“Durante aqueles 21 dias no hospital, as coisas que eu vi e vivi me mudaram para sempre. Eu não era mais o mesmo”

Giuliano Zanelato - 24 nov 2015
O diretor de conteúdo Giuliano Zanelato fazia um projeto sobre esporte, mas sua vida parou quando a filha foi internada. Em meio ao caos, ele encontrou seu silêncio e percebeu que aprenderia muitas lições (foto: Alexandre Schneider).
Giuliano Zanelato - 24 nov 2015
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por Giuliano Zanelato

 

Muito se fala de esporte e pouco se fala de esporte.

Muito se fala sobre o dinheiro que roda no mundo esportivo, as fortunas, os grandes negócios, as constantes fraudes, a ostentação, os corpos perfeitos.

E, não me entenda mal, acho essenciais as denúncias de corrupção em qualquer área.

Acho divertida a exaltação das cifras astronômicas, quase fora da realidade.

E nada contra belos corpos sendo exibidos. Gosto de vê-los como todo mundo, sem falso moralismo. Acho que tem espaço para tudo.

Mas o quanto estes elementos fazem parte da essência do esporte, do jogo, da competição, daquele momento que inspira quem joga e quem vê? Quer estejamos falando do cara comum que corre sozinho à noite sem qualquer holofote, quer estejamos falando sobre o super atleta de alto rendimento, que rompe limites, antes impossíveis para um ser humano. É neste território que nasceu a ideia do ESPORTE(ponto final).

E que tal convidar os atletas mais simbólicos do Brasil para elegerem os momentos definitivos que viveram e que viram no esporte?

Aquele momento que mudou tudo, que bateu na alma, que te fez melhor.

A primeira ideia foi a de produzir um filme. Uma obra, com uma data de lançamento singular e programada. Mas, por que não um projeto digital, onde as entrevistas são disponibilizadas pra quem curte esporte ao longo do processo de produção, onde é criado um álbum de figurinhas online de atletas e de momentos? Assim, vamos aprendendo com a rede que vai sendo construída, até chegar no longametragem.

Ou seja, o filme é um desdobramento e não a única razão.

Tá fácil, então. No conteúdo, vamos trazer os maiores atletas do país. E o formato será original para um projeto de esporte realizado no Brasil, ou seja, tínhamos acabado de criar uma banana azul super nutritiva.

Explico melhor, muita gente vive de vender bananas. Eu mesmo já vendi várias. Se você quiser vender, terá apenas que encontrar um lugar que esteja precisando de mais bananas do que ele já tem. O mercado de bananas cresce sempre em progressão geométrica, salvo uma crise ou outra, ao longo dos anos. Se sua banana for legal, tiver um preço competitivo e você tiver uma barraca em ordem, vai acabar vendendo. Ninguém tem medo de comprar uma banana a um bom preço de um cara conhecido.

Agora, se você criar uma banana super nutritiva azul e não for um grande fazendeiro ou um grande distribuidor, está literalmente com um bom problema nas mãos.

Quem em sã consciência quer ser o primeiro a provar uma banana super nutritiva azul? Sem qualquer parâmetro? Sem histórico se faz bem? E lembre-se, não estamos falando de comprar uma única banana, mas sim, de investir no lote inteiro.

Para facilitar um pouco, com a ajuda de alguns bons companheiros, produzi as primeiras entrevistas do ESPORTE(ponto final), uma espécie de piloto para tornar o entendimento do projeto mais palpável. Os três primeiros entrevistados, três gigantes fora e dentro do esporte: Dr. Sócrates, Oscar Schmidt e Ana Moser.

Em meados de 2011, tudo estava pronto para o gol. O projeto estava desenhado, as primeiras entrevistas editadas, uma linguagem estabelecida e minha primeira filha tinha acabado de chegar neste mundo.

Quem tem filhos sabe que este momento, em que você é transformado em pai por uma criança, traz uma energia descomunal e um jeito mais bonito de enxergar os outros e a si mesmo.

