Em busca de um propósito para sua vida após um diagnóstico de reincidência do câncer de mama, Samantha Leal criou um negócio inovador e inédito no Brasil: uma confecção de roupas para pacientes oncológicos, a Santa Agatha Oncoclothes.
A partir da própria experiência, ela percebia o desconforto de estar em salas de hospitais, sempre muito frias. Conversando com outras pacientes, viu que elas sentiam o mesmo, especialmente na sala de quimioterapia. E, falando com enfermeiros, descobriu que além de danificar as peças, ao arregaçar as mangas e golas, o atrito do tecido com o catéter facilita o surgimento de infecções.
Em um dos exames, Samantha chegou a imaginar uma blusa com zíper no braço para facilitar o acesso às veias, sem precisar tirar a roupa. Mas foi só em uma viagem à procura de inspiração para sua nova fase que ela percebeu que a ideia poderia virar um negócio para melhorar a rotina de outras pessoas em situação semelhante.
Aos 47 anos, casada, com dois filhos e dois enteados, a empreendedora cuida da maioria dos processos da Oncoclothes e se prepara para lançar um site de e-commerce e aumentar as vendas pelo Brasil. Também é voluntária da Amucc, em Florianópolis, onde já doou algumas peças. A organização atua na garantia dos direitos das pessoas com câncer e nas políticas públicas. Leia a seguir a história de Samantha:
O que você fazia antes de fundar a Santa Agatha Oncoclothes?
Eu sou jornalista e nos últimos oito anos trabalhei como assessora de imprensa de várias empresas de tecnologia, blockchain e me especializei nisso. A minha família é de Santa Catarina, me formei na Unisul (Universidade do Sul de Santa Catarina), mas eu morava no Rio de Janeiro, minha agência de assessoria de imprensa era lá.
Em 2015, tive o meu primeiro diagnóstico de câncer. Fiz uma mastectomia, e não cheguei a fazer quimioterapia. Eu parei de tomar o anticoncepcional, porque o meu câncer era hormonal, para começar a medicação, e engravidei – mas só descobri quatro meses depois…
Tive que parar o tratamento para continuar a gravidez. Foi bem turbulento, a gente não sabia o que ia acontecer comigo e com o meu filho mais novo.
Eu já tinha um filho que na época estava com 3 anos, hoje está com 13. Deu tudo certo, o mais novo vai fazer 9 anos, nasceu com pezinho torto, fizemos um tratamento, colocando gesso toda semana, e eu voltei para o meu tratamento com bloqueador hormonal.
Sempre viajei muito a trabalho e quando me separei, em 2019, foi um baque bem grande. Voltei para Florianópolis, fiquei sozinha com duas crianças, veio a pandemia. Eu já estava lendo os livros da Brené Brown e decidi que eu não ia ficar chorando derrota aqui. Tenho uma amiga que mora em Nova Jersey e ela falou: “vem pra cá!”
A minha mãe pagou a minha passagem, eu trabalhava CLT, peguei o décimo terceiro, férias e me cadastrei num programa da Brené Brown, o Dare to Lead, que ela forma as pessoas para formar outras pessoas. Fiz o curso em Inglês pessoalmente em Nova York, depois fiz de novo online em Português.
Fiquei um mês nos Estados Unidos, em 2020, foi uma experiência maravilhosa porque era a primeira vez que eu estava viajando sozinha, sem ser a trabalho, sem ser com família. E foi uma grande descoberta saber que eu podia fazer esse tipo de coisa.
Lá mesmo comecei a preparar o curso que eu ia dar para os líderes aqui no Brasil, somando as outras coisas que já tinha aprendido sobre Psicologia Positiva – fiz parte de uma das primeiras turmas de um curso sobre Felicidade Corporativa, no Reconnect
Quando voltei, já era pandemia, uma semana antes de fecharem tudo. E aí passei a pandemia toda dando esses cursos online.
Em 2022, eu e minha sócia da assessoria de imprensa lançamos uma startup de blockchain, a Anny BaaS (de Blockchain as a Service), e participamos de programas no Sebrae, eventos, web-summits, e corremos atrás de captação de recursos de venture capital. Tínhamos uma equipe que desenvolveu todo o código de uma plataforma de crowdfunding com tokens de fidelidade.
