Carnaval, Capoeira e Maracatu, apenas para citar algumas grandes manifestações culturais do nosso país, são um dos principais chamarizes para turistas, além das paisagens naturais. Quando se fala em cultura negra brasileira, dois destinos vêm à cabeça: Salvador e Rio de Janeiro, certo? Mas onde está o restante da memória negra do Brasil? Quais histórias ainda precisam ser contadas ou resgatadas?
Trabalhar essas questões é uma das metas da Diáspora.Black, que usa um modelo de negócio simples (uma rede de acomodações compartilhadas) para conectar viajantes e anfitriões interessados em cultura negra, sejam eles negros, brancos ou asiáticos.
Criada pelos cariocas Carlos Humberto, 39, e André Ribeiro, 34, e pelo soteropolitano Antonio Pita, 31, a plataforma já tem um ano e meio de vida. Não é um simples Airbnb (ainda que o modelo de negócio seja o mesmo: uma taxa sobre as transações realizadas). Há três objetivos, bem específicos, que diferenciam a proposta da Diáspora: difundir a cultura negra, conectar pessoas interessadas por essa cultura, e fortalecer as comunidades negras espalhadas pelo Brasil — seja financeiramente ou por meio da descoberta da identidade.
Apesar de bem recente, o negócio já se tornou referência entre grupos e organizações ligadas à questão raciais no Brasil. “Como a nossa estratégia de diálogo é focada em redes, os movimentos sociais estão nos abraçando fortemente. Um exemplo é que fomos indicados como a plataforma oficial de hospedagem do Fórum Social Mundial que acontecerá em Salvador”, conta Carlos Humberto.
A conversa com Carlos, André e Antonio aconteceu na sede da Estação Hack, recém inaugurado espaço na Avenida Paulista, em São Paulo. Lá funciona um programa de aceleração de startups com impacto social capitaneado pelo Facebook Brasil, em parceria com a Artemisia. A Diáspora faz parte da primeira turma de startups selecionadas para receber mentoria e usar o espaço construído pelo Facebook especialmente para o projeto. Carlos conta como se sente: “Estamos em uma espaço muito privilegiado. Nesse prédio, nessa quadra, nessa avenida. Isso já agrega muitos valores para gente e muitos valores para o nosso negócio”.
Chegar “até aqui”, porém, não foi uma das tarefas das mais fáceis para os três sócios. A Aceleradora Estação Hack recebeu mais de 760 projetos para análise e o processo de seleção durou dois meses. Ao todo são dez empresas que ficarão na Estação Hack por seis meses. As startups selecionadas também passam a fazer parte da rede da Artemisia, uma das maiores aceleradoras de impacto social do Brasil.
Nem todo sonho de empreender tem um ponta pé inicial positivo. Às vezes, um produto ou serviço surge de uma necessidade que só conhece quem vive na pele. Morador do bairro de Santa Teresa, um dos mais procurados por turistas no Rio de Janeiro, Carlos via nos sites de acomodação compartilhada uma oportunidade para cobrir os custos do apartamento que mantinha sozinho. Ele só não imaginava que teria que enfrentar tantos obstáculos. Ele conta:
“Uma das situações mais incisivas foi de um casal estrangeiro que chegou, me conheceu, e não quis ficar. Eles foram embora enquanto eu comprava frutas típicas para eles no mercado”
A história segue: “O casal deixou um bilhete na porta dizendo que não era bem o que eles esperavam, mas não pediram reembolso, nem reclamaram. Na verdade, eles não esperavam ser recebidos por um anfitrião negro”.
A experiência dele não é um caso isolado. Um estudo da universidade de Harvard, nos EUA, mostrou que há um índice maior de rejeição de pessoas negras em sites de acomodações compartilhadas. De acordo com o estudo, uma pessoa negra tem 16% mais chances de ter seu perfil rejeitado. As experiências pessoais e o estudo da Harvard, conta, fizeram Carlos pensar em uma solução para evitar tanto que pessoas negras que oferecem suas casas para hospedagem como aquelas que viajam fossem vítimas de preconceito, além de fortalecer a comunidade e difundir a cultura afro-brasileira, dentro e fora do país.
