Sou uma sobrevivente da Covid-19. E durante todo o processo de recuperação, me deparei pensando no próximo, nas pessoas que dividiam a UTI comigo, nos inúmeros casos que eram e ainda são divulgados diariamente nos jornais do Brasil.
Sempre acreditei que para vencer essa pandemia é preciso pensar no coletivo.
Eu, em meu processo de recuperação, tive condições de assistência de saúde. Foram inúmeras consultas médicas, exames, fisioterapia, sessões de psicoterapia com o objetivo de me deixar em pé (literalmente), e para que aos poucos retornasse às atividades, como o consultório. Com certeza sou uma privilegiada!
Até hoje não entendo o que aconteceu comigo. Prefiro acreditar que passei por uma provação para me transformar como pessoa, receber um chamado e atender.
MESMO ME CUIDANDO, PEGUEI COVID E FUI INTUBADA
Antes do diagnóstico positivo, em setembro do ano passado, eu era uma pessoa que já treinava em casa – sim, era atleta de crossfit e participava de campeonatos. Não ia nem mesmo ao mercado, apenas saía para atender meus pacientes, com todos os EPIs necessários e higienização.
Mesmo assim, fiquei 60 dias no hospital, entre UTI e leito, e mais seis meses em recuperação. Foram ao todo sete meses longe do trabalho, sem nenhuma entrada financeira, somente com gastos
Nesse momento, eu pensava: “Pelo menos tenho uma boa condição financeira… E quem não possui plano de saúde e nem recursos para bancar um tratamento: como faz?”.
DECIDI CRIAR UM PROJETO PARA AJUDAR OUTROS SOBREVIVENTES COM SEQUELAS
Entre uma sessão e outra da minha recuperação, decidi criar, em janeiro deste ano, o Projeto COM.VIDA. Nosso principal objetivo é acolher e ajudar no tratamento dos sequelados e sobreviventes da Covid, proporcionando assistência médica e acolhimento psicológico e físico para a retomada da vida.
Quando falo sobreviventes, não me refiro somente ao paciente que ficou isolado e em tratamento. Falo da família, que fica distante de seu parente por meses, esperando uma notícia boa, vibrando a cada passo positivo do tratamento… Ou, então, enfrenta a perda e vive o luto.
Ser intubado é algo insano! Não sei se é assim com todas as pessoas, mas eu tive uma experiência totalmente consciente. Estava em coma induzido, porém lembro de tudo que eu vivi… Estive do lado “de lá”. Para mim, era como se eu tivesse morrido e não houvesse mais possibilidade de retorno
Pedi misericórdia para que fosse embora logo, porque o sofrimento era muito louco. Mas, felizmente, retornei para a vida.
MAIS DO QUE NUNCA, É PRECISO HUMANIZAÇÃO NO AMBIENTE HOSPITALAR
Ainda tenho a memória das pessoas que vinham falar comigo, se apresentavam mesmo estando em coma. Tenho a memória de todos os exames que foram feitos.
Vivi angústias muito grandes. Teve momentos em que tentava me mexer e nada… Ou melhor: às vezes, de tanto tentar, minha frequência cardíaca subia.
Quando isso acontecia, vinha uma enfermeira, que desligava a campainha, se virava e eu pensava: “será que ela não vai me ver aqui?”
A humanização dentro do hospital, mesmo quando o paciente está em coma, é muito importante. Acredito que esse é um dos sinais que eu tive, de mostrar para as pessoas, as equipes da área médica, o quão importante é esse contato.
Muitas vezes, nessa loucura toda UTI, de tudo que a gente tem vivido na pandemia, as pessoas esquecem que ali há um ser humano. Que, por mais que esteja em coma, pode ter consciência do que está acontecendo.
Me recordo do barulho de aspiração, de todos os leitos. O momento em que eu era aspirada, e todas as angústias pelas quais passei — e que não vão ser apagadas.
AS SEQUELAS NÃO SÃO APENAS FÍSICAS, MAS NEUROLÓGICAS E PSICOLÓGICAS
Hoje, tudo ainda é muito latente, mas aprendi a conviver com isso, acomodando meu coração.
Aceitei todo esse processo porque acredito que serviu para que eu entendesse a necessidade de criar o Projeto COM.VIDA.
Não foi fácil, pelo contrário. A maioria das pessoas que vence esse vírus tem sequelas — algumas permanentes. E, pior, não sabemos se um dia vamos parar de ter as dores, se vamos voltar ao normal.
Eu, por exemplo, tive 85% dos pulmões comprometidos, perdi 25 quilos, tive complicações como trombose, infecção no sangue e um quadro assustador de tetraplegia temporária
Hoje estou muito melhor. Voltei a treinar, mas ainda longe do que eu era. Sinto dores, tenho acompanhamento de profissionais de saúde, me cuido como nunca.
Se formos falar de números, hoje no Brasil são 17 milhões de pessoas recuperadas da Covid. Segundo estudos, 85% desses pacientes apresentam sequelas, sejam físicas, neurológicas e/ou psicológicas. E muitos não têm condições financeiras para arcar com o tratamento em busca de uma recuperação total.