Nossa ideia inicial era que qualquer pessoa pudesse tokenizar qualquer coisa para realizar os seus sonhos
Por exemplo: estou empreendendo e preciso de dinheiro para ampliar a empresa, a nossa plataforma permitiria criar tokens dessa empresa e vender (como uma bolsa de valores). E quando quem comprou quiser vender esse token não venderia por dinheiro, mas trocaria por um benefício, como um desconto na empresa, ou por algum outro serviço de um parceiro.
Faço parte de várias associações sobre o tema e a regulamentação no Brasil é muito confusa, este é um mercado que precisa de uns anos para evoluir. Mas participamos de uma incubação de três meses em Paris – a minha sócia que foi, eu não podia por conta dos meus filhos e também porque estava aqui lançando a Oncoclothes.
Acabamos vendendo a empresa [Anny BaaS] para outra pessoa tocar na Europa, mas não ganhamos dinheiro, pois não chegou a entrar em operação.
Como você chegou à ideia de criar uma empresa de roupas para pessoas em tratamento de câncer?
Em 2022, quando eu estava no auge da minha carreira, viajando muito, trabalhando muito, descobri um novo tumor de baixo do braço, no mesmo lado que tinha feito a mastectomia. Essa recidiva já veio com metástase no pulmão.
Sempre fui uma pessoa muito proativa, propositiva, de trabalhar e olhar pra frente. Se eu tenho um problema, vou em busca da solução. Não fico muito pensando em porquês, mas em resolver as coisas. Eu lidei muito bem com o [primeiro] diagnóstico, com a mastectomia. Estudei coaching, inteligência emocional.
Então, nesse segundo diagnóstico, eu estava muito bem embasada emocionalmente. Só que como meu câncer era hormonal, tive que entrar numa menopausa induzida e “retirar” os hormônios do meu corpo. Isso me levou a uma depressão química: fiquei sem motivação para nada.
Estava fazendo terapia, tomando antidepressivo, e nada resolvia… Num ato impulsivo, comprei uma passagem para a Itália. Eu queria muito me encontrar, voltar a ter um propósito. Meu marido chegou em casa e eu falei: “Meu amor, fica aí com nossos quatro filhos que eu vou semana que vem para a Itália”.
E aí, ele pediu para a minha mãe ir junto porque ele tinha medo de eu passar mal. Eu estava sem dinheiro, e peguei um empréstimo para fazer a viagem. A primeira parada foi Milão; não era o meu objetivo, mas a passagem estava mais barata.
Entrei na Duomo [catedral] de Milão e vi uma imagem. E pela primeira vez comecei a chorar copiosamente, o que eu nunca tinha feito. Minha mãe até achou que eu estava passando mal. Depois, fui ler de quem era aquela imagem: Santa Agatha, a padroeira das mulheres com câncer de mama! E eu não sabia nem quem era ela!
Ali, naquele momento, veio a inspiração da blusa. Eu estava com um “caderninho dos sonhos”, sentei na escadaria da Duomo e comecei a desenhar o que seria a blusa. E falei: já sei o que vou fazer para ajudar as pessoas! Eu não sou devota a nada, mas realmente foi muito marcante.
Durante a viagem toda fiquei gestando essa ideia das roupas. Quando voltei para o Brasil, comprei um moletom, um zíper e fui a uma costureira pra ver se dava certo, pois eu precisava testar em mim.
Vesti e fui fazer os exames e as pessoas começaram a adorar. Eu achei uma modelista que tem uma confecção e ela me deu umas dicas de onde comprar tecido. Tudo isso sem dinheiro, usando cartão de crédito, empréstimo… Jogando a dívida pra frente
Fui escolhendo os tecidos, ela fez as peças piloto e eu ia usando, o pessoal gostando, eu quase tirava a blusa para vender. Voltei da Itália em maio, fiz esses testes e em agosto, mandei fazer umas peças, poucas, e montei um perfil no Instagram para colocar as fotos, e irmos produzindo sob demanda.
