Dez anos atrás, em 2012, Fillipe Dornelas estava começando o curso de Sistemas de Informação na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Ele conta que desde aquela época já acalentava a ideia de criar um app de relacionamentos.
O conceito era bem novo: o próprio Tinder, que mais tarde se transformaria em sinônimo dos apps de namoro, foi lançado na App Store em setembro daquele ano.
O então estudante imaginava um aplicativo voltado ao público universitário. Uma década depois, ele enfim tirou o projeto do papel. O foco, porém, mudou: Fillipe, 30, hoje está à frente da Denga Love, plataforma lançada em outubro de 2022 com a proposta de facilitar o encontro entre pessoas negras.
O desenvolvedor de software e agora empreendedor revela que ainda em 2018 começou a se dar conta de como a cor da pele pode ser um entrave na hora de dar um match. Pelos menos nos aplicativos tradicionais:
“Quando você abre o app – como por exemplo o Tinder, Bumble, Happn e Inner Circle – e vê, são em média cinco ou seis pessoas brancas para um negro”, afirma.
Amadureceu a ideia e, ao se ver desempregado, resolveu juntar o fundo de garantia a recursos próprios para investir 25 mil reais na criação de seu próprio negócio. Trouxe ainda três sócios para ajudar na operação: Barbara Brito, Ana Paula Santos e Roger Cipó.
Do Rio de Janeiro, onde vive e cursa o mestrado na UFRJ, Fillipe contou ao Draft sobre preconceito velado nos apps de namoro, os bastidores do desenvolvimento da Denga, as reações recebidas até aqui – e os planos para o futuro da startup.
Fillipe, pode resumir a sua experiência acadêmica e profissional até aqui, e explicar como ela te preparou para empreender a Denga?
Tenho 15 anos de experiência na área de tecnologia da informação. Aos 15 anos fiz curso de computação e trabalhei em lan house. Depois fiz um curso profissionalizante em 2009, três anos depois entrei na faculdade de Sistemas de Informação.
Desde o começo do curso universitário já conseguia ter um certo êxito em razão da minha experiência prévia. Para me profissionalizar mais, em abril deste ano iniciei um mestrado em Tecnologia da Informação e Ciência de Dados na UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro].
Enquanto estudava na faculdade, trabalhei em empresas importantes como a Fiocruz, onde atuei por nove meses com desenvolvimento de sistemas de bioinformática.
Na IBM, por um ano e quatro meses fui analista de dados e pesquisas, e Tech Lead, durante sete meses, montei uma equipe de desenvolvimento que entregou novas funcionalidades da plataforma digital
Como Cientista de Dados, estive à frente da área trabalhando com Inteligência Artificial e por um ano na empresa financeira fui líder técnico trabalhando em soluções de privacidade, melhoria contínua de qualidade e segurança para os usuários.
Desde 2020, fui escolhido para ser mentor voluntário de Inteligência Artificial para as Startups que participam dos batches do programa de startups do Google. Todas essas experiências me preparam para empreender e criar a Denga.
Qual foi o problema que motivou a criação da Denga?
A ideia surgiu quando eu comecei a usar aplicativos de relacionamento e não me sentia incluído. Entre tantas pessoas que via, não encontrava pessoas negras e passei a me sentir deslocado.
Para completar tive experiências com usuários que eram ríspidos e sentia um preconceito velado quando eu não dava tantos matchs quanto meu amigo branco, que tinha o mesmo cargo e faixa de idade
Em um dos casos, a primeira mensagem que eu recebi foi: “parece que é um filhinho de papai”, porque me viu com a minha moto e me julgou sem me conhecer.
Depois disso, creio que em 2018, parei de usar app de relacionamento e comecei a procurar apps voltados para pessoas negras, e vi que ninguém estava fazendo isso no Brasil.
Por isso, fiquei com a ideia de criar um app assim, porém não tinha recurso e as pessoas necessárias naquele momento.
Quando e como surgiu o app? Quais foram os primeiros passos para tirar o projeto do papel?
Com a pandemia, mesmo quando apps de relacionamento davam promoções para pessoas se relacionarem, as pessoas negras continuam excluídas, com isso foi amadurecendo mais a minha ideia.
Antes de eu ser demitido, em junho deste ano, conversei com a Maria Gal, que é atriz e minha amiga, sobre a ideia e ela me respondeu que era extremamente necessário.
Essa conversa me incentivou e em abril comecei a escrever o projeto. Quando fui mandado embora, já não queria voltar para a área e passei a dedicar meu tempo para o app.
Subi a primeira versão da Denga no dia 17 de julho. Pedi para um amigo baixar e testar, e vi que funcionava. De julho até 14 de outubro, dia do lançamento nas plataformas, muita coisa mudou
No começo eu pensei em Cacau para o nome do app, mas quando Barbara fez o primeiro logo, a imagem ficou remetente a uma empresa alimentícia…
Ao pesquisar, ela, que atualmente é diretora de criação da empresa, se deparou com a palavra denga, de origem africana que significava gesto de carinho e amor. Gostei do nome e ele começou a ser usado.
Como você e os demais fundadores da Denga se conheceram? E como as habilidades dos demais sócios se complementam à sua?
Depois que o app estava funcionando em julho, vi que existiam funções que não conseguia desenvolver, por isso chamei Lucas Polazzo, um amigo para me ajudar na finalização do desenvolvimento.
Quando precisei de um designer, achei a Barbara, de João Pessoa, em junho no Twitter. Eu paguei para fazer a logo e uns slides de apresentação para vender a ideia.
