Um bisturi e uma faca de pão parecem ter pouco em comum. Porém, para o médico e agora padeiro Sérgio Meira, 52, a medicina e a panificação convergem em seu objetivo maior: “fazer o bem para as pessoas”.
Sérgio trocou o jaleco da área de transplante de um dos mais prestigiados hospitais do Brasil — o Hospital Israelita Albert Einstein, na capital paulista — pelo avental sujo de farinha da Soul Good Bakery, sua padaria em Jundiaí (SP).
“Quem doa um órgão tem uma atitude muito altruísta de querer fazer o bem para a vida de uma pessoa. Encontro esse mesmo sentimento na cozinha. Fazer uma comida, colocar o seu melhor ali para alimentar alguém, a pessoa gostar e voltar, é porque você fez bem para ela”
Formado em medicina pela PUC-SP, Sérgio era coordenador de transplante de intestino e multivisceral no Einstein. Um cargo importantíssimo, mas que o distanciou daquilo que mais apreciava na medicina.
“Eu gostava muito do que fazia quando estava na sala de cirurgia realizando um transplante”, diz. “Mas, ao assumir a coordenação da área, passei a operar muito pouco e ficar mais na área administrativa e burocrática. Fazer a gestão de equipe era muito estressante.”
Movido por essa insatisfação e pelo amor à cozinha, ele deu início a uma transição de carreira que poucas pessoas teriam coragem de levar à frente. E assim, em 2022, abriu a Soul Good Bakery. O nome veio do elogio de uma amiga americana que, ao experimentar o pão caseiro feito por Sérgio, só conseguia murmurar: “so good, so good”.
“Fiz uma brincadeira [ao batizar o negócio] com o so de ‘tão’ para o soul de ‘alma’. Porque a cozinha artesanal tem isso, né? A alma de quem faz.”
Sérgio conta que herdou o amor pela cozinha de sua avó materna, dona Ilza, uma exímia cozinheira.
Ele chegou a passar em gastronomia no Senac de Águas de São Pedro na primeira vez que prestou vestibular, na década de 1990. Seu pai, entretanto, não acreditou nas perspectivas de uma vida entre panelas. “Você vai ser cozinheiro?”, indagou.
Assim, ele ajustou a rota para o que parecia um futuro mais seguro. Despendeu dois anos no cursinho e foi aprovado no disputadíssimo vestibular de medicina.
A escolha pelo curso e o interesse pelo sistema digestivo vieram por influência do amigo e médico Ben-Hur Ferraz Parente. Sérgio foi seu braço direito e depois o substituiu na coordenação de transplante multivisceral no Albert Einstein.
“Ben-Hur era um exemplo e se tornou um mestre para mim. Fui trabalhar com transplante por causa dele”
Juntos, Ben-Hur e Sérgio lideraram a equipe que realizou, em 2012, o primeiro transplante multivisceral no Brasil — na época, a façanha chegou a ser tema de uma reportagem na revista Veja.
Mesmo com a carreira consolidada na medicina, o amor pela gastronomia continuava pulsando.
Ainda em 2009, como hobby, Sérgio tinha feito um curso livre de gastronomia com o chef Nicolau Rosa, com um ano de duração.
“O curso era das 19h às 23h30 e depois tínhamos de limpar a cozinha… Ficava lá até uma da manhã e no dia seguinte tinha de ir para o hospital”
Ele também fez um curso de sommelier — e aproveitava cada viagem para explorar a culinária local.
O tempo passou. Em 2019, Sérgio estava se preparando para tirar um período sabático, mas resolveu adiar porque queria compor uma reserva financeira mais robusta.
O sabático acabou tomando forma no ano seguinte, quando a pandemia de Covid-19 inviabilizou o seu trabalho:
“Todas as UTIs estavam cheias de pessoas contaminadas pelo coronavírus. Ninguém podia realizar um transplante porque o transplantado é um imunossuprimido e a maioria dos possíveis doadores estava contaminada…”
Exausto da medicina (“tinha pacientes na lista e via as pessoas morrerem porque não podia realizar o transplante… Um puta estresse”), ele se via, por outro lado, cada vez mais obcecado pela ideia de realizar o sonho da juventude de ser um chef.
Durante a licença de um ano, Sérgio lia livros de chefs renomados, como o americano Anthony Bourdain. E ponderou se o ambiente da cozinha de um restaurante não seria, também, estressante demais para aquele momento.
“Eu pedi para me afastar da medicina devido ao estresse. Será que gostaria daquele ambiente estressante da cozinha quente para mim?”
Ainda perdido sobre o que fazer, ele se matriculou em um curso de panificação de seis meses na France Panificação, em São Paulo. E concluiu que uma padaria parecia menos estressante do que um restaurante ou um hospital.
Aproveitou uma viagem para visitar o filho (que estava cursando uma parte do Ensino Médio no Arizona, nos Estados Unidos) e pediu para fazer um estágio de alguns dias na padaria Proof Bread, para entender como o negócio funcionava. Voltou apaixonado. “Acho que o meu negócio é fazer pão”, pensou.
