Violência é um tema que acompanha Renata Rizzi, 33, desde os seus 17 anos, quando um assalto em casa abalou a sua vida.
“Fui feita refém e sofri várias formas de violência. Tive síndrome do pânico, depressão, terror noturno… Estava no terceiro colegial. Meus amigos estavam pensando em festa, cursinho, vestibular — e eu não conseguia sair da cama.”
Traumatizada, Renata se viu passando de um extremo a outro: da vontade de ser correspondente de guerra (que a fez optar pela faculdade de jornalismo) ao impulso de sair correndo quando um professor pediu que ela cobrisse uma onda de ataques do crime organizado na capital paulista.
“Eu nem sabia como tinha passado no vestibular, de tão dopada de remédio que estava… E, quando o professor falou aquilo, pensei: ‘O quê?! Cê tá louco! Tá todo mundo fugindo de lá, eu é que não vou cobrir!’ A verdade é que eu fugia do conflito e não sabia o que fazer do jornalismo”
Ela acabou encontrando seu caminho — ou sua “própria zona de guerra”, como diz — no empreendedorismo social. Renata está à frente da Utopiar, uma marca de moda sustentável que engaja e capacita mulheres vítimas de violência doméstica, gerando renda e resgatando a autoestima.
PARA ELA, A VIOLÊNCIA FOI PONTUAL; PARA OUTRAS, É ROTINA DENTRO DE CASA
O jornalismo foi ficando para trás já durante a faculdade: Renata terminou o curso envolvida muito mais com marketing e o Terceiro Setor.
Em 2017, ela trabalhava como responsável pela área de marketing de uma multinacional de moda. E começou a notar a falta de mulheres em posições de liderança.
Em paralelo, topou com o Mapa da Violência 2015. Elaborado pela Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) com apoio da ONU, o documento trazia estatísticas chocantes. Por exemplo, 55% dos feminicídios no Brasil ocorriam no ambiente doméstico; e em 33% dos casos, o assassino era o companheiro ou ex-companheiro da vítima.
“Até então, eu não tinha feito as pazes com a minha história, porque não achava justo ter passado por aquela situação [do assalto]. Mas quando descobri que as mulheres correm mais risco dentro de casa do que nas ruas, comecei a pensar que tive um único dia de violência — e fui totalmente acolhida pela minha família”
Veio daí a vontade de proporcionar acolhimento para quem vive cotidianamente em risco, a partir da experiência que já tinha com a moda.
Renata costurou então uma parceria com a Associação Fala Mulher, de acolhimento a vítimas de violência doméstica. Caberia à ONG fazer a ponte entre essas mulheres e a Utopiar.
RENATA TEVE DE AJUSTAR O PROCESSO PARA O NEGÓCIO ENGRENAR
As mulheres apresentadas pela Associação têm aulas semanais de técnicas têxteis, como tingimento e bordado; ao concluírem as oficinas, são convidadas a produzir para a marca, sendo remuneradas por peça.
O portfólio da Utopiar inclui quimonos, camisetas, shorts, moletons, lenços e ecobags. Tudo produzido de forma artesanal, sustentável – o que no início demandou alguns ajustes.
“A gente começou fazendo tingimento natural, mas não dava para controlar muito bem o tempo porque, como não tínhamos um espaço próprio, havia um horário para fechar — e a técnica requer que se chegue a uma temperatura específica, que varia conforme o dia”
Para evitar o desperdício de água (comum no processo de tingimento tradicional), ela desenvolveu uma técnica de tingimento a seco, feito com spray. Também tentou levar aulas de corte e costura para as capacitações — mas ficou difícil de operacionalizar por falta de experiência e equipamento.
“E não faria sentido vender uma peça torta e mal costurada porque a pessoa poderia até comprar pela causa, mas ia deixar no fundo do armário, então era melhor pensar em outras formas de gerar esse apoio”.
Assim, o primeiro ano da marca – 2017 – foi, na avaliação da empreendedora, “um grande piloto”.
O PROJETO RESGATA A AUTOESTIMA DAS COLABORADORAS
As camisetas são confeccionadas em algodão orgânico da loja de malhas Aradefe, e cortadas e costuradas pelo Instituto Ecotece. Os quimonos são feitos em PET reciclado da Kite.
O tingimento e, especialmente, o bordado seguem modelos previamente desenhados. Mas, segundo Renata, são as alunas das oficinas que dão, de fato, a “cara” da Utopiar a cada item.
“A gente desenvolve a peça-piloto, monta um projeto e entrega para elas com todo o material necessário, por exemplo, para bordar, detalhando a cor da linha, o tipo de agulha.”
