Tem sido uma experiência interessante cruzar com as pessoas pelas ruas de Toronto, a maior cidade canadense, onde moro há quase dois anos.
Mesmo com todo mundo encaramujado há treze meses, ainda é possível encontrar uns e outros em minhas caminhadas diárias à tardinha.
(A rigor, moro há pouco mais de meio ano no Canadá. O resto do tempo passei dentro de casa, sem conseguir imergir de verdade no novo país.)
No Brasil, morando em São Paulo, eu pouco andava pelas calçadas. O Morumbi, como tantas áreas urbanas brasileiras, não é bairro para você se aventurar fora de casa sem a proteção e a conveniência de um carro.
Aqui, tenho batido perna pelo meu bairro e cercanias. E aprendido um pouco com as diferenças culturais.
No Brasil, lembro que cruzar com desconhecidos, na rua, em lugares públicos, era uma experiência que embutia dois aspectos.
Primeiro: a catalogação mútua, imediata, entre as pessoas. Segundo: o termômetro da agressividade e da autopreservação — especialmente na relação com outros homens.
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Com relação ao primeiro aspecto, a catalogação do outro e de nós mesmos: o Brasil é uma sociedade de castas. Ainda nos dividimos grandemente entre sinhôs e escravos, entre patrões e despossuídos.
O sonho de todo brasileiro é ter coisas – casa, carro, condições de comer numa churrascaria no domingo ou de poder fazer uma compra no shopping quarta à noite. Entre outros motivos, para mostrar aos outros e a si mesmo que não você não é pobre.
Nosso pesadelo é estar abaixo dessa tênue linha de classe média, e sermos identificados como habitantes das classes C, D ou E. É uma condição vexatória, da qual fugimos, que tentamos esconder.
É um reflexo de uma sociedade com muita distância entre as duas pontas da régua. E em que não há nenhuma rede de segurança – se você tropeçar, vai se esborrachar no chão.
Os brasileiros se catalogam uns aos outros – e também a si mesmos – em suas interações sociais. Somos muito sensíveis a esses signos. Vivemos de tomar e dar carteiradas. Elas podem ser mais explícitas ou sutis, mas estamos sempre comparando pedigrees
Quem você é advém do que você tem, do que você faz, de onde você vem, de quem são seus pais, de onde você estudou, do clube que frequenta, de onde você mora, do carro que dirige, do destino de sua viagem nas férias, da cor da sua pele, dos seus olhos e cabelos.
Ou estamos acostumados com as prerrogativas da fila VIP e com as benesses do camarote – ou estamos expostos aos perrengues da geral. O Brasil é isso: se você não está sentado na cabeça de alguém, é muito provável que alguém esteja sentado na sua cabeça.
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Num país como o Canadá nada disso faz sentido. Todo mundo é gente, qualquer um é cidadão.
Mesmo numa cidade como Toronto, coalhada de imigrantes, em que 60% da população não nasceu em solo canadense, e em cujas ruas são falados quase 200 idiomas, não há esse prejulgamento em relação ao outro.
O canadense médio não vive de classificar automaticamente as pessoas. Porque não se coloca diante do interlocutor como um senhor ou como um servo. Não há por aqui o abismo social e econômico que sustenta esse tipo de segregação. Os sinais são outros
Quase ninguém é tão mais rico a ponto de ficar embevecido. Quase ninguém é tão mais pobre que se sinta constrangido com a sua própria condição.
Isso me faz constatar que a vida do “rico” no Canadá é mais dura do que do “rico” no Brasil.
Você tem um padrão de vida e de consumo de classe média alta? Os demais comem e vestem mais ou menos as mesmas coisas. Você tem um carro bacana? O carro do seu vizinho não é muito diferente.
Todo mundo usa os mesmos tênis. As diferenças são determinadas muito mais pelas escolhas do que pela falta de opção.
Ou seja: o que você tem, seus bens, seu patrimônio, não significam muito. E não lhe garantem nada.
A ostentação não faz sentido quando todos estão equiparados
O que só mostra, em contraste, como ostentar é um gesto cruel, antes mesmo de tudo o que tem de babaca, na medida em que depende de achar um destituído e postar-se à frente dele ou dela, para que você se sinta bem exibindo a abundância de que goza, em contraste com a escassez que flagela o outro.
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Num país mais justo e equilibrado, os “ricos” têm que rebolar também.
Ninguém vai lhe respeitar somente pelo que você tem. Ou, menos ainda, pelo que seu pai ou sua mãe conseguiu amealhar. Olhe para o lado: todo mundo meio que tem.