“Com a Diáspora.Black, estamos falando de valorizar a história da maioria da população brasileira. Estamos dando potencial a cada pessoa, visibilidade às suas narrativas, raízes, cultura, identidade e riqueza”, diz Carlos. Para ele, e os usuários, o impacto vai muito além da hospedagem em si.
Depois da visibilidade que conseguiram por entrarem no programa de aceleração, a Diáspora.Black angariou 1 500 usuários cadastrados, entre viajantes e anfitriões, espalhados em 50 cidades de 12 países diferentes. Além dos brasileiros, há gente do Uruguai, Guiné Bissau, Cabo Verde, Angola, Moçambique, África do Sul e Nigéria.
Apesar de já romper as fronteiras brasileiras, a estratégia da startup é olhar para dentro, mas especificamente para as duas capitais “chamarizes” do turismo nacional: Salvador e Rio de Janeiro. O motivo é evidente, Salvador é considerada a capital com maior comunidade negra fora da África no mundo, enquanto o Rio de Janeiro ocupa o terceiro lugar desta lista.
Apesar de focar no território nacional, algumas demandas internacionais acabam aparecendo. Recentemente, a filósofa e escritora Djamila Ribeiro procurou a Diáspora.Black em busca de uma hospedagem compartilhada em Angola. Conversando com as redes de contato, os sócios encontraram diversos anfitriões com rapidez. “A população negra engajada já está entendendo a Diáspora como uma ferramenta de conexões”, afirma Carlos.
A startup também identificou que há um fluxo grande de estudantes afro-americanos para o Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. Por isso, deu início a um trabalho de parceria e articulação com universidades e grupos de fraternidades dos EUA . “A estratégia é ter uma rede consolidada para recebê-los, por isso focar em alguns destinos específicos é mais interessante para o negócio nesse momento”, diz Antonio.
Para casos como o de Djamila, a Diáspora.Black tem se valido da sua rede para suprir as demandas. O que eles chamam de redes são as organizações que discutem a questão do negro no Brasil em várias instâncias e lugares. Essa mesma rede foi responsável pelos usuários que estão na plataforma hoje, já que a startup ainda não investe em publicidade.
A estratégia de mobilização de redes tem dado resultado e aproximado ainda mais o serviço do público alvo. Agora, com a ajuda do Facebook, os sócios esperam aumentar a base em imodestos 500% até o fim deste ano, chegando a 10 mil usuários.
Também já está no planejamento agregar novos serviços ao portfólio. A partir do segundo semestre de 2018, a plataforma passará a ter conteúdos e guias turísticos para ajudar os viajantes a conhecerem as histórias que nem sempre são contadas.
“Desde o lançamento da plataforma fomos procurados por guias e agências focados em roteiros relacionados à cultura negra. Por outro lado, os viajantes demandam da gente este tipo de serviço, como opções para cada cidade”, diz Antonio. A ideia é atender às duas demandas, incluindo na plataforma anúncios dos roteiros e das agências.
Uma das tarefas será resgatar as narrativas esquecidas ou pouco conhecidas do público em geral para oferecer experiências que vão além dos roteiros tradicionais e mais óbvios. “Às vezes a gente acha que pelo quantitativo só Rio e Salvador tem grandes manifestações organizadas da cultura negra. Mas o Rio Grande do Sul, por exemplo, é o estado que tem o maior número de terreiros do Brasil. É também o estado que tem o maior número de clubes negros, graças a um movimento muito forte no final da abolição”, conta Carlos.
