Acabo de voltar de Gana. Mais especificamente, de Acra, a capital do país de 27 milhões de habitantes na costa oeste da África. Ainda estou processando tudo o que vi, senti e vivi na semana que passei por lá.
A palavra que me vem para resumir experiência é ansiedade. Então, me lembrei de um amigo italiano que dizia que preferia associar a palavra ansiedade a ânsia, no sentido de vontade, desejo profundo, e não a angústia
Acho fascinante que a mesma palavra possa remeter a um sentimento que, de certa forma, paralisa e machuca (angústia) e a outro que move e energiza (vontade).
Para fechar essa divagação, não resisto ao trocadilho com um sinônimo de vontade, que é justamente gana (anseio, avidez, sofreguidão).
Essa dualidade da palavra ansiedade resume bem o que senti na viagem a Gana: uma grande angústia, mas também, gana.
A angústia veio de vários lados: a pobreza e precariedade de tudo; o transporte de pessoas em vans lotadas e caindo aos pedaços; as valas de esgoto correndo pela cidade; o “empreendedorismo” de baixíssimo valor agregado, com dezenas de pessoas se arriscando a cada semáforo para vender garrafinhas de água por alguns centavos de dólar; as crianças nas ruas, disputando espaço na janela dos carros e pedindo dinheiro e comida.
A angústia veio também pela desigualdade abissal, difícil de digerir até para quem engole a já indecente desigualdade brasileira. Na mesma rua com esgoto a céu aberto e pequenas barracas de um metro e meio por um metro e meio entulhadas, vendendo de tudo, existem uns poucos lugares onde seria possível postar uma selfie dizendo estar num café hipster em Nova York ou em São Paulo. E, ainda, senti a angústia pela quantidade de lixo, em especial, plástico acumulado na cidade e nas praias.
Mas, talvez o que mais tenha me inquietado foi pensar em tudo o que seria necessário – ou melhor, tudo o que será necessário – para que Gana e tantos outros países subdesenvolvidos possam ter uma infraestrutura mínima e oferecer um nível de consumo básico à população
Não consigo parar de pensar sobre a imensa demanda por aço, cimento, asfalto, carros, combustível, canos de PVC, energia, eletrônicos, ar-condicionado, celulares, alimentos, roupas… Ou seja: CO2, CO2, CO2, CO2, CO2, CO2…
Diante desses desafios aparentemente insuperáveis, fica difícil encontrar espaço para a vontade de agir. Então, é preciso que eu explique por que eu estava em Gana e, principalmente, com quem eu estava lá.
Estava no país por conta de uma jornada de engajamento pessoal com o universo dos negócios sociais e de impacto. Durante minha carreira no mundo corporativo tradicional, esbarrei com esses temas.
Em especial, com as formulações de professor Muhammad Yunus, que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2006 por ter criado o Grameen Bank e pelo seu pioneirismo no conceito de microcrédito para empreendedores de baixa renda.
Desse esbarrão, veio uma série de decisões pessoais e profissionais que redirecionaram a minha carreira.
Percebi que poderia usar a capacidade adquirida para desenvolver e gerir negócios a serviço de iniciativas que se propõem a resolver algum tipo de problema social e, assim, alinhar uma atuação profissional estruturada com o meu propósito
E foi nesse caminho que encontrei o Impact Hub, uma associação que está em 64 países, com 111 unidades em operação, e que atua na promoção de mudanças positivas no mundo por meio do empreendedorismo.
E era com membros dessa rede que eu estava em Gana. Éramos 93 impact makers, de 41 países, participando do Encontro Global do Impact Hub.
Estávamos reunidos para discutir estratégia, governança, nossas políticas e métricas de DEI (Diversity, Equity, and Inclusion) e ainda para a realização da nossa Assembleia Geral 2023.
Foram quatro dias de reuniões, debates, compartilhamento de cases de projetos desenvolvidos pelos Impact Hubs mundo afora.
Mas, o maior valor desse encontro foi sem dúvida a convivência com os makers de todo o mundo e com a reafirmação do poder do esforço coletivo da nossa rede.
Durante os momentos de angústia, olhar para o lado e ver tantas pessoas incríveis, comprometidas com a inclusão e com a sustentabilidade, e que atuam sob o lema “coragem, confiança e colaboração” faz toda a diferença
Fez diferença conhecer um projeto do Impact Hub Accra, que adotou um modelo de desenvolvimento imobiliário associado ao fortalecimento do ecossistema de impacto social.
Por este sistema, a ocupação dos novos empreendimentos pelo próprio Impact Hub qualifica esses espaços como centros de inovação social, atraindo empresas desse setor o que, por sua vez, fortalece o ecossistema de impacto. E esse ciclo virtuoso foi desenvolvido como uma estratégia clara para mudar a realidade de um bairro, Osu, na capital ganense.
Fez diferença também conhecer um case do Impact Hub Amsterdam, que desenvolveu um Programa de Formação em Economia Circular para médias empresas em parceria com um grande banco, que oferece essa capacitação para seus clientes.
O banco disponibiliza um novo serviço e fortalece seu compromisso ESG, e o Impact Hub oferece um conteúdo relevante, além de começar a atender demandas das empresas que passaram pela capacitação.
Conhecer esses exemplos práticos, que usam modelos de negócio para endereçar desafios sociais, foi inspirador e energizante.
Outra lufada de esperança veio ao chegar em casa. Estava ansioso para contar sobre a viagem para minha companheira e meus filhos, falar sobre essa angústia de tantos privilégios para uma parte da população – na qual nos incluímos – apegada aos seus padrões insustentáveis, e tanto mais gente vivendo em lugares com tanta coisa por fazer, num planeta que já dá claros sinais de esgotamento.
Estava emocionado, falando sobre o quanto estávamos enrascados e questionando como e se as gerações futuras lidariam com isso.
Meus filhos (11 e 13 anos), então, começaram a argumentar que há muitas tecnologias novas, muitos caminhos. Trouxeram o exemplo do asfalto feito a partir de plástico reciclado
Esta tecnologia já é usada num trecho da Highway 401, perto de Toronto (onde estamos vivendo), e já se mostra viável em escala e com vantagens práticas sobre o convencional.
Seguiram falando de outras tecnologias de reciclagem, de energia limpa… Claro, tudo com muita simplificação e ingenuidade. Mas, o ponto foi perceber a consciência clara com que discutem o assunto.
Talvez não tenham ideia do tamanho do enrosco, mas me fizeram ter esperança sobre o consenso em torno da pauta
Não sei se teremos tempo para evitar o futuro distópico que o “pessimismo da realidade” nos apresenta. Mas, é importante acreditarmos que sim!
Nesse mix de sentimentos, relembrando coisas lindas, em especial o povo e a cultura, e coisas tristes que vi em Gana, finalizo com um trecho de uma música da Zélia Duncan que me peguei cantarolando mentalmente enquanto andava pelos bairros de Acra:
“O desconforto anda solto no mundo / E você sempre junto / E você sempre atento / Ao que menos importa…”
Que estejamos atentos, e que sejamos muitos mais atentos. E que estejamos atentos ao que realmente importa.
Duda Scartezini é empreendedor, investidor e entusiasta dos negócios sociais e de impacto. Cofundador do Impact Hub Brasília, possui investimentos nos segmentos de varejo, imobiliário e em startups nas áreas eficiência energética, filantropia, microfinanças e mobilidade urbana. Atualmente reside em Toronto, no Canadá.
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