Em outubro, fui para um evento de câncer em São Paulo e aí comecei a entender como é esse mundo: existe influenciadora oncológica, empreendedora oncológica: pessoas que são pacientes e começaram a criar produtos para pacientes oncológicas.
Eu levei as blusas e presenteei as influenciadoras. Lá, conheci uma pessoa que falou que queria investir no negócio – um investidor anjo. O valor não foi tão grande, mas o suficiente para fazer estoque, ações em eventos, e lançar o e-commerce.
Além das clientes que enfrentam o câncer de mama, a Oncoclothes atende pacientes com outras necessidades?
Conversando com pacientes, estamos ampliando a variedade. Começamos com um moletom com zíper entre a gola e a manga dos dois lados para quem usa cateter. Tem zíper no braço também para não ter que arregaçar a manga comprida, para ter acesso à veia.
E aí, pediram uma blusa sem manga, porque estamos no verão e está muito calor, fizemos com o zíper na gola. E então fizemos um cardigan, um casaquinho, que tem zíper nos braços, e um bolso interno para colocar o dreno, que é usado por um tempo após a cirurgia.
Criamos um outro moletom que tem uma abertura do ombro até o punho, que inicialmente foi uma necessidade de um paciente que faz hemodiálise. Tanto os homens quanto as mulheres gostaram desse modelo e também virou parte do nosso portfólio
Criamos um vestido de botão porque quando você vai fazer uma tomografia, qualquer outro exame de imagem, nada de metal pode ser utilizado, e a maioria dos zíperes são de metal. O zíper de plástico está muito mais caro, fizemos opções com velcro e com botão. Hoje temos blusa de manga bufante, blusa transpassada.
E vamos lançar uma blusa transpassada maior, e mais comprida, e aí, algumas pessoas falaram: “Ah, isso vai ser bom pra esconder minha bolsa de ostomia”. Então, estamos começando a conversar com pessoas que têm bolsa de ostomia e quem tem a alimentação enteral para entender as necessidades delas.
Estamos produzindo calças com zíper, porque tem gente que tem acesso na perna. Vamos fazer sutiã, maiô e biquíni para quem tem prótese de silicone móvel, que coloca dentro de um bolsinho interno, e isso tá sendo pedido [por quem fez mastectomia, mas não fez plástica]. Eu tinha, fiquei quatro anos sem fazer a cirurgia [plástica], então era uma necessidade minha. Mas esse não é o nosso produto de entrada, é um complemento. Também estamos fazendo modelos para crianças que são pacientes oncológicas.
Criamos uma comunidade no WhatsApp. Inicialmente, para os clientes que já tinham comprado, para avisarmos sobre as novidades, as promoções. Virou uma comunidade de acolhimento! Tem quase 50 pessoas trocando ideias, falando suas dúvidas, suas angústias, se acolhendo de forma muito natural – e isso faz a marca crescer
Então, reencontrei um propósito. É algo que fazemos com muito amor. É um comércio que quero deixar como legado e uma forma também de ter um sustento pro futuro.
É algo que ajuda, conforta e aquece as pessoas. Elas chegam para fazer um tratamento, e estão assustadas, deprimidas, desconfortáveis, sentem frio. Estamos mostrando que elas podem fazer o seu tratamento com uma roupa que não vão precisar arregaçar.
Os enfermeiros falam que quando você tem um catéter próximo ao pescoço, e tem que ficar manuseando, isso infecciona o catéter, dói. Então, estamos trazendo mais conforto. Tem paciente oncológica que é consultora de moda; estamos mostrando que você pode ir bonita fazer o seu tratamento. Você transforma um momento tão angustiante num momento um pouco mais tranquilo.
Quais os desafios da empresa hoje?
O dinheiro do investimento anjo acabou. Agora estou olhando para editais de captação de recursos.
Todo mundo me fala “vai no Shark Tank”, mas para outra pessoa botar dinheiro na empresa precisa conhecer o ramo, então depende muito, pois não quero que a Oncoclothes se desvirtue do propósito dela. Agora vamos depender muito das vendas. Temos estoque, e tenho formas de sobreviver.