A produção começou em casa, com alguns pães de fermentação natural. A cada reunião de família ou encontro da confraria de vinhos do condomínio onde mora (em Jundiaí, a 50 quilômetros de São Paulo), Sérgio levava um novo pão fresquinho para o pessoal provar.
O boca a boca cresceu, e ele passou a vender seus pães por meio de uma lista de transmissão no WhatsApp; em paralelo, se aprimorou por meio de mais alguns cursos de confeitaria e aprendeu a fazer croissant.
Toda semana, Sérgio oferecia dois sabores de pão rústico, croissant, brownie de receita própria e choux.
“Em três meses, o negócio virou. Comecei a receber tanta encomenda e tinha dificuldade em dar conta das entregas”
Os filhos, a mulher e as funcionárias da casa entraram na logística para dar conta dos pedidos.
De olho no período natalino, Sérgio resolveu acrescentar o panetone no cardápio. Um passou ousado, ele explica:
“É o produto mais difícil de fazer. Diria que quase impossível. A cada dez quilos que eu produzia, eu perdia cinco. Ficava louco!”
Naquele fim de 2021, para dar conta das entregas, o aspirante a padeiro chegou a passar três noites sem dormir. Cansado e feliz com a demanda, ele bateu o martelo: “vou montar uma padaria”, decidiu.
Para entender um pouco mais sobre panificação, Sérgio viajou para Londres, onde fez um estágio na padaria Wayne Caddy.
Na volta ao Brasil, comprou um imóvel para abrigar a Soul Good Bakery, a 5 minutos de sua casa.
“Quando trabalhava no hospital, tinha dias que eu levava duas horas no trânsito para chegar ao trabalho. Eu já estava cansado deste ir e vir. E falta, em Jundiaí, espaços que ofereçam boas experiências gastronômicas. Resolvi acreditar”
Faltava também mão de obra especializada, como padeiros, confeiteiros e baristas. Assim, ao inaugurar o negócio, ele não abriu mão de trazer uma equipe de profissionais da capital paulista, gente com bastante experiência no ramo.
Mesmo com esse “dream team” de funcionários, o primeiro dia da Soul Good Bakery, em outubro de 2022, não escapou dos atropelos. Sérgio relembra:
“Tinha pessoas brigando por um lugar, entregas nas mesas erradas, atrasos de 40 minutos para chegar o pedido ao cliente. Sentei e pensei: ‘O que foi que eu fiz?’ A gente não conseguia dar vazão”
O volume de público na abertura foi o dobro do que ele esperava. “No dia seguinte abri de novo, depois de novo e as coisas foram melhorando…”.
Assim que o atendimento entrou nos eixos, porém, a equipe começou a dar problema. Os primeiros funcionários, que iam e viam todos os dias de São Paulo para Jundiaí, não aguentaram mais vencer a distância diária e pediram demissão.
Atualmente, Sérgio tem 18 colaboradores, quase todos moradores de Jundiaí. São profissionais com menos experiência, porém, segundo ele, mais comprometidos com o negócio.
“Há um cuidado entre as pessoas da equipe. Eles me chamam de ‘tio’, perguntam se eu já tomei uma água, se eu não estou precisando descansar. Então, tem esse carinho.”
Sérgio investiu cerca de 3 milhões de reais no negócio. Ele afirma que a Soul Good Bakery está se pagando dia a dia.
Antes de migrar a produção para um endereço próprio, ele chegou a sondar potenciais cofundadores com experiência no comércio. Só recebeu respostas negativas. Agora, porém, diz que a Soul Good vem atraindo interessados em montar uma filial ou se juntar como sócios à operação.
Por mais que tivesse feito estágios e conversado com empresários do ramo, Sérgio assume que não tinha a menor noção do que o esperava. “Eu brinco que [só] agora, depois de quase um ano de negócio, me sinto pronto para montar uma padaria.”
Sem hesitar, o padeiro e empreendedor afirma: o seu último ano foi muito mais difícil do que os 27 que ele dedicou à medicina. E explica o porquê:
“A curva de aprendizado da medicina é mais longa e suave. Antes de realizar um transplante, fiz milhares de cirurgias de apendicite, hérnia e vesícula. E sempre tinha alguém mais experiente me dando suporte até eu me sentir seguro. Abrir uma padaria foi um intensivão. Aprendi tudo na raça”
Todos os dias, Sérgio acorda às seis da manhã, vai para a padaria laminar e bater as massas que serão assadas no dia. Só volta para casa às 19h30. Feliz da vida.
“Agora que me estabilizei, quero ficar aqui quieto um pouco, tocando meu negócio”, diz. “Tenho pessoas que me auxiliam na administração, porque não quero sair da cozinha. É gostoso fazer pão, tem o seu lado terapêutico.”
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