gestão Kairós].

Não é um comitê que só recomenda, e sim cocria soluções pensando no legado dos próximos anos. Tem questões que já avançaram muito, principalmente no setor de pessoas e de contratações. As metas são muito ousadas. Ficamos felizes de a empresa trazer esse compromisso 

Sabemos que essa agenda não vai se resolver do dia para a noite. Mas estou otimista, vendo mais empresas atentando à importância de firmar um compromisso — em vez de só falar que estão “sensíveis” a alguma causa, mas sem fazer nada.

Por um lado, as corporações estão se abrindo à agenda ESG; por outro, há muita polarização, em especial nas redes sociais, em torno de temas como diversidade. Você acha mais fácil ou difícil empreender nessa área, hoje, no Brasil?
Não deixou de ser difícil e ainda vai ser assim por muito tempo. As pessoas confundem muito o fato de que essa agenda está sendo veiculada e, por outro lado, os problemas estruturais que ainda temos que enfrentar.

Temos que ter muito cuidado com essa midiatização [da agenda ESG] e nos perguntar quais as mudanças que estão sendo realmente feitas… É só propaganda? Ou é um compromisso?

Percebo o quanto minha geração [de mulheres negras] teve oportunidades de ingressar em uma universidade e furar algumas bolhas… Mas ainda somos as pessoas que ganham menos, que são invisibilizadas em relação a sua criatividade.

Acredito que aquilo que antes vivíamos na micro política está indo para um lugar mais macro hoje em dia. Como se agora estivéssemos falando da mesma coisa em ambientes diferentes. Isso é importante e é uma conquista — mas ainda tem muita coisa para mudar.

A Diver.ssa foi fundada num ano atípico. Como foi começar um negócio neste momento de crise e pandemia?
Fizemos nosso MVP com 12 mulheres em março [de 2020], depois abrimos ciclos de mentoria com mais de 30. Tínhamos muitos planos, mas aí veio a pandemia e [a gente] deu uma guinada de 180º. Tivemos que nos adaptar muito rápido para digitalizar nossos processos e metodologia e continuar atendendo essas mulheres que estavam — e ainda estão — precisando de muito apoio nesse momento.

Nosso desafio de visão de futuro foi acelerado por essa experiência. Decidimos estruturar uma plataforma online de educação, a Diver.ssa Educa, e vamos abrir nossa primeira rodada de investimento no segundo semestre de 2021, para escalar cada vez mais nossa metodologia, trazendo nossa proposta para o ambiente tecnológico, mas de olho em uma educação inclusiva.

O ambiente empreendedor ainda é muito embranquecido, masculino e focado em negócios tecnológicos. Como você lida com isso enquanto empreendedora negra com foco em impacto social?
O primeiro ponto é pensar que existem vários tipos de empreendedorismo, assim como existem outras economias que por muitas vezes são invisibilizadas e não legitimadas.

Tanto na periferia quanto dentro de comunidades, como as indígenas, existem pessoas que cresceram empreendendo de alguma forma, só que para outras lentes isso “não é empreender”

O que a gente percebe dentro do ecossistema de inovação e tecnologia é uma mentalidade que desconsidera outras narrativas. Isso me “atravessa” todos os dias. 

Como mulher negra nordestina, tenho que estar muito atenta a exercitar minha autoconfiança. Porque são muitas as desconfianças sobre a [nossa] competência e capacidade de criar.

O fato de seguirmos um padrão no ecossistema, com as mesmas pessoas, mentalidades, características, fenótipos e contextos, traz a ideia do falso desenvolvimento. Porque, teoricamente, esse ecossistema deveria trazer o novo — mas [na verdade] só está se repetindo

E o que me deixa chateada é que essas empresas recebem investimento absurdos, enquanto outros negócios sociais, que não estão dentro desse ecossistema, mas oferecem uma solução para um problema real, vão passar por muitos atravessadores e dificuldades para se conectar com um investidor. 

Não estou falando de caridade, mas de vantagem competitiva de um time diverso, de uma empresa diversa.

Precisamos romper essa barreira, descentralizar essas oportunidades, estar atentos ao que estamos ouvindo desses outros empreendedores que não estão em São Paulo.

Muitas mulheres acabam empreendendo por necessidade. Como mudar isso para uma narrativa de oportunidade e profissionalização?
O empreendedorismo por necessidade está muito ligado à questão da empregabilidade, de como nossa mão de obra, além de ser invisível e mal remunerada, é facilmente descartada. 

Também tem a questão dos ciclos de maternidade, de a mulher precisar empreender porque o mercado não sabe acolher uma mãe.

Quer ver a incoerência? As micro empresárias no Brasil movimentam cerca de 840 milhões de reais por ano, mas não têm acesso a crédito ou a investimentos. Porque, geralmente, essas mesas são lideradas por homens que não consideram o negócio tão maduro

Muita gente me fala: “mas Itala… Não tem negócios de mulheres, ou [quando tem] estão em estágio embrionário…”. Não é isso. Precisamos começar a entender que a relação que devemos construir não tem a ver com dinheiro — mas com confiança.

Se eu for falar de todos os skills de lideranças femininas, de tudo o que essas mulheres já conseguiram fazer dentro do ambiente corporativo e do empreendedorismo, poderia trazer argumentos inegáveis do quanto é importante investir em mulher. Do quanto seu dinheiro seria aplicado em algo seguro.

Sempre fomos condicionadas a não poder errar. E isso nos coloca em outro nível de dedicação, até porque as oportunidades são poucas. 

Então, é ignorância deixar de investir em negócios de mulheres alegando que essas empresas não existem ou não têm maturidade. Quem diz isso está procurando nos lugares errados.

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