O maior desafio é a venda. As pessoas podem pensar que é um oceano azul: não tem concorrência, sou a única fazendo isso no Brasil, tem uma pessoa na Inglaterra, existem algumas coisas pontuais no mundo. Mas esse é um mercado muito sensível. Algumas técnicas de venda não funcionam. Não existe benchmark, é um mercado muito novo e precisamos aprender a lidar
Às vezes a pessoa está falando comigo [no Whatsapp ou Instagram] sobre uma compra, escolheu o modelo, a cor, o tamanho, pediu a chave-pix – e desaparece. Não é que ela “abandonou o carrinho”, é porque de repente ela fez uma sessão de quimioterapia e está passando mal.
Além disso, esbarramos na questão financeira das pessoas. Mesmo tratando pelo SUS, como eu faço, tem custos. Nesse meu segundo diagnóstico, tive que fazer vários exames particulares para ter agilidade no tratamento.
Paguei uma nutricionista oncológica. Estou fazendo pilates numa ONG, que é de graça, mas também tenho que fazer musculação. Alguns remédios eu tenho que comprar, como um antidepressivo, que não pode ser genérico, e custa mais de 300 reais.
Então, o paciente oncológico tem muitos custos. Tentamos enxugar os preços dos nossos produtos ao máximo, fazer algumas promoções – mas temos essa barreira
Estamos tentando fazer parcerias, por exemplo com o Laço Rosa, além de influenciadores. Estamos conversando com clínicas, oncologistas e médicos em geral para levar a marca e essa ideia de produto para outros lugares e ajudar mais pessoas. Agora estamos lançando o e-commerce para automatizar um pouco mais.
Nossa equipe é muito pequena e bem familiar. Estamos estruturados. Hoje tenho uma pessoa que cuida do financeiro, uma pessoa que cuida das redes sociais, posso terceirizar o jurídico, a contabilidade e o resto é tudo eu que faço: atendimento, embalagem, envio, estratégia. Estou com cinco livros para ler. É bastante coisa, mas é gostoso construir algo que realmente tem um propósito, e sei que vai dar certo.
Infelizmente, este é um mercado que ninguém gostaria de estar: existe uma pesquisa do INCA [Instituto Nacional de Câncer] que estima mais de 700 mil novos casos por ano de câncer de todos os tipos no Brasil, destes 74 mil novos casos por ano são de câncer de mama feminina
O que vejo são pessoas que estão sofrendo – e que podemos dar algum conforto, ajudar de alguma forma. Eu ainda não tive nenhum feedback ruim, as pessoas dizem que acham sensacional.
Você já tinha essa noção da necessidade de ter um propósito relacionado ao trabalho, vida ou comunidade, antes de receber o diagnóstico de câncer?
Eu sempre ajudava causas, fazia doações, mas não era algo tão forte assim.
Quando eu tive o meu primeiro diagnóstico, ainda não estava muito voltada para o voluntariado. Eu me fechei no meu mundinho porque era assustador. O meu pai faleceu de câncer de estômago. Eu estava com um filho pequeno e grávida de outro. Foi um baque.
Então, eu não tive essa noção de propósito, não conseguia ainda entrar em contato com outros pacientes. O meu marido hoje até ficou preocupado de eu ficar deprimida, porque várias pessoas com quem tive contato faleceram, por exemplo, num grupo de apoio de pacientes com câncer.
Mas hoje tenho força e estrutura para lidar com isso. Também me uno com outras empreendedoras oncológicas para entendermos este mercado completamente diferente e sensível – e nos ajudarmos.
Pesquisas clínicas podem trazer uma melhora na qualidade de vida ou até a esperança de cura para pessoas com doenças como o câncer. A LifeTime facilita o acesso a esses tratamentos em fase experimental, e de forma gratuita para os pacientes.
O descarte incorreto da pele dos peixes durante a pesca gera problemas ambientais na Amazônia. Com parcerias e tecnologia, a Yara, uma startup amapaense, coleta e trata esse resíduo para produzir um couro que não agride a natureza.
Helen Pedroso fala de ação no povoado com maior incidência do xeroderma pigmentoso no mundo. Iniciativa une expertise da marca com a possibilidade de construir uma resposta a uma questão de saúde pública.