“Eu sou nômade, assim como meus ancestrais guaranis”, afirma Suellen Tobler.
Além de entranhado em seu DNA, o nomadismo faz parte da história familiar da desenvolvedora de sistemas, de 38 anos:
“Sou a única pessoa nascida em Minas da família”, ela diz. “Minha família por parte de mãe é do litoral do Paraná; por parte do pai, é [gente] do Amazonas que migrou para o Ceará.”
Não chega a ser uma surpresa, então, que Suellen tenha dado uma guinada em sua vida justamente após um longo mochilão… Ela é a criadora do Nheengatu App, uma ferramenta digital que visa fortalecer a luta pela preservação da língua nheengatu:
“Muitas lideranças [indígenas] me diziam que alguns jovens não tinham interesse em aprender a língua.. Então, desenvolver essa plataforma numa linguagem atraente para os jovens é uma possibilidade interessante de ser mostrada”
Língua do Tronco Tupi, o nheengatu aparece no Atlas Mundial das Línguas em Perigo, da Unesco, de 2010 (a edição mais recente), como uma das línguas “severamente ameaçadas”. Daí a importância de ferramentas que contemplem essa e outras línguas indígenas de povos originários do Brasil.
“O aplicativo é usado atualmente em escolas indígenas do Baixo Tapajós e também na formação de professores de nheengatu, normalmente através de projetores ou através de dispositivos compartilhados”, diz Suellen.
Ela afirma que hoje o Nheengatu App tem mais de 6 mil usuários. O número real, porém, tende a ser maior. “Como muitos são compartilhados, não temos como dimensionar um número exato de usuários.”
DEPOIS DE UM LONGO MOCHILÃO, ELA DECIDIU FINCAR RAÍZES (POR UM TEMPO) NA AMAZÔNIA
No fim da década passada, Suellen já vinha vivendo há um bocado de tempo com a mochila nas costas.
“Viajei pelo Nordeste e pelo Norte do Brasil, fui para o Peru pelo Acre e fiquei bastante tempo no Vale Sagrado dos Incas, onde me conectei com a minha ancestralidade indígena.”
O ano era 2018. Depois disso ela ainda andou por Equador, Colômbia e Estados Unidos. Daí, em 2019, embarcou de volta para Bogotá, decidida a tirar do papel um roteiro com o qual sonhava desde 2015:
“Fiz uma viagem por todo o Rio das Amazonas, desde onde ele recebe esse nome pela primeira vez — em Iquitos, no Peru –, até um dos pontos onde ele deságua, junto à ilha de Marajó”
O percurso durou quase dois meses. “Durante esse período desci em algumas comunidades, entre elas Santarém [no Pará].
Suellen já tinha passagem comprada e deixou a região. Porém, encantada, logo retornou, agora para se fixar por um tempo em Alter do Chão.
“Comecei a trabalhar com algumas ONGs. Através da Saúde & Alegria, eu ministrei oficinas para jovens de comunidades ribeirinhas extrativistas. Depois, na ONG Namazônia, ministrei oficinas de conteúdo digital, através de aplicativos gratuitos para celular”
Nem todos tinham celular; alguns pegavam emprestado da mãe, outros compartilhavam com os colegas. Mesmo assim, Suellen ficou surpresa com o talento dos jovens para operar os dispositivos digitais e encantada com a criatividade deles em narrar suas próprias histórias em primeira pessoa.
“E foi aí, através dessas oficinas, o primeiro contato que eu tive com a língua nheengatu.”
No começo de 2020, Suellen começou a cursar uma nova graduação, em antropologia, pela Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).
Visitando comunidades à beira dos rios Tapajós e Arapiuns, ela vinha se aproximando de lideranças locais.
“Logo no início, eu já percebi a luta pela retomada linguística muito forte ali no Baixo Tapajós – uma luta conectada com a demarcação territorial e a retomada identitária”
No mesmo ano, realizando um trabalho para uma ONG, Suellen ficou hospedada na casa de Dailza Araújo, que era então professora de nheengatu, na Escola Suraraitá Tupinambá, da aldeia São Francisco.
“Fiquei hospedada uma semana lá, e ela me ensinou algumas palavras de nheengatu e me presenteou com um livro, Nheengatu Tapajowara”, afirma.
