Quantas newsletters chegam hoje na caixa de entrada do seu e-mail (além da TheDraft)? A falta de tempo para comprar um jornal/revista — para quem ainda gosta de ler em papel — ou acessar dezenas de sites para se informar fez desse formato um fenômeno. Até mesmo os veículos de comunicação tradicionais se renderam ao novo estilo de publicação, que geralmente é gratuito para os assinantes ou segue o modelo freemium.
Só o The New York Times oferece 60 opções de newsletter com os mais variados enfoques (uma delas, por exemplo, traz só novidades sobre o processo de impeachment contra Donald Trump) e que chegam num clique à caixa de entrada do leitor. Difícil acreditar que no início dos anos 2000 tinha gente que apostava que o e-mail ia morrer
Cofundadoras da The Shift e especialistas, há mais de 20 anos, na cobertura da área de tecnologia, as jornalistas Cristina De Luca, 55, e Silvia Bassi, 57, nunca compraram essa “profecia”. Cristina conta que chegou a escrever centenas de reportagens sobre a extinção do e-mail. Mas com os smartphones e a possibilidade de ter uma informação qualificada na palma da mão, essas especulações caíram por terra.
Outra visão que as duas não engoliam era a da newsletter apenas como um subproduto, como aponta Silvia:
“Muita gente ainda enxerga a newsletter como um gerador de tráfego para o site, mas um estudo do New York Times mostra que esse formato trouxe de volta para os leitores a credibilidade das informações, que começou a ficar confusa quando passamos a receber uma série de notícias, muitas vezes falsas, pelas redes sociais”
Foi esse o meio que a dupla, com mais três sócios, escolheu para entregar seu produto aos leitores. Em 19 de fevereiro de 2019, lançaram oficialmente o primeiro produto da empresa, a newsletter The Shift, que (segundo sua tagline) “identifica, apresenta, traduz e contextualiza a ruptura em cenários que façam sentido para indivíduos e corporações de todas as atividades e segmentos econômicos”.
O informe já passou da 100ª edição (no dia 31 de dezembro) e ganhou mais três spin-off (AI & Data Science, Brain Hub e Transformação Digital), além de um podcast hospedado no site B9.
O objetivo é ir além, transformando as newsletters em uma plataforma omnichannel e criando um novo jeito de se consumir informação (e de se pagar por ela): o Insight as a Service, ou IaaS, que está dentro do mercado de Big Data e é avaliado atualmente em 3,3 bilhões de dólares.
A ideia é coletar e analisar dados de mercado, oferecendo insights que ajudem no desenho de estratégias e na tomada de decisões. Consultorias de negócios já fazem algo semelhante, mas sem a curadoria e o olhar em tese mais imparcial do jornalismo. E é nesse ponto fora da curva que Cristina e Silvia começaram a atuar.
UM “MVP” QUE JÁ CONTA COM 3 MIL ASSINANTES
As sócias já se conheciam do mercado jornalístico de TI. A carioca Cristina tinha passado por veículos como O Globo, CDI, Terra, O Dia e CBN, enquanto a paulistana Silvia esteve na Folha de S.Paulo, Grupo Abril e AOL. Foram, enfim, trabalhar juntas na companhia de mídia, dados e serviços de marketing IDG Brasil (detentora de marcas como marcas CIO, ComputerWorld, IDGNow, PCWorld e Mac World); no entanto, deixaram a empresa após a concessão da licença para a IT Mídia, no começo de 2018.
Foi nessa entressafra que nasceu a sacada de uma newsletter sobre disrupção. Publisher da empresa e responsável pela captação de clientes, Silvia lembra:
“A gente estava vendo que o mercado de informações sobre ruptura não existia. Tinha muita coisa ‘voando’ em jornalismo diário, mas não algo que ajudasse as empresas que estão tentando fazer uma transformação a enxergar o contexto todo e tomar decisões em um momento de mudança turbulento e veloz”
A dupla já fazia a curadoria desse tipo de informação para consumo próprio e para amigos. Inspiradas em benchmarks internacionais como Morning Brew, CB Insights e The Information, resolveram testar se o envio dos dados por aqui era vendável.
“A newsletter foi uma forma de provarmos nosso MVP. Tínhamos tudo na mão, só dependia da gente”, diz Cristina, diretora da empresa e editora das newsletters.
Deu certo. As duas perceberam como a distribuição e circulação da The Shift foi rápida entre CEOS, C-Levels, equipes de marketing e finanças. “Em média, cada leitor multiplica para pelo menos três pessoas a assinatura. Mas tem gente que repassa para 20 ou para a empresa inteira, como já vimos em casos de bancos”, afirma a publisher.
CABE AO LEITOR DECIDIR SE FAZ UMA LEITURA HORIZONTAL OU VERTICAL
A primeira newsletter lançada, a The Shift, é disparada às segundas e aborda a ruptura em um contexto geral. Depois, as jornalistas bolaram versões mais temáticas. Daí surgiram a AI & Data Science (para tratar como a inteligência artificial está sendo usada no mercado), enviada às quartas; a Brain Hub (entrevistas sobre inovação com líderes de empresas brasileiras), que chega na caixa de e-mail às sextas; e a Transformação Digital, publicada quinzenalmente às quintas (“porque a digitalização dos negócios é ainda uma jornada confusa para a maioria das empresas”).
