Na busca por um novo rumo para suas vidas, Francine Xavier, 52, e Flávia do Valle Brito,40, se encontraram no universo da gastronomia. Sócias da Cambucá Consultoria, elas tocam o Projeto Articulação de Chefs e Agricultores (A.Ch.A) em Seropédica, na Baixada Fluminense, com a metodologia CSA (de Community Supported Agriculture, em tradução livre, Agricultura Suportada pela Comunidade), que visa eliminar atravessadores e aproximar os produtores de seus consumidores, fazendo deles os financiadores da produção.
O papel delas é gerir três elos: os agricultores orgânicos, os chefs de cozinha e a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em uma parceria que envolve negócios e pesquisa acadêmica. Desenhado em outubro de 2017 e implementado a partir de abril do ano passado, o projeto se baseia em dividir os riscos da produção com os consumidores — no caso os chefs — e estimular a produção de tomates que não estão disponíveis no mercado.
O canal destas variedade é um banco com 400 tipos de sementes, organizado pelos professores Antonio Abboud e Margarida Gorete, do departamento de Fitotecnia da UFRRJ. Para isso, foi preciso trabalhar com planilhas abertas e muita confiança.
ELAS DEIXARAM A ÁREA DE EXATAS PARA SE DEDICAR À GASTRONOMIA
Formada em Informática pela PUC-Rio, logo Francine percebeu que os números não eram sua praia. Ao se graduar em 1987, morou nos Estados Unidos por um ano, voltou para o Brasil e chegou a trabalhar em empresas como White Martins e Petrobras. Criada em uma família mineira, ela afirma: “Vivia rodeada de gente fazendo comida e minha relação familiar passava por isso. Percebi que precisava das pessoas e daquele movimento”. Com o então companheiro na época, abriu um restaurante, em 1989, em um condomínio no Alto Leblon.
Gastronomia, segundo ela, não tinha glamour nem muitas oportunidades onde estudar no Brasil. Por isso, Francine foi aprendendo no caminho. Sua primeira percepção é que se saía melhor em cargos de gerenciamento. Até 1998, ela se dividiu entre seu próprio empreendimento e a prestação de serviço para espaços como o restaurante Garcia & Rodrigues (hoje fechado, mas que foi um ícone carioca), que lhe pediu exclusividade. Como “o casamento estava fazendo água”, deixou seu negócio e a relação para trás.
Ciente de que não queria viver a vida toda em um restaurante, foi buscar, em 2004, um MBA no Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração da UFRJ. E uma gravidez no caminho não impediu que, em 2005, entrasse para a área de Gastronomia, no Senac, tornando-se mais tarde gerente da instituição. Lá, enxergou a necessidade de pesquisa em tendências e implementou linhas de estudo focadas em cerveja e azeite.
Prestes a completar 50 anos, em 2016, no entanto, saiu do Senac e foi buscar um projeto em que visse “mais propósito”. A influência veio dos livros de Michael Pollan, que enfeitiça muitos interessados por novas formas de lidar com a comida: “Vi a conexão com a sustentabilidade e a existência humana, e que não era só eu que pensava assim”, conta ela. Foi quando decidiu ingressar como voluntária no Instituto Maniva (focado em melhorar a qualidade alimentar das sociedades rural e urbana), onde seu caminho se cruzou com o de sua sócia, que também buscava um trabalho que lhe fizesse brilhar os olhos.
Formada em Química pela UFRJ, Flávia emendou logo o mestrado em Engenharia de Materiais na COPPE/UFRJ. Ao conclui-lo, trabalhou por cinco anos com análises laboratoriais para avaliar a contaminação de lençóis freáticos mas, cansada da rotina, topou migrar para a área de consultoria com gerenciamento de projetos em refinaria no COMPERJ. Estava tudo indo bem, o projeto crescia, mas não havia satisfação. Recebeu um convite para atuar na Petrobras e resolveu aceitar já com prazo estabelecido: quatro anos. No fim, foram cinco, mas o último Flávia dividiu o tempo com um mergulho na gastronomia enquanto juntava uma grana para pedir as contas.
Resgatando o prazer que tinha ao cozinhar com as amigas na época em que dividiam uma república na época da faculdade, Flávia passou a fazer cursos aos finais de semana e enfrentar uma dupla jornada entre o trabalho de dia e o estágio na cozinha do Miam Miam à noite: “Saía do trabalho 19h, chegava no restaurante às 20h, saía à 1h, e voltava a trabalhar de manhã”. Neste período, em meados de 2016, ela também se tornou voluntária do Instituto Maniva, onde conheceu Francine e se voltou para as questões sobre comércio justo que envolvem a produção de alimentos.