Desde 2017, 55 mulheres vítimas de violência foram capacitadas e se envolveram na produção da Utopiar. Hoje, 10 seguem colaborando com a marca.
“São mulheres que ouviram a vida inteira que não eram capazes e muitas realmente acreditaram nisso — mas aí começam a se ver aprendendo uma técnica nova, fazendo peças bonitas…”
Como estão produzindo enquanto aprendem (o que implica às vezes em ter de refazer uma peça), cada uma desenvolve o próprio jeito de trabalhar.
A remuneração varia conforme a produção entregue e a complexidade do desenho, o tipo de ponto e de linha etc.; há uma margem mínima de 10 reais por peça. Em média, cada colaboradora recebe entre 400 e 500 reais por mês.
O preço é calculado com base em gastos como os de tecidos, aviamentos, embalagens e tingimento, além dos custos fixos da marca. Para se ter uma ideia do quanto fica para quem produz, o quimono Cacto é vendido a 349 reais — dos quais 45 reais são para a mão de obra do bordado.
UMA REDE DE APOIO TECIDA POR SONHOS EM COMUM
Os nomes de flores e plantas são um recurso para homenagear quem produz cada roupa ou acessório, mas preservando a identidade das mulheres por questão de segurança.
As histórias delas se entrelaçam com as peças que produzem. Um dos quimonos, por exemplo, tem um bordado que lembra o pôr do sol para simbolizar o sonho de uma das bordadeiras de voltar para a Bahia, lugar de seu entardecer predileto.
Segundo Renata, o grupo é diverso — mas todas têm a violência em comum.
“São mulheres de idades diferentes; algumas de São Paulo, outras de fora; tem desde gente que já trabalhou com moda até quem nunca pegou uma agulha na vida. Algumas ainda moram com o agressor e outras vivem em abrigos sigilosos, casas secretas para onde vão com os filhos quando correm risco de morte”
Justamente por estarem em etapas diferentes do processo de romper com o ciclo de violência, umas vão inspirando as outras.
“Lá dentro [do local de produção] é um espaço seguro, então elas se sentem à vontade para contar seus medos e vontades. Vão se apoiando.”
Uma forma de apoio é ajudar a esquecer os “falecidos” (os agressores); quando alguém comenta que está pensando em reatar o relacionamento, logo é convencida do contrário pelas colegas.
EM MEIO À VIOLÊNCIA, A EMPREENDEDORA VÊ BROTAR A ESPERANÇA
Entre as histórias que se tingem de esperança na Utopiar está a da Rosa Negra, uma das que mais tocaram Renata.
Numa das oficinas, a empreendedora contou que estava grávida; a gestação estava no começo, a barriga ainda nem tinha aparecido.
“Aquele dia era o primeiro dela [Rosa Negra], que me falou: ‘era para eu ter uma menininha, mas perdi’. Eu comentei algo como ‘ah, realmente acontece’, porque imaginei que ela tivesse tido um aborto espontâneo… Mas aí ela contou que levou um chute do marido na barriga e, nessa agressão, perdeu o bebê. Aquilo foi tão violento para mim que precisei sair e dar uma respirada”
O que poderia ser uma lembrança constante de uma dor que não passa acabou se ressignificando, pouco a pouco.
“No começo de março, a Rosa Negra me disse que está vivendo a gravidez dela através da minha”, diz Renata. “Ela também contou que pensou muitas vezes em tirar a própria vida para tentar ‘encontrar a filha’ — mas que, agora, voltou a ter vontade de viver.”
REINSERIR AS MULHERES NO MERCADO PASSOU A SER UMA DAS METAS
Renata lembra também que a história da Cacto, que chegou quieta, sem querer conversar com ninguém, desconfiada de tudo, lutando para superar uma depressão.
Conforme foi aumentando o ritmo de produção e fazendo amizades durante os workshops, passou a considerar o dia da oficina como o mais feliz da semana.
Cacto não faz mais parte do time porque conseguiu um emprego fixo – o que passou a ser uma meta da empresa: reinserir as mulheres no mercado de trabalho.
“Percebemos que algumas delas queriam ficar com a Utopiar ‘para sempre’, mas esse não era nosso objetivo. Então, começamos a levar [para as oficinas] especialistas em empreendedorismo… Mas elas não estavam curtindo, porque não queriam empreender. Elas queriam trabalhar com carteira assinada”
Em 2019, Renata e sua equipe começaram a concentrar esforços em atividades de capacitação, buscando parcerias com recrutadores, ajudando a escrever currículos, divulgando vagas de emprego entre as alunas das oficinas.