O livro, explicou Dailza, era usado na formação dos professores que atuavam nas comunidades indígenas, como professores de nheengatu, para ensinar a língua aos mais jovens.
“Eu já vinha estudando alemão pelo Duolingo. E quando cheguei em casa e folheei o livro, encontrei algumas semelhanças [entre o nheengatu e o alemão], como o fato dos prefixos e sufixos serem usados de forma parecida, e às vezes algumas palavras se juntarem para formarem outras…”
Como exemplo, ela cita o sufixo rana, que em nheengatu significa “alguma coisa que parece, mas não é”. “Daí vêm palavras como suçuarana, que quer dizer ‘parece um veado [devido à cor do pelo do felino], mas não é.”
O livro despertou em Suellen o desejo de conhecer mais aquela língua. “Eu pensei, ‘Ué, eu estou aqui estudando alemão através do Duolingo, por que que eu não estudo em vez disso o nheengatu?”
UM EDITAL DE CULTURA FOI O ESTOPIM PARA CRIAR O NHEENGATU APP
Buscando plataformas online, Suellen não encontrou nenhuma que ensinasse línguas indígenas dos povos do Brasil.
“E buscando no Google Play, percebi que tinha bíblias judaico-cristãs traduzidas [inclusive] para muitas línguas indígenas. E encontrei essa problemática: falta um aplicativo aí…”
Ela conta que ficou com essa “pulga atrás da orelha”. Como estudante de antropologia, estava sempre envolvida com lideranças comunitárias, o que reforçava nela o entendimento sobre a importância de se ajudar a preservar o nheengatu.
Desenvolvedora de sistemas, Suellen não pensava em criar ela própria essa ferramenta. Até que, em 2021, ela tomou conhecimento de um edital de cultura digital da Secretaria de Cultura do Pará (Secult-PA).
“Li o edital e fiquei em choque, porque foi a primeira vez na minha vida que vi um edital cultural que contemplava o desenvolvimento de sistemas. E naquela mesma hora me veio a ideia de escrever esse aplicativo”
Ela conta que escreveu o projeto em uma tarde e enviou no último dia do prazo de inscrição. “Não achei nem que eu fosse ser contemplada, mas acabei sendo, o que também foi uma grande surpresa.”
Naquele momento, o Brasil ainda sofria com a pandemia de Covid-19. Se o contexto de isolamento social por um lado incentivava a adoção de ferramentas digitais, por outro o tema da preservação das línguas indígenas não estava em evidência.
“Essa pauta não era massiva como é hoje, era uma pauta muito restrita às próprias comunidades”, diz a desenvolvedora.
Além disso, Suellen estava construindo uma casa em uma comunidade afastada, entre Alter do Chão e Santarém, e enfrentava dificuldades de locomoção, internet, luz… Mesmo assim, encarou a aventura de começar a desenvolver o aplicativo:
“Me apoiei no livro ‘Nheengatu Tapajowara’, para formular os exercícios, inspirados no modelo do Duolingo. Também fiz toda a análise de requisitos, arquitetura de software, desenvolvimento do código fonte… Absolutamente tudo nessa primeira fase do projeto, eu desenvolvi [por conta própria]”
A ideia inicial, segundo ela, é que fosse um aplicativo para Android. “Mas, quando comecei as pesquisas, cheguei no PWA, Progressive Web App, que pode ser instalado em qualquer dispositivo que tenha browser, até mesmo numa Smart TV. Resolvi optar por isso para facilitar para as escolas indígenas.”
A ferramenta foi lançada em 1º de outubro de 2021. No começo, o aplicativo aceitava entradas apenas para o Nheengatu Tapajowara; hoje, reconhece ainda as variações do Alto Rio Negro e do Baixo Amazonas.
“Após o lançamento, o George Borari me ajudou a organizar um evento junto com professores – não apenas do Baixo Tapajós, como do Baixo Amazonas, do Alto Rio Negro –, e com acadêmicos da USP, da Ufopa, para eu explicar como funciona o aplicativo”
Desse encontro, diz Suellen, surgiram colaborações, a primeira delas com Yaguarê Yamã. “Ele é professor também de Nheengatu do Baixo Amazonas e me ajudou a fazer a tradução das entradas de texto para todas as variações do nheengatu.”