Embora tivéssemos muito receio de sair para vender algo que para nós mesmos era diferente, Bruno D’Angelo, o produtor executivo do projeto, e eu tínhamos agendado uma reunião com um jovem e ousado diretor de uma grande empresa do varejo. Um cara conhecido pelo mercado por não se acomodar e estar sempre atrás da próxima boa mudança. Parecia ser uma ótima chance para apresentar uma ideia nascida para o digital, que ia além das fronteiras tradicionais.

Mas, em uma madrugada do mês de julho, tudo na minha vida mudou.

Minha filha com 4 meses e 9 dias foi diagnosticada com uma questão de saúde rara. A questão era tão rara que ninguém sabia o que fazer. Havia grandes caras nos ajudando. Havia gente perdida. Havia especulações. Tudo que sabíamos era que tratava-se de algo que provocava sangramentos fáceis e até espontâneos. Ouvimos muita coisa de pessoas com jalecos brancos: “Se ela sobreviver, nunca poderá nem pular em uma piscina, devido ao impacto da água no corpo dela”, “Não existem alternativas, nem medicamentos para ela no Brasil”, “Não existem tratamentos nem em países de primeiro mundo”.

Enquanto isso, os médicos de verdade, de alma, trabalhavam, tentavam achar caminhos e nos acalmar.

Ela dormiu por dias inteiros em um quarto de UTI e tudo que minha mulher e eu podíamos fazer era simplesmente ficar ao lado da cama. Não podíamos nem pegar nossa filha no colo

Aquele quarto virou nossa casa, nossa extensão de mundo. Tudo que importava, estava ali.

É estranho como o mais completo caos pode ser silencioso e aparentemente pacífico.

O conhecimento de alguns bons médicos e de bons enfermeiros foi essencial. Nós, como pais, tivemos que tomar decisões gigantescas para as quais nunca poderíamos estar preparados. No entanto, depois de alguns dias, tudo que podíamos fazer era nos concentrar e esperar, pois Deus e uma menina de 4 meses precisavam fazer o trabalho todo agora.

Eu praticamente não dormi durante este período, às vezes fechava os olhos por alguns minutos, mas não entrava em sono profundo em nenhum momento, sabia tudo o que estava se passando até no corredor. Então, tive muito tempo para pensar. Pensava sobre que tipo de homem que eu era, o tipo de homem que queria ser, e principalmente sobre o tipo de mulher que minha filha poderia ser quando crescesse.

E lembrei de uma pergunta a qual tinha visto em um filme, quando era garoto, que dizia assim: “Se você fosse para guerra, quem ia querer ao seu lado?”. Como não tenho irmãos, minha vida toda me esforcei para achar e achei bons companheiros, com quem eu pudesse contar e que pudessem contar comigo e, talvez por isso, a frase desse filme fosse tão simbólica para mim.

Mas a resposta surgiu naquele quarto de UTI, no meio daquelas madrugadas silenciosas.

Se eu fosse enfrentar a maior batalha de uma vida toda, queria aquela garotinha de 4 meses, que estava deitada naquela cama comigo. Ela era a pessoa mais cascuda, forte e esperta que já tinha encontrado no meu caminho

Dias depois, ela acordou. Abriu primeiro o olho esquerdo, depois de algum tempo o direito. Nunca vou me esquecer desta imagem. Eu estava ali, do seu lado e ela do meu lado.

Com o passar do tempo, foi respondendo (como um bebê de 4 meses se comunica) a todas as perguntas e superando todos os obstáculos necessários para sair da UTI, sair do hospital e ir para casa.

A questão de saúde rara em relação à coagulação continuava e se demonstrou raríssima. Não foi fácil. Não é fácil. Longe disso. Era só o começo de uma jornada. Não houve uma comemoração. Mas a verdade é que tínhamos testemunhado uma vitória gigantesca, épica de uma menina, a qual deveríamos ensinar sobre a vida.

Minha filha só havia ido parar naquele quarto de UTI, porque ela tinha uma questão rara e apenas havia saído daquele quarto, porque ela é única. Esta constatação não é minha, mas sim, de um dos maiores pesquisadores do mundo em questões de coagulação, que conheceríamos anos mais tarde.

