“Prove este abacaxi, aposto que você nunca experimentou nada parecido no Sul”. É assim, com a fala mansa de quem sabe o que diz, que Neurilene Cruz, ou Miskui, seu nome na etnia Kambeba, oferece uma explosão de sabores e experiências no seu restaurante, o Sumimi, que fica às margens do Rio Cuieiras, a 60 quilômetros de Manaus, na comunidade indígena “Três Unidos”.
A líder indígena é também uma mulher de negócios. Casou-se cedo, aos 14 anos de idade. Hoje, aos 38 anos, tem três filhos e três netos. Ela precisou enfrentar toda uma estrutura patriarcal para sair da aldeia, estudar, e aproveitar uma oportunidade que apareceu há 10 anos, em um projeto da Fundação Amazônia Sustentável (FAS). Durante a construção de uma escola na comunidade, ela foi convidada a montar um pequeno refeitório para os trabalhadores e turistas.
“O arquiteto me disse: ‘Você ainda vai ser uma grande empresária’. E eu respondi: Se o senhor me ajudar, eu topo'”.
Neurilene chamou outras mulheres indígenas e assim começaram um empreendimento que está mudando a realidade da região. Conforme o restaurante crescia, Neurilene usava o dinheiro para estudar – ela se formou como técnica em enfermagem – e investir em melhorias para o estabelecimento. Hoje o Sumimi tem capacidade para atender 100 pessoas. Além de promover a gastronomia ancestral, com peixes pescados na hora e frutas colhidas no pé, Neurilene Cruz também recepciona turistas que visitam o local e dá aulas de culinária indígena – ajudando outras mulheres a se tornarem independentes.
A seguir, ela conta de que forma a comida pode proporcionar uma conscientização da cultura indígena, a quebra de preconceitos, como sua família fugiu da fome e do abandono, a importância das mulheres lutarem pelos seus sonhos, e a principal lição: perseverança.
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Sumimi, na nossa língua Kambeba, quer dizer Japiim, uma espécie de pássaro. Ele é muito inteligente, imita o canto de outros pássaros, e faz o ninho lá na copa das árvores. Ele é um empreendedor, que trabalha, inova, mas tem para onde voltar. Quisemos mostrar a capacidade de inovação e reinvenção do negócio, sem esquecer nossas origens. Não podemos deixar perder aquilo que é nosso.
Não. Meu pai que fundou esta comunidade em que vivemos hoje. O povo Kambeva é do rio Solimões – tivemos que migrar em busca de saúde e educação. Tive uma irmã que faleceu aos 4 anos de idade por falta de assistência. Então fomos para Manaus, onde, em tese, seria mais fácil encontrar trabalho. Minha família passou muita dificuldade, não havia moradia, nem emprego. Até que o primo da minha mãe ofereceu um terreno que não usava mais, em Três Unidos, uma área linda de praia. Mas não tinha nada lá. Só uma casinha de palha. Meu pai buscou a gente na cidade. E começamos a vida aqui, em novembro de 1991. O pessoal da etnia foi chegando, e assim se formou nossa aldeia.
A Fundação Amazônia Sustentável (FAS) decidiu fazer uma obra na nossa comunidade. Era um núcleo de sustentabilidade que daria apoio a diversos empreendimentos na região. Também contaria com uma escola para oferecer estudo para quem quisesse. O arquiteto olhou para mim e disse: ‘Você será uma grande empresária. Vamos trazer muitas pessoas para cá e essas pessoas vão precisar comer, tomar café da manhã etc’. Ele montou uma mini cozinha pra mim, em 2009. Eu convidei 10 cozinheiras e assim a gente fornecia alimentos para a obra. O arquiteto foi me ensinando como investir, como trabalhar. Com o tempo, tive um bom lucro para aumentar a cozinha, o restaurante, e ainda paguei o meu curso de técnica em enfermagem. Ganhamos prêmio, aumentamos o restaurante, e hoje temos capacidade para 100 pessoas.
No início, meu principal desafio foi minha família.
O pai dos meus filhos não queria que eu trabalhasse. Mulher indígena tem que ficar em casa cuidando dos filhos e do marido. Só que a gente tem que mudar isso – não é porque é cultural que está certo.
Temos ainda muitas dificuldades com infraestrutura. Nosso desafio é a energia elétrica – trabalhamos com gerador. Temos placas solares, mas que não funcionam sem sol – e aí não tenho como carregar as baterias. Ontem o governador do Estado foi almoçar com a gente e me prometeu colocar lá um painel solar mais potente. Por isso só trabalhamos com reservas, com antecedência.
De jeito nenhum! A pesca e a caça que usamos – tudo é pego na hora. Preciso de diversas qualidades de peixe. Por isso preciso de um tempo para pescar. Meu pai pesca, meu sobrinho também. Tenho pessoas da comunidade que me trazem as frutas, pegam o cupuaçu, por exemplo. Tem que estar fresco, tem que ser do mesmo dia.
Servimos os pratos de acordo com os rituais da nossa etnia. É importante lembrar que não é porque somos indígenas que comemos de qualquer jeito.
Um dos pratos mais pedidos é o Fani, receita Kambeba feita com macaxeira e pirarucu, onde é cozido na folha de bananeira. Sirvo também o tambaqui, o segundo maior peixe da Amazônia, a moqueca amazônica, o creme de cupuaçu, o mousse. Coloco o nosso abacaxi para os turistas verem a diferença – não é azedo.
Eu recebo no restaurante muitos empresários importantes de São Paulo, Rio de Janeiro e outros Estados. Eles me veem trabalhando e ficam surpresos porque temos a casa cheia todos os dias. Eu acredito primeiro em parcerias: nada a gente faz sozinha. Um pesca, outro traz as frutas, outro descasca, outro cozinha. Sem contar que retiramos tudo de forma sustentável.
Meu avô já criou a gente assim: somos os protetores da floresta. Não podemos acabar com quem nos dá a vida, nos dá o sustento. Damos oportunidade para que cresça ainda mais. Tudo aqui é manejado. Se tiramos 5 frutos, deixamos outros 5 pra produzir. Sempre trabalhamos desta forma, não é nada novo para nós.
E tem o que eu costumo dizer: somos persistentes. Não desistimos tão facilmente. Isso vale para os negócios: obstáculos vão aparecer o tempo todo. Nós enfrentamos muitos, desde madeireiros, pessoas que não queriam a nossa presença. E estamos aqui.
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