A vida de Walmir Terra recomeçou aos 40 anos, depois de sentir um forte mal estar em 1997. Ele relutou 20 dias para ir ao médico, e soube depois que era um princípio de infarto. Os seis filhos e oito relacionamentos formavam a parte mais saudável de uma trajetória de excessos. “Eu estava doente, usava cocaína, maconha, cigarro, uísque…”, diz, hoje aos 58 anos. O médico foi claro: ou você para com tudo ou não vai ver os seus filhos crescerem. “Cheguei em casa e chorei muito. A minha caçula estava com três meses, no berço. Pensei: ‘Está aí a menina que não pediu para vir ao mundo, e eu igual a um babaca nessa situação.’ Nas semanas seguintes, decidi parar com tudo.”
Walmir nasceu em Petrópolis, na serra fluminense, em 1957. Mais velho de cinco irmãos, estudou só até o quarto ano do ensino fundamental. “Sou filho de cozinheira doméstica e pai boiadeiro. A gente tinha que lutar muito para sobreviver.” A mãe trabalhava em um sítio de veraneio no distrito de Itaipava, e todos viviam como agregados no mesmo terreno. O pai aparecia de seis em seis meses. Quando o ofício de tocar gado pela estrada começou a perder força, ele abandonou o ramo e passou a ser mais presente, assumindo a função de caseiro no sítio.
Foi após uma discussão com o pai que Walmir saiu de casa pela primeira vez. “Me mandei com 12 para 13 anos. Eu era muito afoito, nessa época já tinha começado a usar maconha. Escolhi ir para o mundo, trabalhar.” Mesmo sendo menor de idade, conseguiu comprar passagem e embarcar em um ônibus para São Paulo. Dormiu na rua durante duas semanas; no fim da tarde, comia em um restaurante português, em troca de serviços gerais. Até que a polícia o recolheu na Estação da Luz e o Juizado de Menores o enviou de volta.
No sítio, o menino trabalhava como ajudante de jardinagem. “Quando cheguei à maioridade, perdi de vez o medo de ir para o mundo. Fui peão de obra, rodei um bom pedaço do país.” Migrando de vaga em vaga, Walmir trabalhou como mecânico de maquinário pesado no Projeto Carajás, no Pará; funcionário da manutenção no Polo Industrial de Camaçari (BA); barrageiro na Usina Hidrelétrica de Foz do Areia (PR); ajudante-geral na obra da Via Leste (hoje Rodovia Ayrton Senna), em São Paulo; oficial eletricista na montagem de duas plataformas de petróleo em um estaleiro em Niterói (RJ); gerente de uma fazenda de gado e milho em Goiás…
“Oito ou oitenta”
Depois de rodar o país, ele voltou a Petrópolis. Por um tempo, atuou como representante de uma empresa de frios e laticínios, que abastecia restaurantes e supermercados na região. Quando foi receber o pagamento de uma duplicata do proprietário de um restaurante na vizinha Teresópolis, ouviu uma contraproposta inusitada. “O cara disse: ‘Não tenho dinheiro, mas tenho essa bicicleta novinha, com nota fiscal e tudo.’” Walmir estava então com 40 anos, a saúde destruída, a balança marcando 133 kg. Tentando se livrar das drogas, mudou-se para Juiz de Fora (MG), a 120 km de Petrópolis, para evitar as más companhias.
Ele ficou com a bicicleta, uma mountain bike de 18 marchas. E a bicicleta mudou sua vida. “Na semana seguinte, fui conversar de novo com o médico e perguntei se poderia reverter a minha situação se conseguisse praticar esporte.” O doutor lembrou que Walmir estava com o organismo muito debilitado e que precisava pegar leve, mas disse que se ele levasse aos poucos, devagarinho, poderia sim recuperar a saúde. “Mas comigo é oito ou oitenta.” Contrariando o conselho do médico, ele abraçou de vez o ciclismo, de forma até temerária. Na primeira vez que decidiu ir pedalando de Juiz de Fora até a casa da mãe, em Petrópolis, levou 9 horas e 20 minutos na estrada, descendo e subindo a serra
E de repente, a vida ficou mais difícil. Walmir perdeu o emprego, penou para botar comida na mesa. “Eu e minha companheira chegamos a catar papelão na rua, vendemos umas revistas antigas que tínhamos em casa para comprar café da manhã para os filhos. Até cesta básica a gente recebia.” Ele voltou a fazer serviços de jardinagem, até que surgiu um trabalho para montar uma pista de mountain bike para um torneio que iria ocorrer em Juiz de Fora. “Faltando 50 metros para terminar a pista, a roçadeira jogou uma pedra a 80 quilômetros por hora na minha vista.” O resultado foi um traumatismo craniano e a perda do olho esquerdo.
Mas Walmir resolveu transformar a amargura em superação. Em vez de afastá-lo do mountain bike, o acidente o aproximou do esporte. Ele conheceu o ciclista de elite Thiago Aroeira, que o encorajou: você já venceu a cocaína e o cigarro, por que não compete nas categorias para pessoas com deficiência? Walmir inscreveu-se para a etapa de Ouro Branco (MG) da Copa Internacional de Mountain Bike. “Fui lá, fiquei entre os oito primeiros. Aí tomei gosto e nunca mais parei.”
De bike no morro
Walmir hoje pesa 77 kg. Já colocou 125 medalhas no peito, incluindo as de participação. Para ele, todas são importantes. Em média, disputa 20 a 25 provas por ano, na categoria PNE (Portadores de Necessidades Especiais). A modalidade pode ser mountain bike ou speed. Ou seja, prova de resistência ou de velocidade. “A que mais me fascina é o mountain bike, tem mais adrenalina.” Ele subiu ao pódio nas seis vezes em que participou do Iron Biker Brasil (“são 50 km no sábado e 50 km no domingo, com rios para atravessar, pirambeira para descer”). Em 2015, foi campeão na Copa Internacional de Mountain Bike.
Um de seus eventos preferidos no calendário é o Circuito MTB de Favelas, com provas em comunidades pacificadas da região metropolitana do Rio de Janeiro. “Você interage com as pessoas na porta de casa, elas ficam de fiscais nas vielas, batendo garrafas PET e apitando, avisando que as bicicletas estão descendo ou subindo… São as provas de maior calor humano que eu já corri!” No Morro do Borel, na Tijuca, Zona Norte do Rio, Walmir chegou a brincar com os policiais da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora): “Antes eu vinha aqui comprar cocaína, agora venho correr de bicicleta, olha que alegria!”
Apesar do bom humor, a saúde financeira da família segue atribulada. Walmir é aposentado, a mulher trabalha como diarista. Sem salário de esportista, ele recebe patrocínio informal de algumas empresas, uma ajuda de custo eventual para bancar as viagens. Às vezes não sobra dinheiro para o hotel. A saída é dormir na barraca, acampando no meio do mato. “Hoje, tenho carro, mas durante anos viajei de ônibus para as competições. Chegava de madrugada e dormia na rodoviária com a bicicleta amarrada na canela, para acordar se tentassem roubá-la.”
O orçamento apertado obriga Walmir a escolher bem as provas que disputa. “As provas são a única hora em que a gente esquece as nossas lesões”, diz, referindo-se também aos outros atletas da categoria, muitos deles amputados. Apesar dos percalços, ele não desiste. Só mostra arrependimento por ter demorado tanto para encontrar o caminho do esporte. “Se eu tivesse começado quando era moleque e me empenhado no ciclismo, com certeza hoje estaria no Guinness Book! Mas nunca é tarde para ser feliz.”