O último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Economia), mostra que a comunidade negra representa 54% da população brasileira. O trio fala de como o empreendimento é capaz de impactar a vida de uma família anfitriã, por exemplo. De acordo com eles, atualmente os anfitriões da plataforma têm, em média, um aumento de 30% na renda familiar. Carlos fala mais:
“Uma perspectiva importante é o mercado. Não ter serviço para essa população é uma forma de exclusão. Por isso, estamos atentos às oportunidades”
Além disso, 74% da base é composta por mulheres negras. “Essas mulheres são nossa principal métrica de impacto social. Está associada a três ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) estabelecidos pela ONU: igualdade de gênero, geração de renda e redução da desigualdade. As mulheres negras estão bem na base da pirâmide social, e quando se enxerga esse percentual, dá para ver nosso impacto”, completa Carlos.
Mesmo assim, a cada nova reunião de negócio, os sócios são sempre questionados sobre até onde uma plataforma de acomodações compartilhadas focada no desenvolvimento e na visibilidade da cultura negra não cria uma segmentação excludente.
“Há uma dificuldade de enxergar essa visão de mercado. A gente imaginou que lidar com isso fosse mais fácil ou que a barreira não fosse essa. A gente tem os nossos números de mercado, mas não importa, temos sempre que tentar desconstruir a visão do outro”, conta Antonio. “A gente acaba tendo que ser um pouco didático, dar toda uma explicação porque focar na comunidade negra é importante”, diz André.
Mas o impacto social da Diáspora.Black é ainda anterior aos resultados que a plataforma tem apresentado. A presença dos sócios no projeto do Facebook já é disruptiva por si só. Carlos, André e o Antonio são a única startup do projeto composta apenas por negros. Ocupar lugares onde a presença das minorias não é costumeira já é um entrave, adicione isso ao fato de ser micro-empreendedor no Brasil e você consegue vislumbrar o tamanho do desafio que a Diáspora.Black tem pela frente. Antonio fala a respeito:
“Empreender é complexo e tem seus efeitos psicológicos sobre muita gente. Como negros, ainda precisamos aprender a lidar com algumas questões para nos afirmarmos, nos apoderarmos desse lugar, e então pautarmos nossas demandas de negócios para evoluir”
A máxima de que ser empreendedor no Brasil é uma tarefa árdua já é bem conhecida, mas há ainda mais obstáculos no afroempreendedorismo. Para tirar a Diáspora.Black do papel, 80% do capital investido — no total, 90 mil reais — veio do bolso dos sócios.
“O momento em que a gente entrou no projeto também foi o momento da nossa saída do mercado de trabalho. Eu, por exemplo, tinha o FGTS e alguma economia, que aportamos no negócio”, diz Antonio. A outra parte do investimento, cerca de 17 mil reais, veio por meio de uma campanha de financiamento coletivo. O valor arrecadado foi usado para aprimorar a plataforma, que passou a fazer também as transações comerciais entre anfitriões e viajantes.
Manter-se em São Paulo tem sido outro desafio para o grupo. Sem salário há mais de um ano, eles contam com a rede criada pela própria plataforma para economizar com hospedagem na cidade. Mas a mentoria na Estação Hack dura seis meses e, até lá, a equipe precisa se manter para aproveitar o programa. Para isso, os sócios tiveram a ideia de abrir outro financiamento coletivo, desta vez para ajudar nos custos com alimentação, acomodação e transporte da equipe. Hoje em dia, o negócio tem, além dos sócios, mais dois funcionários. O faturamento ainda é pouco, insuficiente para sustentar a operação.
Apesar das dificuldades, eles estão cientes do estágio em que o negócio se encontra. Segundo Carlos:
“Quando topamos vir para São Paulo, sabíamos do desafio que seria, pois não há nenhuma contrapartida em viabilidade de transporte, alimentação, nada”
Para os sócios, porém, ser acelerado por uma das maiores empresas de tecnologia do mundo é uma chance que vale o esforço:
“Aqui temos a possibilidade de conversar com os melhores, de estar dentro de um programa de aceleração com uma estrutura que conhece bem o que são os negócios de impacto social e isso nos abre muitas portas”, diz Carlos. “Então, é determinante que a Diáspora.Black passe por esse espaço e ocupe-o de todas as maneiras.”