A PARCERIA COM UMA UNIVERSIDADE FOI ESSENCIAL PARA O NEGÓCIO
No Maniva aconteceu, ainda naquele ano, uma degustação de 35 tipos de tomates, organizada com a pesquisadora Maria Luiza de Araujo, da Pesagro-Rio, e o professor Antonio Abboud, do Departamento de Fitotecnia da UFRRJ. A intenção era estimular a produção de tomates que fossem interessantes para os chefs, mas as duas perceberam que, sem uma articulação constante, isso não passaria de uma ideia. Elas ganharam a “benção” do Instituto e foram desenvolver o projeto que seria a menina dos olhos da Cambucá.
Geralmente criticada pelo seu distanciamento do mercado, a academia foi essencial. Enquanto Flávia fez aulas como ouvinte dentro do programa de pós-graduação em Agricultura Orgânica, Francine ingressou no de Práticas em Desenvolvimento Sustentável, ambos na UFRRJ. Flávia aproveitou oportunidades de viagens pela universidade para conversar com agricultores:
“Os principais problemas dos produtores e sempre estavam na comercialização. Ou eles não queriam fazer, ou sofriam por ter muito atravessador”
Ao conhecer o CSA, ela aproveitou a própria turma para se conectar com produtores de todo o Brasil. Levando toda sua expertise em gerências de projetos, Flávia criou uma planilha com prós e contras da metodologia, coletados através de diversas entrevistas. Com o levantamento, as duas desenvolveram um plano de políticas e o modo de trabalhar: “Um dos motivos que ouvi que dava errado é que a gestão era voluntária e, muitas vezes, o projeto morria porque o voluntário não tinha tempo”. Por isso, elas perceberam que era essencial o papel da Cambucá na gestão.
A proposta era fazer os tomates com diferentes cores, sabores e formatos atravessarem os muros da UFRRJ e irem para a “vida real”. Com o apoio do professor Abboud e da professora Anelise Dias, chegaram a três famílias de produtores que já expunham na feira agroecológica da universidade.
CONFIANÇA É A PALAVRA-CHAVE DE UM NEGÓCIO SOCIAL
As duas partiram, então, para uma nova degustação com os chefs e propuseram o desafio: investir cotas mensais, de abril a dezembro, com a expectativa de uma colheita de 1 072 kg de nove tipo de tomates, assumindo os riscos junto com os agricultores. Eles toparam e o total investido pelos chefs (re restaurantes como o Olympe, na Lagoa, zona sul do Rio de Janeiro) foi de 29.421 reais. O valor cobriria custos operacionais e horas de trabalho, priorizando a remuneração dos produtores. Para deixar todos alinhados e cientes, foram enviados relatórios aos envolvidos e realizadas visitas de campo. Os grupos no WhatsApp também ajudaram a conectar os agricultores que vivem a 73 km do centro do Rio. Flávia afirma:
“É uma metodologia baseada em confiança, em tornar as pessoas mais próximas. Deu tudo certo, por mais que às vezes seja difícil sentar e entender outro lado”
Ela continua: “Hoje a gente está em um outro nível. Cada vez, o relacionamento é melhor, os laços vão se fortalecendo”. Mesmo assim, nem tudo foram flores. Quando aconteceu um erro de cálculo, foi preciso ter cautela: “Rolou uma desconfiança geral, e aí a gente juntou todo mundo para falar e explicar o que estava acontecendo”, diz Francine.
As sócias também tiveram que explicar muitas vezes as planilhas, mas acreditam que isso ajudou a fortalecer a relação. A empreendedora conta que os agricultores não contabilizavam bem o que não vendiam e nem os desperdícios, e isso fez com que mudassem a visão do negócio: “O tomate que ele não colheria por defeito, não mandaria para a feira, o chef consegue usar. A gente estimou que o rendimento seria de 1 072 kg e, na verdade, deu 1 363 kg”.
Com o ciclo de 2018 encerrado, elas preparam o de 2019, ano em que pretendem incrementar a produção com um tipo especial de arroz e um cogumelo da Amazônia. A dupla realiza ainda outros projetos e trabalhos de consultoria para tornar a empresa rentável. No A.Ch.A., as duas juntas receberam 2.500 reais de remuneração. Flávia segue fazendo consultoria em gestão de projetos e Francine está colocando a experiência no papel (o A.Ch.A é também o objeto de sua dissertação de mestrado).
Apesar de dar mais trabalho atuar no formato CSA, as sócias não pensam em desistir, como diz Francine: “Nesse primeiro momento, a gente entendeu o processo, ganhamos parceiros e uma rede. Mas queremos fazer isso da vida. Se conseguirmos tornar o processo sustentável, será algo muito poderoso e, no futuro, pode dar uma segurança para todos. É uma transformação de narrativa o agricultor conseguir estar próximo do chef”. Que essa relação entre campo e cozinha se fortaleça cada vez mais (e atinja outros alimentos) com o trabalho das empreendedoras.
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