Para Carla Maciel, 33, empreender tem a ver com seguir suas habilidades naturais e saber que, nessa jornada, não encontrará sombra e água fresca. Formada em Comunicação, nunca teve a carteira assinada e acabou seguindo o caminho de produtora e ativista cultural. Ela ainda se lembra de quando, na infância, ganhou da mãe o apelido de “rueira”, por andar o dia todo pelas ruas de Salvador, sem ter hora para voltar para casa. Desde lá, o contato com a vida na comunidade despertou-lhe o desejo de levar ao espaço público mais opções gratuitas de lazer. Algo que faria depois de passar uma temporada em São Paulo.
Carla morou alguns anos no bairro de Pinheiros, e lá conheceu na feirinha da Praça Benedito Calixto, que reúne centenas de expositores de artesanato, antiguidades, além de oferecer música ao vivo e comida de rua, e atrair muito público. Ela adorou aquilo, e guardou como uma referência. A carreira de jornalista arrefeceu e ela sentiu que era hora de voltar à cidade natal: com a cara e a coragem, queria levar para Salvador uma ocupação cultural inclusiva, sem a intenção de se tornar só mais uma feira hipster. “Somos anti-gourmet”, ela diz.
Com este mote, há dois anos nascia A Feira da Cidade. A ideia de Carla é receber gente de todas as idades e classes sociais, oferecendo opções de lanches a partir de 7 reais e estandes disponíveis para aluguel a partir de 75 reais. Em dois anos, a Feira já teve 100 edições e impactou 500 expositores.
Atualmente sem patrocínio, o modelo de negócio se adapta a cada evento. “O valor total do investimento é dividido entre os participante e o valor do meu trabalho está dentro desse valor final. Mas varia muito, pois depende de cada orçamento, de cada tamanho de praça, da quantidade de expositores”, conta Carla.
DESDE O INÍCIO, UM PACTO COM O ESPAÇO PÚBLICO
A primeira edição da Feira aconteceu em 2014 e teve a participação de 60 empreendedores-expositores. “Começamos com música, grafite e 15 segmentos de alimentação, artesanato e antiguidades”, diz Carla. Ao olhar para trás depois de uma centena de edições, ela fala a respeito de como o negócio ressignifica a cidade:
“O espaço público precisa ser melhor entendido. Com a Feira, ele deixa de ser um cenário contemplativo para se transformar em um espaço vivo”
Com o sucesso do primeiro evento, mais empreendedores a procuraram e a ambição de Carla aumentou, fomentada pela sua vontade de incentivar o crescimento dos pequenos negócios da economia criativa soteropolitana.
Para ela, não importa se a barraca vende hambúrguer ou frango assado. “A atenção que damos a cada um é a mesma”, diz. Ela conta que dos cerca de 500 empreendedores que já passaram pela Feira, 95% são famílias com negócios próprios, sendo que 60% da renda dessas famílias vem do evento.
Com um ano de Feira da Cidade (e como é normal em qualquer projeto) alguns pontos não estavam funcionando muito bem e Carla sentiu que precisava reinventar seu negócio. Ela reuniu a equipe para, juntos, reavaliarem todos os pontos de atenção.
O primeiro deles era a necessidade de fazer uma curadoria mais apurada dos expositores, para ajudar a manter a variedade e, assim, manter o interesse do público no evento. “Nosso modelo de negócio é a diversidade, então quando um empreendedor novo chega, fazemos um diagnóstico do preço e de como encaixá-lo na nossa proposta”, afirma.
DE REPENTE, SEU NEGÓCIO PASSA A SER AJUDAR OUTROS NEGÓCIOS
Nessa avaliação dos interessados em expor, Carla também percebeu como era grande a carência de formação desses profissionais, muitas vezes gente que deixou a carreira (ou perdeu o emprego) nas empresas e decidiu seguir o sonho de empreender, mesmo sem preparo. Foi aí que surgiu a ideia de oferecer uma consultoria gratuita de branding para os comerciantes. Eles chegam até a Feira com uma ideia e saem dali com uma solução completa: logo, plano de marca e formas de rentabilizar o seu projeto. Ao fazer isso, Carla ajuda não só a cada um, mas essencialmente ao seu próprio negócio, pois passa a ter melhores e mais preparados expositores.
