Levar a cultura maker para dentro de um hospital focado no atendimento de pacientes com diagnóstico de comprometimento mental. Essa é a audaciosa, porém enormemente gratificante, missão do ex-empresário, engenheiro e entusiasta do “faça você mesmo”, José Michel. Desde julho deste ano, ele e a esposa, Alice, dedicam todas as quartas-feiras a ensinar um grupo pacientes dependentes químicos no Hospital Psiquiátrico Pinel, em São Paulo, a botar a mão na massa e construir algum objeto do zero. O que parece um passatempo se revela, na prática, um exercício importante de empoderamento e, junto disso, de autoconsciência.
Para entender como esses dois mundos aparentemente tão distantes se cruzaram é preciso voltar um pouquinho no tempo. O gosto de Michel pelas coisas manuais vem de longe. A vida toda ele sempre gostou de construir as coisas em vez de comprá-las prontas. Os móveis de casa, a cozinha da filha, a guitarra do filho e até mesmo o restauro de carros antigos, tudo ele próprio que faz. Resultado disso é que a garagem de sua casa sempre teve mais máquinas, equipamentos e ferramentas do que, no caso, carros.
Depois de uma longa carreira na área como executivo na área de desenvolvimento de produtos, tendo passado por empresas como banco Itaú e a metalúrgica Tenaris e de ter tido até mesmo seus próprios negócios, ele decidiu que era hora de ir atrás do que realmente o fazia feliz. Vendeu sua participação nas empresas para realizar o antigo sonho de encontrar mais gente que dividia a mesma paixão. “Viajei pelos Estados Unidos e Europa encontrando meus amigos garagistas que só conhecia pela internet. Isso foi há mais ou menos uns dez anos, quando estava começando esse movimento maker. Na época, estavam surgindo as primeiras Techshops nos Estados Unidos, fui em todas”, conta.
De volta ao Brasil, Michel se convenceu de algo que já suspeitava. Sua garagem era grande e equipada demais. Parecia um desperdício toda aquela estrutura estar sendo utilizada só por ele. “Acabei me aproximando dos fundadores da Techshop, apresentei a eles a ideia de trazer o modelo para o Brasil, consegui investidores interessados mas, no fim, a transferência dos recursos atrasou e, passado o calor do momento, tanto eu como os investidores reconhecemos que reproduzir o modelo dos Estados Unidos talvez não funcionasse no Brasil. Optamos, então, por abrir mão da parceria”, diz. Bom, mas aí a sementinha estava plantada e Michel não desistiu da ideia de criar — ele próprio — um makerspace. Por que não?
O SONHO DO MAKER SPACE ACONTECEU, MAS DUROU POUCO
A ideia saiu do papel junto com outros três amigos. “Encontramos um espaço, mobiliamos, pintamos e arrumamos no melhor estilo maker”, conta. Em junho de 2016, o Engenho Maker abriu as portas em uma parceria com o Instituto de Engenharia. Num misto de coworking e maker space, o espaço oferecia equipamentos e estrutura disponíveis em planos mensais (500 reais) diários (100 reais) ou de dez horas (150 reais). Durante os 12 meses em que operou, além de oferecer cursos, consultoria e palestras, o Engenho Maker promoveu sete Maker Fests, ou seja, eventos que uniam oficinas, workshops e atividades e cujo objetivo era reunir makers, criativos, engenheiros, estudantes e quem mais estivesse interessado no tema para um grande festival “faça você mesmo”. José Michel fala dessa fase:
“Foi um período muito legal, juntar makers dessa forma em um espaço de convivência e criação é uma experiência maravilhosa”
No entanto, após apenas um ano desde a abertura, a decisão de um dos sócios de se mudar para o exterior, somada a uma série de dificuldades do negócio acabaram determinando o fim da curta vida do Engenho. A dificuldade de reter clientes foi uma delas. “O Maker é um cara complicado, ele tem ciúme de ferramenta, ele se apega aos seu equipamentos. E não é raro que depois de utilizar algum equipamento em um makerspace ele acabe comprando um igual para ter em casa”, afirma.
Além disso, não era muito fácil encontrar os profissionais adequados para trabalhar em um espaço desse tipo. “Um makerspace é muito mais uma questão de pessoas do que máquinas, você pode começar um com um tubo de cola, mas ele não vai ser nada sem as pessoas. É preciso saber acolher, é um serviço parecido com hotelaria ou restaurante: a experiência do usuário tem que ser muito boa”, diz ele, e prossegue: “Acho que falhamos um pouco nessa parte. As pessoas precisariam de muito mais apoio para realizar os projetos. Eu mesmo me envolvi em vários, mas sofria muito por não conseguir oferecer tudo que os clientes queriam”.