Projetos disruptivos costumam surgir de histórias pessoais transformadoras ou surpreendentes. Com a Diáspora.Black não foi diferente. Há 14 anos, Carlos (que hoje é mestrando em Desenvolvimento Territorial) se tornava o primeiro negro brasileiro a estudar em Harvard por meio de um projeto social. Na época, o governo brasileiro começava o diálogo sobre as políticas de ações afirmativas de cotas no país. A iniciativa, feita em parceria com o governo dos EUA e as universidades brasileiras, funcionou como o pontapé inicial.
Aluno bolsista da PUC (Pontifícia Universidade Católica), Carlos deixou a casa no subúrbio do Rio de Janeiro, onde vivia com os pais e mais 10 irmãos, para estudar em uma das mais conceituadas universidades do mundo.
“Foi um choque muito grande. E eu não me contive só na universidade, fui procurar os movimentos sociais e fiquei trabalhando em uma organização que estava ajudando a construir o primeiro Fórum Social Mundial de Boston”.
De volta ao Brasil, passou a se engajar ainda mais nos movimentos sociais de promoção da igualdade. Essa trajetória o levou até o sócio André, designer, que é filho de Janete Ribeiro, militante histórica do movimento negro no Rio de Janeiro. “A minha mãe já era amiga do Carlos há um tempo e essa rede comum nos aproximou”, diz André. “Ver a inquietação do Carlos com um problema que faz parte do nosso cotidiano casou perfeitamente com o que eu queria fazer.”
Já Antonio conheceu Carlos por meio de uma plataforma de acomodações compartilhadas. O jornalista havia saído de Salvador para tentar carreira em São Paulo, mas acabou trocando a capital paulista pela fluminense. Filho de uma família de classe média alta, Antonio não se via dentro de uma identidade negra. Ele fala:
“O processo de ascensão econômica do negro é associado, muitas vezes, a um silenciamento da identidade. Eu mesmo não reconhecia a identidade negra como um valor”
Ao deixar a Bahia, a cor da pele passou a ser uma questão. “A partir do momento que saí de uma zona de conforto, fui enfrentando diferentes perspectivas daquilo que achava que era natural. O que eu tinha de identidade como algo natural e meu, passou a ser visto como risível, alvo de brincadeira e dos estereótipos todos”, diz.
Se Antonio se sentia deslocado, em casa era outra coisa. Ao morar junto com Carlos, criava um espaço de acolhimento, de informação e de fortalecimento da identidade.
“Esse processo me fortaleceu para eu conseguir afirmar minha identidade. Na época, Carlos estava começando a desenvolver a Diáspora. Eu achei que tinha todo o valor possível porque era minha história também”, conta, e segue: “A ideia é que a Diáspora possa proporcionar outros encontros e outras trocas que fortaleçam pessoas. Conectar essas referências não só dentro de casa, mas em mais cidades e países.”
Como usar o mundo corporativo para reduzir a desigualdade racial? Por meio da tecnologia, a Diversidade.io conecta afroempreendedores a grandes empresas que desejam tornar sua cadeia de fornecedores mais inclusiva.
Jéssica Cardoso sofreu preconceito ao oferecer seu trabalho de intérprete de Libras como autônoma. Ela então decidiu criar uma rede de profissionais negras para tornar eventos e empresas mais acessíveis e lutar contra o racismo estrutural.
Num meio dominado por homens brancos, advogadas negras muitas vezes acabam cobrando pouco e precarizando o seu serviço. Contra essa realidade, Dione Assis fundou a Black Sisters in Law, uma plataforma ESG racial para o mercado jurídico.