Férias. Que maravilha se tudo sempre começasse com ela. Ao menos neste texto, dá pra ser assim. Precioso período de descanso e tempo livre oferecido a quem dedica um ano inteiro cumprindo seus compromissos profissionais. Chega até a parecer um prêmio, mas é mesmo uma conquista. Privilégio para quem consegue obter.
Em 2014, Diana e eu conseguimos ter as nossas primeiras férias juntos. Na verdade, como éramos profissionais freelancers trabalhando na produção de programas e séries de televisão, foi uma brecha mútua entre um projeto que acabava e outro que começaria em alguns dias. Decidimos chamá-la de férias. Um ótimo começo pra história que contaremos aqui.
UM LUGAR PODE SER MUITOS LUGARES
Naquelas duas semanas que conseguimos deixar de trabalhar, decidimos viajar de carro entre os estados do Tennessee, Alabama, Arkansas, Mississippi e Louisiana, no sul dos Estados Unidos.
Foi minha primeira vez naquele país, conhecendo a meca do mundo capitalista por um viés bastante diferente, se comparado com o que normalmente é feito. E recomendo fortemente pra quem nunca o fez
A ideia foi visitar o berço da música popular ocidental do século 20, cidades e regiões onde nasceram o rock, o blues, o jazz, o soul, o pop, e territórios onde a resistência e luta pela igualdade catapultou os movimentos da população preta norte-americana pelos direitos civis.
Apesar do objetivo ser bem definido, decidimos fazê-lo com certa flexibilidade e sem rigidez de itinerário. Sem hora pra sair ou chegar numa nova cidade.
Deixando assim, que as experiências, os lugares e as pessoas que encontrássemos pelo caminho decidissem por nós quando era chegada a hora de partir.
Se você já viajou assim, a esmo, deixando-se se perder, sem hora pra voltar, sabe que a estrada sempre tende a nos surpreender. E ensinar. Aliás, que graça teria uma viagem se não retornássemos diferentes do que partimos?
Mas o que não sabíamos é que este período de férias não só nos mudaria, mas faria a maior revolução que nossas vidas já tiveram.
Você sabe o que são 15 dias? Depende do quão intensamente você os vive.
Aqueles meus 15 anos trabalhando em emissoras e produtoras ainda não tinham me mostrado o que aqueles 15 dias me mostraram. Então, neste aspecto, 15 dias podem ser o que nos separa de subverter paradigmas de uma vida inteira.
O movimento causado por aquele curto período – estando na estrada conduzidos por histórias sensíveis e inspiradoras em função da arte e do ideal de um mundo justo e cooperativo – foi avassalador. Tão forte que, mesmo quando nossas férias acabaram, ele continuou
A física explica que inércia é a resistência de um corpo em mudar de estado, ou seja, neste caso de continuar em deslocamento. Foi exatamente isso o que aconteceu.
Mesmo ali, fisicamente de volta à nossa casa e à nossa rotina, nossos pensamentos estavam num outro lugar, bem mais adiante de onde os pés estavam.
E normalmente, o retorno das férias nos pede pra trazer o pensamento de volta pra realidade. Mas, pela primeira vez em nossa vida profissional, decidimos fazer o contrário. Levar o corpo para onde a cabeça estava.
Nosso desejo almejava estar na estrada em função da música, nos juntando com pessoas e filmando histórias.
E num intervalo de dias, definimos que queríamos passar um tempo viajando pelo mundo em busca de bandas e artistas que topassem criar videoclipes com a gente.
Assim, criamos nosso projeto: ser a primeira equipe a filmar uma série global de videoclipes, que batizamos de “Around The World in 80 Music Videos” (A Volta Ao Mundo em 80 Videoclipes)
Mas lembre-se bem que nós dois éramos freelancers e empregados da indústria audiovisual. Ou seja, não era nosso ofício criar oportunidades de trabalho e negócios, como fazem profissionais autônomos.