No Canadá, ninguém vai abaixar a cabeça para o seu sobrenome – porque um sobrenome não vale mais do que outro. E todo mundo frequenta a mesma escola e o mesmo hospital – então há muito menos privilégios disponíveis a serem sequestrados por uns em detrimento dos demais
Aliás, em sociedades mais horizontais, o exercício de vantagens baseadas na desigualdade social ou econômica é coisa de cuzão. Trata-se de um comportamento pouco tolerado. Uma coisa inimaginável mesmo.
Ninguém tem mais direitos ou menos deveres do que ninguém. “Você sabe com quem está falando?” é uma frase absurda, cômica, impronunciável — porque ridícula, muito antes de ser torpe, do ponto de vista de um canadense.
Isso tudo parece tornar os “ricos” canadenses menos arrogantes do que os “ricos” brasileiros. Eles sabem que as regras são as mesmas para todo mundo. Não tem atalho nem arrego nem jeitinho.
Perceba como a obscena concentração de renda brasileira é, antes de mais nada, uma abjeta concentração de oportunidades para a preservação de antigas cadeiras cativas entre os mesmos de sempre.
A lógica é simples e hedionda: quanto mais crianças a gente excluir e quanto mais jovens a gente alijar, mais fácil será o acesso dos nossos próprios filhos aos melhores postos do mercado de trabalho.
Da mesma forma, quanto menos a gente educar, quanto menos cidadãos dignos a gente formar, mais fácil será conseguirmos mão de obra barata para limpar nossa casa, cozinhar para a gente, lavar nossas roupas, estacionar nossos carros.
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Com relação ao segundo aspecto, o termômetro da agressividade e da autopreservação, gostaria de relatar, antes de mais nada, uma cena que vivi no Japão, no fim dos anos 90.
Eu estava em Tóquio, numa tarde de verão, e, de repente, em Harajuku, bairro excêntrico, que costumava antecipar a moda street wear que anos depois ganharia o mundo, me vi sozinho numa calçada, caminhando no sentido contrário a um punk barra pesada – pense numa criatura grande, suja e mal-encarada.
Quando eu me preparava para atravessar a rua, procurando já uma rota de fuga caso o sujeito decidisse escorraçar aquele gaijin da sua ilha, vi com o canto dos olhos ele enfiar a mão no bolso interno da sua jaqueta de couro – e sacar de lá um enorme leque florido, que abriu num gesto ágil e com o qual passou por mim se abanando. O sol estava a pino e fazia muito calor.
Corta para Toronto, 2021.
Sempre que cruzo com um ou mais sujeitos na rua, averiguo se há ali algum tipo de ameaça. Um instinto talvez brasileiro, de fotografar o grau de risco de cada situação.
Sempre que estou em rota de colisão com o outro, normalmente sou a pessoa que abre caminho e dá passagem. O que não me impede de avaliar se há alguma disputa em curso, se estou me rebaixando, se o outro está me faltando com o respeito, se estou me deixando abusar.
Em ambas as situações, o pano de fundo é medir forças com o outro. Tratá-lo como oponente. E nunca descartar a hipótese de uma agressão diante da qual eu precise reagir e me defender – inclusive fisicamente
Também já enxerguei receio, ou medo, ou respeito, nos olhos dos outros ao cruzarem comigo – sou um cara grande. E, confesso, nem sempre me esforcei para desfazer essa impressão. Especialmente quando tinha meus filhos ou minha mulher ou meus pais sob a minha guarda.
A violência é uma presença constante na vida brasileira. Nossa integridade, inclusive a física, está sempre por um fio. (Mulheres vivem isso de um outro jeito – e para elas essa sensação de insegurança é ainda mais cruel e desesperadora.)
Da briga na saída da escola, aos empurrões num show, à contenda diante de qualquer discordância, à possibilidade real e concreta de sofrer um assalto ou de ser atropelado na rua, a gente nunca está relaxado. A gente simplesmente não confia no outro. O outro é um inimigo, até prova em contrário.
No mondo cane, até cachorros mansos precisam mostrar os dentes de vez em quando, para sobreviver. Quando você precisa usar os cotovelos para garantir o seu lugar, a disputa territorial é uma premissa e uma premência.
Tem sido um belo exercício relaxar a guarda e descerrar os punhos. E perceber que o cara com os instintos menos civilizados ao redor talvez seja eu mesmo – e que melhorar isso só depende de mim.
Adriano Silva é fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft, Founder do Draft Inc. e Chief Creative Officer (CCO) do Draft Canada. É autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores.
Nesse feriado de Finados, vale a reflexão: morrer é inevitável. Já morrer sofrendo, sob tortura, em desespero, sem ter a quem recorrer, é coisa que cada um de nós deveria poder evitar em sua vida.
Não basta ser feminista, é preciso ser antimachista: como a minha filha abriu meus olhos para o horror cotidiano do assédio na vida de meninas e mulheres – e a persistência grotesca do machismo estrutural.