MEU PAI NÃO RESISTIU À DOENÇA, MAS BUSCO FAZER ALGO POR QUEM CONSEGUIU
Sobreviver à Covid envolve a felicidade de vencer o medo do que virá, as dores do tratamento e o luto.
No meu caso, em particular, vivenciei todas as dores que essa doença traz.
Passei pela aflição do resultado positivo, o medo, a internação, a intubação, a batalha vencida. Meses depois, vivi os mesmos sentimentos com o meu pai, meu ídolo, que não teve a mesma sorte que eu, e foi vencido, nos deixando em janeiro desse ano
Não me canso de me emocionar a cada paciente atendido pelo Projeto COM.VIDA, principalmente a cada alta que nossos profissionais dão. É um misto de emoções. É viver novamente, a cada paciente, o passo a passo da recuperação.
Alguns, consigo atender junto, estar presente; outros, nem tanto. Mas sempre acompanho os relatórios e sei o que acontece. São os Joãos, Marias, Anas e Pedros que passam a fazer parte da minha vida.
Uns chegam até nós sem sair da cama, com escaras. A recuperação é lenta… Mas quando nos enviam o vídeo caminhando, sorrindo e sendo gratos não tem sensação melhor nesse mundo!
CONTAMOS COM UMA REDE DE 700 VOLUNTÁRIOS PARA REALIZAR OS ATENDIMENTOS
Hoje, infelizmente nos deparamos com um sistema de saúde esgotado, com cidades e estados que ainda não conseguiram destinar o atendimento aos recuperados da Covid devido à intensa demanda de novos casos, novas cepas. Um ciclo que parece não acabar.
Já existem, no Brasil e no mundo, estudos que evidenciam que a recuperação vem acompanhada de sequelas — muitas delas, neurológicas, apresentando perda de memória, concentração, dificuldade na escrita — não apenas motora.
Hoje, nosso desafio é diferenciar os sintomas e angústias que faziam parte do histórico anterior à doença daqueles que foram desenvolvidos com ela
Para isso, contamos com nossos voluntários. São 700 médicos, fisioterapeutas, nutricionistas, enfermeiros, cirurgiões dentistas, fonoaudiólogos, educadores físicos e psicólogos.
Verdadeiros anjos da guarda, que com o atendimento multidisciplinar definem a linha terapêutica a ser adotada. Não existe um padrão. Cada paciente é único.
Já realizamos 215 atendimentos multidisciplinares e de apoio psicológico (sendo que 101 novos casos foram triados recentemente e serão liberados para atendimento). Além disso, mais de 500 famílias tiveram acesso ao projeto; em 316 delas, o acolhimento abrangeu de duas a três pessoas da mesma casa.
NOSSO ACOLHIMENTO É VIRTUAL, MAS O CUIDADO E CARINHO SÃO REAIS
O projeto COM.VIDA é apolítico. Em momento algum pensamos em priorizar um atendimento, julgar os tratamentos feitos ou a forma como a pessoa encarou a Covid até o momento. Simplesmente acolhemos. Abraçamos virtualmente e ajudamos a vencer os medos, as dores e o luto.
Assim como as empresas e as escolas se adaptaram ao universo online, nós do Projeto COM.VIDA também utilizamos da tecnologia para atender os pacientes de Norte a Sul do país — tudo por meio de uma ligação de vídeo. Nas cidades onde temos voluntários, realizamos o atendimento presencial se for preciso.
Hoje, como uma sobrevivente, quero ajudar os brasileiros, dando apoio e acolhimento. E conto com o boca-a-boca da população para divulgar a existência do projeto COM.VIDA, uma iniciativa gratuita e voluntária
Desejo que mais profissionais, da saúde ou de outras áreas, se juntem nessa corrente do bem para estender a mão para quem precisa.
O projeto também recebe doações para compra de medicamentos, suplementações, cestas básicas e para cobrir custos necessários na assistência de determinados pacientes.
A Covid está aí, é real e precisamos pensar no global. A recuperação física e emocional de uma pessoa reflete diretamente no trabalho que ela exerce na sociedade e consequentemente na tão falada recuperação da economia.
Mais do que nunca precisamos nos unir. Pensem nisso.
Um abraço fraterno.
Raquel Trevisi, 39 é dentista, atleta, sobrevivente da Covid-19 e idealizadora do Projeto COM.VIDA. Acesse o Instagram do Projeto COM.VIDA.
Entre a morte da mãe e o nascimento da filha, Eduardo Freire vivia um momento delicado quando empreendeu a consultoria FWK. Ele conta como superou os percalços e consolidou sua empresa mergulhando no ecossistema de inovação.
Durante 12 anos, Flávia Tafner se desdobrou para acolher Cláudio, seu marido, que sofria de esclerose lateral amiotrófica. Ela conta como transformou essa experiência num livro e o que aprendeu sobre o real significado de cuidados paliativos.
Nascida na periferia de Manaus, Rosângela Menezes faz parte da primeira geração de sua família a ingressar na faculdade. Ela trilhou carreira no marketing digital e conta como fundou uma edtech para tornar esse mercado mais diverso.