Estar em atividade significava se encaixar em vagas criadas e oferecidas por alguém. Pra levar nosso projeto adiante, as regras do jogo precisariam mudar. Ou melhor dizendo, a gente é quem deveria criá-las.
O parágrafo anterior é sábio e conselheiro ao dizer “criar novas regras”. Mas não demos ouvidos a ele naquele momento.
Às vezes é preciso ser teimoso, por mais atraso que isso traga
Habituados à estrutura e ao funcionamento dos programas de TV que eu dirigia e que Diana produzia, fizemos a nossa ideia de projeto ser uma série com o mesmo porte… Com a liberdade em mãos, não estávamos sabendo ser livres
No papel, nossa série teria equipes de produção, de arte, de gravação, de edição, de gestão de redes sociais, e por aí afora. Toda rigidez que jamais nos permitiria viver as surpresas da estrada.
Quanto engano. Quanta pretensão.
Consequentemente, com uma estrutura completa e inflada como essa, o patamar orçamentário do projeto também era o de uma produção televisiva.
E sem nos dar conta do trabalho que seria captar recursos financeiros pra isso, tínhamos orgulho da grandiosa série que havíamos criado. Pelo menos no papel.
Mais engano. Mais pretensão.
Foi entre julho e dezembro de 2014 que nos dedicamos a encontrar patrocinadores para este projeto audacioso. Foram seis meses de árduo trabalho para captar zero real.
Parece até insensibilidade minha resumir 180 dias de luta em poucas palavras assim… Como avanço e êxito só se comprovariam com números – que não tínhamos –, nossa ofensiva havia sido um fracasso.
Triste ver um sonho precisar de tanto tempo pra não acontecer. Sei que é bastante corriqueiro pra muitos (os que vivem tentando realizar), mas era tão insólito pra nós, sonhadores de primeira viagem. Era essa a sensação de naufragar com um projeto
Na última semana do ano, deletei o atalho da apresentação da série do meu desktop. O projeto com dezenas de pessoas e centenas de milhares de reais foi morar no labirinto de pastas e arquivos do meu computador. Lá, esses números são aceitos até hoje.
Foi assim que chamamos aquela semana de virada de ano, 2014 pra 2015. Se havíamos trabalhado tanto, era um merecido descanso.
Até onde sei, férias é pra quem capta 100 ou 0 real. Então, aceitamos o convite da mãe da Diana e fomos passar uns dias na praia.
Procurando esquecer do nosso fiasco comercial – e já recarregando as baterias para voltar a buscar trabalho em canais e produtoras –, decidi levar um livro pra ler. Eu havia ganhado Linha-d‘Água, de Amyr Klink, do meu irmão mais velho, e achei o momento propício pra atualizar a leitura
Lembro como se fosse hoje. Fim de tarde, pés na areia, sentado de frente pro mar, maré enchendo e de ler exatamente esta frase:
“Antes de me distrair com delírios futuros eu precisava criar coragem (…). Mesmo sabendo que o projeto todo — e as minhas finanças também — andava à beira de um colapso, (…) decidi correr o risco. A iniciativa não era prudente, mas fazia sentido. Parando tudo haveria prejuízos para todos e uma dúvida completa sobre o que fazer depois. Para seguir em frente eu sabia — exatamente, e por difícil que fosse — o que deveria ser feito.”
Ao ler esse trecho, tive certeza de que Amyr Klink estava se comunicando comigo. Ao mostrar pra Diana, ela também teve.
Foi exatamente aí, neste instante de segundos, que nosso projeto nasceu. Não foi nos 15 dias da viagem aos EUA. Não foi nos seis meses tentando buscar patrocínio. Foi exatamente naquela frase. E sem sair do lugar
É comum sermos impactados por citações e histórias bem-sucedidas de pessoas inspiradoras. Esta seção aqui no Draft traz muitas histórias assim. Mas pela frequência com que as ouvimos, às vezes as banalizamos e as deixamos morar na caixinha das coisas distantes e impossíveis de vivenciar.
Só que quando alguma delas se conecta com onde estamos e com quem somos, é realmente possível sermos transformados também.
