Em três anos, a Gastromotiva cresceu, ganhou uma cozinha própria e reviu seu modelo de negócio

Rafael Tonon - 7 abr 2017
Por ano, o projeto criado por David forma 2 560 alunos para a cozinha.
Rafael Tonon - 7 abr 2017
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Quando o termo gastronomia social ainda era um enigma para muitos profissionais da área, David Hertz já proporcionava cursos de qualificação profissional em culinária para pessoas em situação de vulnerabilidade social. Lá atrás, em 2004, ele criou a Gastromotiva, uma ONG que desde então usa o ensino de gastronomia como ferramenta de inclusão para jovens, presidiárias e até moradores de rua.

O projeto, retratado no Draft pela primeira vez em 2014, nasceu da crença de David de que, ao aprender a cozinhar, a pessoa não ganha só uma nova possibilidade de sustento, uma nova profissão, mas também uma forma de se conectar com o alimento e as relações sociais que estão implícitas no ato de comer e nutrir.

Em outubro de 2014, a Gastromotiva apareceu pela primeira vez no Draft (clique na foto para ler a reportagem).

Em outubro de 2014, a Gastromotiva apareceu pela primeira vez no Draft (clique na foto para ler a reportagem).

Nesses mais de 13 anos, ele comprovou que a gastronomia podia mesmo transformar vidas: David também se tornou um propagador global da tal gastronomia social. Subiu no palanque do Fórum Econômico Mundial, por exemplo, e viajou o mundo conhecendo outros projetos semelhantes enquanto angariava outros para o movimento.

Nessa caminhada, ele influenciou chefs importantes a adotarem a causa. Um deles, o italiano Massimo Bottura, da Osteria Francescana, em Modena, na Itália, eleito no ano passado o restaurante número 1 do mundo na lista da revista inglesa Restaurant (considerada o maior prêmio da gastronomia mundial).

Em um dos eventos da Expo de Milão, em 2015, Massimo conheceu David, apresentado pela jornalista Alexandra Forbes, e se encantou com o trabalho desenvolvido por ele no Brasil.

O chef italiano tinha acabado de montar, para a exposição, o embrião de seu Food for Soul, um refeitório cujos pratos eram feitos apenas com alimentos que seriam jogados fora nos principais canais de distribuição – supermercados, hortifruti, restaurantes etc.

UMA PROVA DE FOGO NAS OLIMPÍADAS DO RIO

Massimo, então, propôs a David de eles criassem juntos um projeto semelhante durante as Olimpíadas e as Paralimpíadas do Rio. O Refettorio Gastromotiva foi concebido para aproveitar a visibilidade do evento e convidar chefs famosos do mundo inteiro a criar refeições com alimentos que seriam descartados e alimentar moradores de rua da cidade.

“Foi difícil conseguir os investimentos necessários, mas decidimos seguir adiante quando conseguimos do governo municipal um lugar para instalar nossa cozinha, apostando que o prêmio de Massimo atrairia mais investidores”, diz o chef brasileiro. “Esse status proporcionou um novo nível de marketing para as empresas”, afirma.

Foi tudo muito corrido. Até a inauguração, poucos dias antes dos Jogos, ainda faltavam alguns detalhes para o Refettorio Gastromotiva funcionar e o custeio não estava bem definido, mas eles já tinham arregimentado investimentos e apoios de marcas como Coca-Cola, Fundação Carrefour, Fundação Cargill, Stella Artois, XP Investimentos e Latam.

Através, também, de doações e parcerias, conseguiram, ao fim, montar um restaurante com cozinha de ponta, móveis assinados (pelos irmãos Campana), grafites e design de iluminação para atender dezenas de moradores de rua por dia, em um casarão no bairro da Lapa.

David, Alexandra e Massimo no Refeittorio que armaram para servir pratos a moradores de rua durante as Olimpíadas do Rio.

David e Massimo com a jornalista Alexandra Forbes, no Refettorio Gastromotiva, o restaurante-escola que eles armaram para servir refeições gratuitas para populações vulneráveis nas Olimpíadas do Rio. Foi um sucesso.

Por fim, a Gastromotiva, que até então usava a cozinha de instituições, como a da Universidade Anhembi Morumbi (onde David começou o projeto, ainda como professor do curso de Gastronomia), se viu com o trabalho de administrar, pela primeira vez, a sua própria cozinha. Era um desafio importante para não deixar que o legado do projeto acabasse com os Jogos.

Como o imóvel foi doado pela Prefeitura, foi preciso criar um plano de negócios para que o Reffetorio seguisse sua missão não só de oferecer comida a pessoas em situação de rua, mas de transformar seu próprio (e primeiro) espaço em um laboratório para formação de novos chefs – resgatando assim os primeiros objetivos da ONG, que foi criada para ensinar técnicas culinárias e profissionalizantes a jovens da favela do Jaguaré, em São Paulo.

UMA NOVA VISÃO, O DESAFIO DE UMA NOVA GESTÃO

“Nossa missão continua a mesma, mas mudamos a nossa visão: hoje entendemos que governos, empresas e iniciativas privadas são imprescindíveis para fazer da gastronomia uma ferramenta de maior transformação social”, diz David.

Sem apoio, ele diz, é muito difícil colocar o sonho em pé. Experimento realizado graças a essa visão, o Refettorio se tornou um hub de gastronomia social – é, hoje, passados os Jogos Olímpicos, um misto de escola de cozinheiros, centro de educação alimentar e de combate ao desperdício de alimentos – e também a menina dos olhos da Gastromotiva.