O resultado não tardou a chegar e, em pouco tempo, barracas que antes eram bem primárias, como o BurGuiles, conseguiram se transformar em lojas — e ter uma vida inclusive além da Feira. Hoje, Carla contabiliza mais de 350 marcas lançadas na Feira da Cidade, sendo que 10% delas abriram ponto fixo:
“Funcionamos como uma incubadora que provoca o empreendedor a começar algo e trazer para cá. Queremos valorizar o pequeno que cria”
Entre os conselhos que Carla dá para os empreendedores, um dos que mais repete é o de ser fiel ao que se gosta. “Nem sempre vale a penas fazer algo que o outro acha que dá dinheiro”, conta. O segundo que ela mais martela é: “Sempre inove dentro da sua paixão”.
Com essas dicas, ela diz, a proposta é fortalecer a cena empreendedora e criar uma rede sustentável em que todo mundo possa se ajudar, mesmo que algumas barracas ofereçam produtos semelhantes. A empreendedora acredita que o papel da Feira é facilitar esses processos, já que o âmbito comercial e jurídico cria obstáculos. “Somos como um jet-ski pra eles, mas para fazerem a curva ainda existe muita burocracia”, diz.
OCUPAR, CUIDAR, E SÓ ENTÃO FAZER A FEIRA
A Feira da Cidade é itinerante, algo que diz muito sobre sua proposta, e que também requer uma demanda extra de energia e organização por parte de Carla e sua equipe (ao todo, 50 colaboradores diretos e indiretos). Além de montar o espaço e movimentar comerciantes locais, Carla sempre mobiliza a comunidade do entorno para que participem do processo de revitalizar as praças e limpar o espaço a ser utilizado pelo evento.
A intenção, ela diz, é que esses espaços continuem ocupados pelos cidadãos após a passagem da Feira: “Já passamos por pelo menos 16 bairros da capital baiana, em 18 projetos localidades. Posso dizer que já ocupamos cerca de 50% do espaço urbano de Salvador”. Ela segue:
“A ocupação é a chave para melhorar o convívio em sociedade e trazer mais segurança para as ruas. Todo mundo quer um pedaço da área pública”
Além de contar com a ajuda de moradores, a empreendedora rapidamente percebeu o valor de se envolver com outras organizações com intuito semelhante, como o Museu de Street Art de Salvador (MUSAS) e o Ruas Vivas, projetos ligados a urbanismo e ocupação do espaço público.
“Juntos, conseguimos desde arrecadar livros para deixar de graça nas praças depois das Feiras até ajudar os moradores a tomarem conta do local. Cada edição é um trabalho enorme de muitas formiguinhas”, conta Carla. Recentemente, uma versão “fixa” da Feira entrou em atividade: é a Feira Garagem, que ocupa um pequeno galpão, no bairro da Pituba. Ali, a intenção é reproduzir um pouco do clima das edições itinerantes.
Lá no início, falamos que não haveria sombra nem água fresca, certo? Não há, e sobram obstáculos. Além do trabalho intrínseco ao negócio que ela criou — o faturamento vem do aluguel dos estantes e para se sustentar de maneira mais confortável a Feira depende de patrocínio — o que tem tirado o sono de Carla são as incertezas em relação ao cenário político baiano. “Alguns gestores públicos mudaram recentemente e isso dificultou muito o processo de realizar a Feira. Temos tido mais dificuldade de conseguir as licenças, e já não dá para ter certeza se teremos a próxima edição”, afirma. A última aconteceu dias 22 e 23 de outubro.
Mesmo sem patrocínio e com dificuldades para conseguir as novas licenças, Carla sabe que já não há caminho de volta. Ela assume, com gosto, o compromisso de seguir como incubadora de pequenos negócios e, aos poucos, vê a cidade que nasceu se transformando naquela que sonhou. “Essa junção de pessoas revela o DNA da cidade. Tem gente que tatuou o nome da marca na pele, tem gente que se casou por causa da feira. Eu amo a rua, amo o que faço e faço com amor”, diz. Que tenha muita rua pela frente.
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