Segundo Silvia, cabe ao leitor escolher se as newsletters vão ser consumidas de uma maneira horizontal ou vertical:
“Em cada uma colocamos entre 30 e 40 links sobre insights diferentes que a gente coletou ao longo da semana e que têm a ver com o contexto da ruptura. O assinante pode ler apenas a nossa análise ou passar a semana inteira abrindo os links que a gente indicou”
Somando as quatro newsletters, são mais de 3 mil pessoas. O podcast, que estreou em outubro, conta com 10 mil. Esse crescimento rápido, dizem, não teria sido possível sem um patrocinador; a Embratel foi a primeira empresa a abraçar o projeto.
FAZ TEMPO QUE O BANNER NÃO PAGA MAIS AS CONTAS DO JORNALISMO
No jornalismo, captar patrocinadores (leia-se banner) e oferecer brand content ou realizar estudos pagos (o que a The Shift já fez para a IBM, Oracle, Gartner) é apenas uma das formas de gerar receita. A assinatura paga do conteúdo também é um caminho e está nos planos da empresa para abril.
“Não existe bom jornalismo sem gasto e o leitor vai ter que escolher”, diz Silvia. “Só que a carteira do leitor não é um saco sem fundo.”
De acordo com as sócias, quem optar pelo “membership” não terá apenas acesso a conteúdos mais densos (disponíveis em um site a ser lançado em abril), mas poderá, por exemplo, se envolver com as fontes utilizadas nas newsletters com a intermediação da The Shift, entre outras vantagens.
Mas o modelo de negócio buscado por Cristina e Silvia transcende a assinatura de newsletters. Para oferecer Insights as a Service, elas contam com o know-how do sócio e CTO Fabio Tagnin.
Engenheiro (ex-Intel) e jornalista (ajudou a lançar o BOL quando estava no Grupo Abril e escreveu artigos para a extinta Info Exame), Fabio está incumbido de projetar uma plataforma de machine learning e Big Data batizada de Aleph, que terá a função de aplicar a inteligência artificial para prever contextos da ruptura. Cristina afirma:
“A gente quer praticar o jornalismo de dados olhando do ponto de vista do Big Data, que é pegar não só os gráficos, os números, mas todos os outros aspectos relevantes, a informação não estruturada que pode ter um impacto sobre o negócio”
Na prática, as empresas assinantes poderão acessar toda a base do Aleph (cujo nome remete ao conto fantástico de Jorge Luis Borges sobre um ponto que abarca toda a realidade), mas as informações dispostas ali não estarão “soltas”. Será uma narrativa de dados com contexto.
“A gente não vai deixar nada de lado do ponto de vista jornalístico: continua sendo a busca de informação exclusiva, valiosa, diferenciada; a entrega tem que ser a melhor possível; e o texto sensacional. Mas por que não englobar um pouco mais de informação densa e entregar isso para o mercado? Para isso é preciso muito mais do que as habilidades de um jornalista, é preciso de tecnologia”, explica Silvia.
DENTRO DAS COMPANHIAS, ELAS BUSCAM CAÇADORES E VETORES DE RUPTURAS
O foco do Aleph será o B2B; segundo as cofundadoras, as empresas ainda estão jogando dinheiro fora para fazer a transformação. Dentro das companhias, elas olham para dois públicos. Primeiro, o “caçador de ruptura”, que faz parte do seleto grupo de 5% de empresas que já conseguiram fazer a transição, e recebeu a missão do board para continuar procurando mudanças.
O outro enfoque é chamado de “vetor de ruptura”: alguém que trabalha em uma empresa que não fez a transição, que continua achando que vai sobreviver em tempos digitais sem mudar o seu negócio. Silvia explica: “Esse cara é o que está precisando se municiar de informações sobre a ruptura para contaminar o resto da empresa e convencer o board a fazer a transição”.
Uma dificuldade de seguir com o desenvolvimento do Aleph e conseguir investidores é explicar nos pitches que a The Shift não é apenas um veículo de comunicação comum. “Quando você fala que é uma empresa de dados, as pessoas só leem jornalismo”, diz Silvia.
Para começar o negócio e manter a engrenagem girando, as cofundadoras e Fabio investiram tempo e o aluguel do coworking onde trabalham (na Avenida Paulista), pago por um outro sócio. Aos poucos, a dedicação mostra resultados. A The Shift fechou 2019 com o faturamento de 550 mil reais.
MAS QUAL SERÁ A FUNÇÃO DAS JORNALISTAS COM O ALEPH OPERANDO?
As empreendedoras enxergam a inteligência artificial como uma inteligência aumentada. Ou seja, quando o Aleph começar a operar, ele vai dar um empurrão no trabalho incessante de busca de fontes relevantes e “não óbvias”. Hoje, as cofundadoras assinam todas as newsletters que consideram interessantes e passam a semana buscando, lendo e analisando dados. Segundo Cristina:
“A maior parte do nosso trabalho é ir atrás da informação. Se conseguirmos fazer com que o Aleph nos diga onde estão os padrões de informação, nossa função vai ser muito mais a escolha e a análise. Mas o trabalho de apuração não vai sumir nunca”
Para a jornalista-empreendedora, o diferencial do negócio está no olhar sobre a notícia. Uma inteligência artificial, afirma Cristina, pode até ser capaz de escrever um texto — mas este será, necessariamente, elaborado com uma base de conhecimento estruturada por um ser humano.
“É muito fácil para uma IA escrever um artigo falando se a bolsa de valores caiu ou não. Mas talvez esse mesmo texto não consiga dizer que aquela ação despencou porque teve uma enxurrada de fake news disparada por um Twitter. Essa é sempre uma visão do jornalista responsável por agregar percepções que a máquina não terá como captar.”
Ou seja: ainda há muito trabalho humano — e intelectual — pela frente.
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