José Michel também aponta ainda a dificuldade de conseguir investimento externo. Para começar o negócio, os sócios investiram cerca de 300 mil reais do próprio bolso. Em um ano de operação, esse valor foi em parte recuperado, mas o negócio acabou não se mostrando sustentável a longo prazo.
COMO TRANSFORMAR UMA FRUSTRAÇÃO EM UM PROJETO SOCIAL
Foi durante uma visita dos alunos da Escola de Design Thinking à garagem do José Michel que ele conheceu o psiquiatra, pesquisador e diretor clínico do Hospital Pinel, Felipe Machado, e também o especialista em inovação social e professor da FVG, Ademar Bueno. Apaixonados pelo movimento maker, os dois propuseram a José Michel a ideia de levar oficinas para dentro do hospital. “Nem tive tempo de ter medo, eu topei na hora”, diz.
Ele conta que, inicialmente, a ideia era apenas distrair os pacientes: “A pior coisa que existe para quem está internado é o tédio”. Já na primeira oficina, ele e Alice (que o acompanha neste projeto) se depararam com uma surpresa. O trabalho com os internos mal havia começado, mas a maior transformação já tinha acontecido — dentro deles.
“Quando a gente vê pessoas largadas na rua, sob efeito de drogas, muitas vezes esquecemos que são seres humanos como nós. Na primeira meia hora a gente se deu conta de que ali estavam pessoas com uma bagagem que a gente não fazia ideia. Aquelas pessoas que a gente vê como zumbis pelas ruas, são só pessoas que em algum momento fizeram uma escolha errada, mas cada uma delas tem um passado cheio de experiências, habilidades e talentos que não deveriam estar sendo desperdiçados”, diz. Segundo José Michel, as oficinas trouxeram um novo significado para os pacientes e também para os enfermeiros e estagiários do hospital:
“Empoderar uma pessoa dessas, que talvez nunca tenha se sentido útil, e mostrar a ela que ela pode criar algo com as próprias mãos é fascinante”
Ele conta que até mesmo as relações sociais no hospital se transformaram à medida em que o paciente da cama ao lado deixou de ser apenas um colega de quarto para ser um amigo que constrói um projeto junto.
Alice conta, ainda, que já aconteceu de um paciente pedir o adiamento da alta para poder participar da oficina mais uma vez e terminar um projeto. “É surpreendente e gratificante vê-los querendo retornar ao lugar onde estiveram internados. Isso mostra que há uma esperança para essas pessoas. Eu e o Michel já recebemos até convites para iniciar startups com os pacientes, tem surgido muita ideia legal e eles estão descobrindo talentos que podem vir a se tornar oportunidades de negócio. Estamos plantando a sementinha do empreendedorismo em pessoas que jamais teriam acesso a isso”, diz.
Até o momento já foram realizadas mais de 20 oficinas. O projeto, que começou com os dependentes químicos, hoje também atende mães de pacientes com autismo e pacientes com outros transtornos mentais, como esquizofrenia. A cada semana, Michel e Alice levam kits de montagem para a criação de um objeto diferente. “Agora queremos incluir uma cortadora a laser e o próximo passo seria uma impressora 3D”, adianta ele.
QUANDO AS OFICINAS MAKER AJUDAM NA RECUPERAÇÃO
Além de descobrir talentos e incentivar o empreendedorismo, o projeto deve dar origem também a um estudo científico para investigar o real impacto das oficinas na saúde e no comportamento social dos pacientes e funcionários do hospital. “Por enquanto a gente só tem uma percepção informal, mas sabemos, por exemplo, que desde que as oficinas começaram, há seis meses, nenhum paciente retornou à clínica com reincidência. Já consideramos isso uma enorme vitória”, conta Alice.
No momento, o projeto vem sendo custeado por meio de um convênio que o hospital tem com universidades privadas. “Hoje, todo o recurso do convênio vai para os materiais e equipamentos utilizados nas oficinas”, conta José Michel, que tem planos ambiciosos de transformar esse modelo em algo que possa ser levado também para outros públicos.
“Meu grande desejo é que esse projeto chegue ao maior número possível de ambientes, não só outros hospitais, mas também escolas e comunidades”
Seu sonho, no momento, é levar as oficinas maker para diferentes públicos a bordo de um caminhão itinerante. “Apostamos que com a expansão do projeto para outras instituições, inclusive as privadas, poderemos conseguir rapidamente a sonhada sustentabilidade”, diz Michel.
Ele conta também que tem recebido muitos pedidos de empresas para eventos, e portanto, um modelo de oficina móvel poderia atender também essa demanda. Sobre como viabilizar isso, Michel confessa que ainda não sabe. “No começo de 2018 quero me debruçar mais a fundo nesse projeto e pensar com calma nessa questão da captação de recurso. É difícil buscar patrocínio ativamente estando focado na realização das oficinas, mas estou aberto para isso”, diz. Por enquanto, está focado em fazer acontecer.
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