Tem um outro livro, que se chama Neve (Orhan Pamuk), em que o protagonista diz: “Chega o dia em que se tem de voltar para salvar aqueles que não tiveram a coragem de partir”.
Linha-d’Água – e o Amyr Klink – fez isso com a gente.
Tem um ditado que diz que “coragem” e “estupidez” nascem do mesmo contexto: quando seguimos adiante mesmo sabendo dos riscos. Por isso, é tão difícil saber se devemos ou não dar andamento às vontades que temos.
E naquele momento, no início de 2015, decidimos partir mundo afora mesmo sem saber como daríamos conta de concluir nosso desígnio.
Tivemos que descobrir como suprir a ausência de pessoas e recursos financeiros. Desenvolvemos habilidades que jamais imaginamos ter capacidade. Descobrimos talento para executar funções que não sabíamos.
Aprendemos que só ao expor nossas vulnerabilidades, podemos evoluir e subir um novo degrau. Aprendemos, como nunca, a pedir e a oferecer. A dar e a receber
E entendemos que, não importa onde a gente esteja, se há pessoas, temos tudo o que precisamos pra fazer acontecer.
Pra quem tiver interesse em saber mais detalhes sobre como conseguimos viabilizar e realizar essa jornada, temos muitas histórias contadas na websérie em nosso canal no YouTube, na série que passa no canal Bis e na Globoplay ou até no e-book que publicamos no Kindle.
O que importa mesmo aqui é que após 18 meses consecutivos, 22 países e 80 artistas, conseguimos concluir nosso projeto e voltar ao Brasil. Porém, já não éramos mais a mesma Diana e o mesmo Leo. Havia ali duas pessoas que tinham aprendido a ouvir, a respeitar e a perseguir seus sonhos.
E tem coisa na vida que não dá pra desaprender.
Na fictícia cidade de Cloé, criada por Italo Calvino no livro As Cidades Invisíveis, os habitantes nunca vivem seus sonhos para que o carrossel das fantasias não tenha fim.
Mal sabem eles que, na verdade, são os sonhos realizados que fazem girar a roda da imaginação.
Desde “Around The World in 80 Music Videos”, não paramos mais. Estamos completando 10 anos dedicados a criar e produzir séries e projetos autorais pelo mundo. Na estrada, com pessoas e filmando histórias. Feito aquele primeiro lampejo que tivemos
Te convido até para assistir nosso mais novo filme, Solstício, que fala justamente sobre a importância do sonhar para criar novas realidades. Quem sabe ele não seja pra você o que o livro do Amyr é pra gente.
É assim como passamos a nos denominar. Um duo de filmmakers e documentaristas que se vira de muitas maneiras, fazendo de tudo um pouco, pra viver como artistas autônomos e independentes.
Nesta disrupção de realidade profissional – deixando pra trás a vida de freelancers e adotando a atual –, a gente continua a colecionar aprendizados. Mas finalizo este texto com três que sempre nos ajudam a estar em equilíbrio para continuar a viver assim:
As férias – ou os períodos de descanso e tempo livre que conquistamos – continuam nos ensinando que ter espaço pra vagar sem destino sempre pode nos levar a revoluções, mesmo que não saiamos do lugar.
As batalhas – mesmo as perdidas, que são mais frequentes – continuam nos tornando mais preparados para a próxima.
E os sonhos – ah, os sonhos – continuam permitindo que a gente não perca a ilusão de quem somos e de quem queremos ser.
Leo Longo, 43, e Diana Boccara, 38, são Couple of Things, duo de filmmakers e documentaristas nômades que cria, escreve e desenvolve séries autorais exibidas em canais como BIS, Multishow, Amazon Prime Video e YouTube. Vivendo sem casa fixa há 10 anos, eles trazem esse lifestyle para sua produção audiovisual. A dupla já compartilhou sua trajetória em palcos como o do festival South by Southwest em Austin (Estados Unidos) e no TEDxSãoPaulo em 2017, 2019 e 2022.
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