UMA NOVA SÓCIA AJUDOU A PROFISSIONALIZAR ALGUNS PROCESSOS
Também em 2019, a Utopiar foi a única brasileira entre 22 selecionadas para a aceleração da Yunus & Youth, incubadora de negócios sociais.
“Foi uma experiência de muita troca com empreendedores de outras partes do mundo que estão vivendo dilemas e desafios parecidos”, diz Renata. “Saber que o professor [Muhammad] Yunus escolheu a Utopiar trouxe a sensação de que estamos fazendo a coisa certa — além de ter ajudado para que eu me visse, de fato, como empreendedora social.”
Naquele ano, Renata conheceu Natália Seibel. As duas foram apresentadas através de Miriam Lima, diretora da Rede Asta (negócio social que transforma artesãs em empreendedoras).
Formada em administração, Natália queria empreender algo ligado à moda e a mulheres em situação de violência doméstica. Era uma potencial concorrente da Utopiar. Acabou virando sócia.
Natália foi essencial, diz Renata, para profissionalizar alguns processos.
“Temos um perfil complementar. A Nath é bem focada em financeiro, operações, então a gente brinca que eu vou criando, ‘viajando’, e ela vem estruturando, colocando em ordem”
A equipe fixa, 100% feminina, conta com mais cinco colaboradoras: duas responsáveis por conteúdo, uma de controle de qualidade e outras duas para consultoria e desenvolvimento de produtos.
COM A PANDEMIA, ELAS PRECISARAM FORTALECER O DIGITAL ÀS PRESSAS
Antes da pandemia, a Utopiar vendia principalmente para empresas (Avon e Natura, por exemplo, compravam as peças como brindes corporativos) e em eventos na capital paulista — como as feiras promovidas pela Goiaba Urbana, em Pinheiros, e pela loja Pinga, nos Jardins.
As vendas online eram raras. Mas aí, com a crise sanitária, bateu o desespero.
“As multinacionais começaram a cancelar contrato porque não podiam gastar com nada que não fosse essencial… As feiras foram canceladas e a Prefeitura suspendeu nossas oficinas, por serem reuniões presenciais. Era o cenário mais adverso possível: a gente não tinha quem produzisse, nem quem comprasse”
A saída foi botar todo o foco no digital e montar um e-commerce “muito mais parrudo”, diz Renata. “A primeira atitude foi reunir os produtos que tínhamos à pronta-entrega e subir em um novo site.”
As sócias até então trabalhavam no local cedido pela ONG Fala Mulher. Ao retomar a produção, alugaram um espaço próprio e, recentemente, firmaram uma parceria paralela com outra ONG, a Casa Mariás, que também atua no combate à violência de gênero e encaminha voluntárias para as capacitações.
EM MEIO À CRISE, O RESULTADO FINANCEIRO VEM SURPREENDENDO
Os resultados mais recentes têm surpreendido as empreendedoras.
Se em 2020 o faturamento não passou dos 80 mil reais, em 2021 essa marca foi atingida em menos de três meses. Segundo as sócias, em 29 meses de oficinas realizadas, a Utopiar gerou quase 39 mil reais de renda, dividida entre as 53 mulheres que já passaram pela capacitação.
Os próximos passos são aumentar a equipe e expandir cada vez mais a produção. À espera de Helena, que nasce em agosto, Renata sonha com um mundo onde “moda sustentável vire pleonasmo” e no qual grifes inspiradoras — ela cita Flavia Aranha, Osklen e Patagonia — sejam cada vez mais frequentes.
“A palavra ‘utopia’ vem de um ‘não-lugar’, aonde a gente nunca vai chegar, mas que precisa ser o nosso norte. Precisamos ‘utopiar’ mais para entender em que mundo queremos viver. Depois, é colocar a mão na massa.”
Em 2023, para cada real de lucro, a MOL Impacto destinou 5 reais a organizações sociais. Roberta Faria fala sobre a cultura de doação no Brasil e como sua empresa engaja consumidores através do varejo para ajudar a construir um mundo melhor.
Desconstruir mitos e fórmulas prontas, falando a língua de quem vive na periferia: a Escola de desNegócio aposta nessa pegada para alavancar pequenos empreendedores de São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo.
Contra o negacionismo climático, é preciso ensinar as crianças desde cedo. Em um dos municípios menos populosos do Rio de Janeiro, a Recickla vem transformando hábitos (e trazendo dinheiro aos cofres públicos) por meio da educação ambiental.