O ponto é que durante aqueles 21 dias no hospital, as coisas que eu vi, que eu vivi me mudaram para sempre. Eu não era mais o mesmo. E aprendi duas coisas que achei que já soubesse. Digo achei que soubesse, porque ouvir um ensinamento é completamente diferente de viver uma lição.

Primeiro: se tem algo para fazer, faça. E faça hoje

Segundo: sempre há uma saída, sempre há uma resposta. Você só precisa achar o caminho até ela ou até quem a conhece.

O que parece ser uma volta, uma interrupção, na história do ESPORTE(ponto final) foi o que faltava para eu realizar algo que acreditava. Não um dia, em algum futuro remoto, quem sabe. Era agora. Na verdade, eu tinha encontrado o equilíbrio perfeito entre me entregar para o que acreditava e não ligar porra nenhuma para o que o resto do mundo pensava.

Era hora de falar com os maiores do esporte e produzir um trabalho que eu pudesse mostrar daqui uns anos para a minha filha.

A motivação finalmente estava nos 120%, mas os acordos comerciais ainda precisavam ser conquistados. There is no free lunch. Se você tiver certeza que vai ganhar uma maratona na hora da largada, ainda assim, terá que correr a maratona inteira.

E assim que a vida foi ganhando ritmo novamente fora do hospital, Bruno e eu colocamos nossa banana azul embaixo do braço e saímos por aí.

A reunião com o jovem diretor, que havia sido adiada, aconteceu. Não deu frutos naquele momento.

Continuamos. De e-mail em e-mail. De porta em porta, até que um dia retornando a uma empresa onde já havíamos estado, sentamos frente a frente com três pessoas, uma especialista, um gerente e um diretor, que nos escutaram e falaram de coração aberto. O ESPORTE(ponto final) encontrava seu primeiro apoiador, uma empresa sólida e com história no incentivo a cultura e ao esporte, inclusive de vanguarda.

Exatamente hoje, quando estou escrevendo este texto, chegamos à nossa trigésima entrevista com o Comandante Alex. Uma daquelas figuras jovens, que demonstram ter mais experiência e sabedoria do que a idade que têm.

E daí, não por acaso (não acredito em coincidências) no meio da entrevista, ele vira para mim, respondendo sobre o momento que viveu e diz: “Sempre há uma solução, um caminho, o esporte me ensinou isso”.

Parando para pensar, outros atletas me disseram coisas que se conectaram, quase por acaso.

Ana Moser: “Não importa muito o que as pessoas falam. O que importa é o que você consegue fazer”.
Meligeni: “Eu parei de pensar no que as pessoas pensavam e comecei a pensar na solução pra ganhar”.
Rogério Sampaio: “Foi desse jeito que eu sempre encarei os desafios: de frente”.
Giovane Gávio: “Esporte é muito mais do que uma Ferrari e uma mulher bonita”.
Jackie: “Esporte é determinante, tem um dia que você pode ser ou pode não ser”.
Sócrates: “Eu acho que fundamentalmente é isso. A gente consegue se transferir pro desconhecido, pro incompreensível através do esporte”.

Daí, quando uma editora, uma velha conhecida, sugeriu, me deu a oportunidade, quase me desafiou a escrever um texto contando um pouco da origem do ESPORTE(ponto final), me veio à cabeça algo que o Bruno me disse algumas vezes: “Todo trabalho autoral, independente da linguagem, de uma forma ou de outra, acaba sendo sobre a história do autor”.

Eu não concordo com isso. Mas vai saber, né?!

Pouco a pouco, o ESPORTE(ponto final) cresce, ganha corpo e o álbum de figurinhas vai sendo preenchido. Além dos momentos do esporte, em breve lançaremos uma nova linha de conteúdo.

Não sei se nossa banana está deixando de ser azul ou se as pessoas acabam se acostumando.

E quanto à minha pequena, está fazendo natação e há algumas semanas comprei uma tabela de basquete. Demos nossos primeiros arremessos juntos. Esse foi o meu maior momento no esporte.

 

Giuliano Zanelato, 40, é diretor de conteúdo, fundador do projeto ESPORTE(ponto final) e da produtora Gaia Produções. Torce para o Santo André e o Los Angeles Lakers.

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