Em 2022, Suellen trancou o curso de antropologia na Ufopa e se mudou para Curitiba para dar início ao mestrado em desenvolvimento de sistemas na Universidade Federal do Paraná.
Seu objeto de pesquisa no mestrado foi o próprio Nheengatu App, estudado a partir de uma perspectiva de política pública. Suellen explica o porquê da importância desse olhar:
“No Brasil quando se fala de tecnologia digital, normalmente se copia modelos neoliberais californianos – as startups. O Nheengatu App vem mostrar que pessoas da sociedade civil que possuem outros tipos de organização podem desenvolver suas próprias políticas públicas de tecnologias digitais”
Para isso, porém, é preciso investimento. Perguntada sobre os desafios, a falta de recursos vem em primeiro lugar na lista de Suellen. “Eu invisto dinheiro, tempo, invisto força de trabalho pessoal nesse projeto porque é do meu interesse, é uma causa que eu acredito.”
Ela, aliás, entende que a ferramenta hoje disponível “é apenas uma demonstração daquilo que pode vir a ser, não é um produto final”:
“Nós temos já a tradução do Yaguarê para o nheengatu do Baixo Amazonas sem áudio gravado, mais uns 15 exercícios prontos que também não estão com áudios gravados em Nheengatu Tapajowara e um início de tradução para o Nheengatu do Alto Rio Negro que não foi concluído… E tudo por falta de recursos.”
O desafio de angariar dinheiro não impediu Suellen de iniciar dois outros projetos de preservação linguística por meio da tecnologia.
Um deles é o Nuke Tsãy App, viabilizado através de projetos de extensão do Instituto Federal do Acre – mais um “trabalho voluntário com finalidades acadêmicas de todos os envolvidos”, já que o recurso é baixo.
“Estamos trabalhando com a comunidade Morada Nova, que fica na Terra Indígena Katukina/Kaxinawa, em Feijó (AC), onde de cerca de 1 600 pessoas, existem apenas cerca de 13 falantes da língua… Já temos o código fonte desenvolvido, estamos tentando arrecadar fundos para ir até a comunidade concluir os testes e fazer as melhorias do sistema”
O outro aplicativo é o Kaingang App. A fase 1 foi viabilizada através da Lei Paulo Gustavo, e consiste na tradução e adaptação dos exercícios dos primeiros 90 exercícios do Nheengatu app para a língua Kaingang, e a gravação dos áudios.
“Essa primeira fase ela já foi entregue para a Secretaria de Cultura de Chapecó, em novembro do ano passado”, diz Suellen. “Estamos trabalhando com três Terras Indígenas do oeste catarinense: Toldo Chimbangue, Toldo Pinhal e a Aldeia Kondá.”
Tanto o Nuke Tsãy quanto o Kaingang App, afirma Suellen, se enquadram como “políticas de base comunitária, que têm os próprios indígenas como coautores das propostas”.
Para contornar a escassez de dinheiro, além da participação em editais do terceiro setor, Suellen criou um fundo filantrópico apto a receber doações de pessoas físicas e jurídicas, ajudando assim a levar à frente os projetos dos três aplicativos.
Além da bandeira da salvaguarda linguística, Suellen reconhece outra motivação importante por trás de projetos como o Nheengatu App: ajudar a quebrar alguns dos preconceitos que cercam a sua profissão.
“Muita gente tem esse estereótipo de que o desenvolvedor tem que ser um cara branco, de óculos, que joga videogame e é alienado dos problemas sociais… Eu estou há 18 anos no mercado de trabalho e não teve uma empresa em que trabalhei onde eu não tenha sofrido machismo”
Fazendo jus à sua ancestralidade nômade, Suellen acaba de se mudar outra vez. No começo de 2025, ela trocou Curitiba por João Pessoa, onde está cursando o doutorado em ciência política e relações internacionais na Universidade Federal da Paraíba.
“Vou fazer uma pesquisa sobre políticas públicas de tecnologias digitais voltadas para comunidades indígenas”, afirma. “Vou ficar morando aqui provavelmente até julho do próximo ano, ou mais. Não sabemos o que vai acontecer daqui pra frente.”
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