Nesse tempo, eu estava conversando com a Ana, de São Paulo, que eu conheci em um evento. Em agosto a convidei para me dar um mentoria de marketing, que veio logo de cara e virou diretora de marketing e sócia
O Cipó, que é da área de comunicação e eventos presenciais, relutou um pouco para vir, mas topou ser meu sócio 15 dias antes do lançamento. Cipó também é de São Paulo e eu o conheci pelo Linkedin.
(Em janeiro de 2023, a Denga planeja realizar um primeiro evento presencial, com música e comidas típicas da cultura negra, reunindo usuários e influenciadores.)
Existe mais dificuldade para pessoas negras darem match nos apps de relacionamento? Se sim, por quê?
Sim, inclusive existem artigos científicos que mostram que pessoas negras têm mais dificuldade de darem match e são menos favorecidas nesses ambientes, principalmente as mulheres negras.
Quando você abre o app – como por exemplo o Tinder, Bumble, Happn e Inner Circle – e vê, são em média cinco ou seis pessoas brancas para um negro. Fora que o dito padrão de beleza adotado no Brasil não nos favorece
Na Denga, inclusive, tem muitas pessoas que nunca estiveram antes em outros apps porque se sentiam acolhidas.
A Denga é de fato exclusiva para pessoas negras? Ou esse é apenas o foco da comunicação, mas qualquer pessoa é bem-vinda a usar o app?
A Denga é de fato direcionada e criada para o público negro. Funciona quase como uma resposta: não incluíram a gente nos outros aplicativos, por isso precisamos criar o nosso.
Toda a nossa comunicação e ações são voltadas para pessoas negras. Apesar do foco, por lei o aplicativo não pode ser exclusivo e limitado para pessoas negras.
Para criar um ambiente saudável, nos termos de uso escrevemos que não aceitamos discurso de ódio e não toleramos racismo
Além disso, dentro do app o usuário pode reportar comportamentos ruins e se verificarmos que é real, banimos a conta.
Quais foram os principais desafios para tirar o projeto do papel? E quanto foi investido no negócio?
Quando quis fazer o app em 2018, eu não tinha conhecimento, tempo e financeiro para me manter. Por isso, fui juntando o dinheiro e, com a demissão, peguei o FGTS e usei 100% dele no projeto.
Tudo o que tinha, deu 25 mil reais de investimento inicial. Quando acabou esse valor, vendi a minha moto de mais de 40 mil reais e isso é que tem mantido a empresa hoje, que não tem dinheiro dos sócios.
O download do app é gratuito. Qual é o modelo de negócio da Denga, ou seja, como a empresa ganha dinheiro?
Criamos o modo vip, que custa R$ 16,90 para quem quiser funcionalidades a mais.
O usuário vip pode ver pessoas em uma distância maior, de até 500 quilômetros; quando mudar a localização e for para outro estado, pode dar chamego [match] com os usuários daquela região
Também pode ver quem te curtiu antes e escolher essa pessoa, e assim dar chamego mais rápido.
Como tem sido a adesão desde o lançamento? Quantos usuários, downloads, até aqui?
A procura tem sido grande sucesso. Até a manhã do dia 16 de novembro, com 32 dias de empresa, temos 42 mil usuários; desses, 2,6 mil são usuários vips.
As capitais com o maior número de usuários são São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Minas Gerais.
O número de usuários está bem balanceado entre mulheres, homens e pessoas agênero [que não se identificam com um gênero específico].
Considerando que pela internet as pessoas se sentem às vezes “autorizadas” a fazer insultos e ataques racistas: vocês receberam algum tipo de crítica ou agressão por criarem um produto com foco no público negro? E quanto aos feedbacks positivos, quais os mais bacanas?
Uma pessoa – que era minha amiga até o momento do comentário – falou que não sabia por que um grupo que queria inclusão tinha criado um aplicativo para gerar segregação… Teve pessoas que foram até a nossa página para falar coisas parecidas com [o que disse] esta ex-amiga.
Entre as mensagens legais que recebi: no primeiro dia teve um cara que me mandou uma mensagem avisando ter um encontro marcado com uma gata para o dia seguinte, e isso já funcionou como um gás para gente, de que estava dando certo
Na primeira semana, tive um pedido de cancelamento do vip porque a pessoa [já] tinha encontrado o seu chamego. Este usuário ainda mandou uma foto com seu par andando de bicicleta.
Quais foram os principais aprendizados e ajustes de rota nessa jornada, até aqui? E quais são as metas da Denga para o futuro próximo?
Um dos principais aprendizados da minha primeira experiência à frente de uma empresa tem sido dividir responsabilidades. Empreender tem sido complicado, porque eu não sabia de todas as regras e barreiras que existiam para fazer funcionar.
Até janeiro de 2023, queremos nos organizar para entrar em uma primeira rodada de investimento para expandir o app internacionalmente, porque no Brasil já temos bastante gente
Queremos captar até 500 mil reais e uma das intenções é investir na estrutura de um time, porque até o momento só trabalhamos eu, os sócios e meu amigo.
Além disso, queremos ter no ano que vem 100 mil usuários ativos no Brasil, sendo 20% destes pagantes; ou seja, queremos ter 300 mil reais mensais de faturamento com as assinaturas.
Artur Santoro, sócio da Batekoo, fala sobre a evolução do projeto: do começo como uma festa-resistência para o público negro e queer de Salvador até se tornar uma plataforma nacional que fomenta suas comunidades com cultura e capacitação.
Ricardo Silvestre sofria com a falta de representatividade negra na publicidade e nas agências por onde passou. Para virar esse jogo, fundou a Black Influence, que engaja marcas no combate aos estereótipos raciais na comunicação.
Como é insistir no sonho, e trabalhar com aquilo que você mais gosta de fazer, em meio à pandemia? No mês das mulheres, saiba como quatro microempreendedoras lidam com o desafio de manter o negócio de pé em meio ao turbilhão da Covid-19.