Com a gestão do projeto, David diz que aprendeu a buscar parcerias mais genuínas com os apoiadores, ou seja, que vão além apenas da doação financeira. Ele conta:

“Hoje, os parceiros participam da minha estratégia — e isso muda tudo. Com o sucesso, todo mundo ganha. Eles em visibilidade, nós em poder custear o trabalho”

O Refettorio Gastromotiva encontrou um modelo de filantropia para funcionar: é mantido graças aos apoios das empresas. Também, como um restaurante, funciona no esquema “compre o almoço e deixe o jantar”, em que pessoas podem ir almoçar e deixar o jantar pago para os moradores de rua.

O objetivo, segundo David, é gerar negócios ali dentro: em três anos, ele planeja que 50% do custo seja pago pelo próprio espaço, através de cursos para cozinheiros, aluguel de espaço, patrocínio de jantares e eventos.

REAPROVEITANDO ALIMENTOS, REVENDO VERDADES

Ele também pensa em criar uma linha de produtos feitos artesanalmente ali para venda, como molhos, conservas, chutneys.

“O que chega de produtos é muito maior do que a gente se preparou”, diz ele, sobre as doações de mercados e hortifrútis que sustentam a cozinha: as redes Benassi e Carrefour enviam para o Reffetorio semanalmente quilos e mais quilos de alimentos que seguiriam para o lixo, apesar de estarem em perfeitas condições para a alimentação.

Criar esses produtos seria uma forma, além de dar conta da oferta dos alimentos que chegam, de manter o foco do restaurante-escola. Ali no Reffetorio, David pretende formar 36 novos profissionais por ano, entre cozinheiros, padeiros, confeiteiros e pizzaiolos.

A Gastromotiva nasceu para dar cursos de formação a pessoas de baixa renda. Antes, restaurantes financiavam o projeto. Agora, marcas também ajudam.

A Gastromotiva nasceu para dar cursos de formação a pessoas de baixa renda. Antes, restaurantes financiavam o projeto. Agora, marcas também ajudam (foto: Angelo DalBo).

Aliás, a Gastromotiva segue firme também nos cursos de formação de jovens e outras pessoas em situações de vulnerabilidade que começou lá no início de sua história. Por ano, a ONG forma empreendedores e novos cozinheiros no mercado nacional, entre São Paulo, Rio de Janeiro e, desde o ano passado, em Curitiba – cidade natal de David. Havia um braço da Gastromotiva em Salvador, mas será descontinuado.

Os cursos oferecidos são o “Curso de Capacitação em Cozinha”, dedicado aos que querem ser cozinheiros, e o “Empreenda”, desenhado para para futuros proprietários de estabelecimentos do setor alimentício. Ambos reúnem mais de 200 horas e formam, por ano, 2 560 alunos.

Aqui cabe também destacar uma evolução no modelo de custeio dos cursos. Antes eles eram mantidos por uma taxa que restaurantes e estabelecimentos comerciais voltados à gastronomia pagavam à Gastromotiva em troca de poderem lançar mão de profissionais bem capacitados pelos cursos. Agora, recebem também apoio de empresas, como a Unilever.

David fala dessa delicada equação: “Sempre estive atrás de recurso financeiro para não deixar as coisas morrerem, mas é muito penoso. Percebi que é preciso encontrar missões e entrar nas missões com os parceiros, assim fica mais fácil”.

Apesar disso, ele sabe que algumas coisas não mudarão. “Nosso maior desafio hoje continua sendo o mesmo de três ou de dez anos atrás: encontrar investimentos”, afirma.

A Gastromotiva hoje está presente em países como México (através de um modelo de licenciamento da ONG no país), África do Sul (lá, faz consultoria e está capacitando um restaurante para transformá-lo em escola dentro da favela) e Argentina (lá, trabalha em cooperação com o Ministério da Educação e Esporte do país).

David também tem buscado, cada vez mais, projetar sua imagem em âmbito global: como um líder em gastronomia social, participa de reuniões, eventos e comitês sobre o tema no Fórum Econômico Mundial, junto de governos, da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), do World Food Program, e outras iniciativas que trabalham o tema. David fala:

“A gastronomia social é um movimento contra a fome, contra a exclusão, a favor do bem estar”

E prossegue: “Hoje, meu principal trabalho é fazer com que o tema ganhe projeção internacional. Não é uma missão da Gastromotiva, mas todo mundo indo atrás da mesma missão de mostrar que existem muitas necessidades no nosso planeta em que a gastronomia social faz sentido”. Só no Brasil, por exemplo, mais de 3,4 milhões de pessoas vivem em estado de insegurança alimentar (ou 1,7% da população), segundo o Banco de Alimentos.

No Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, em janeiro, ele foi um dos porta-vozes da causa, se reunindo com outros chefs (entre eles o inglês Jamie Oliver e o americano Sam Kass, consultor de políticas nutricionais da Casa Branca durante o governo Barack Obama) para cozinhar em prol da gastronomia social.

“Toda universidade no mundo precisa ter um módulo de gastronomia social com aplicação prática. Espero que, por meio de parcerias entre restaurante e fornecedores, governo e secretarias, somada à união de chefs, ela vire uma norma”, diz.

Ele acredita que isso pode dar às pessoas não apenas comida ou trabalho, mas dignidade. “A gastronomia social não pode virar um termo da moda. Ela precisa se tornar um movimento, uma norma, capaz de nos mostrar que há muitas necessidades aí fora, para as quais nosso trabalho fará cada vez mais sentido”. Que fome boa de se ter.

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