“Empreender é criar soluções para problemas causados por nosso próprio estilo de vida e falta de civismo”

Bruno Silvestre - 12 jul 2019
Bruno Silvestre e Beatriz Marcelino, fundadores da REVIVA.
Bruno Silvestre - 12 jul 2019
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Estamos hoje reunidos e pensando em tudo o que já vivemos nesses oito anos de amizade. Juntos, eu e Beatriz Marcelino fidelizamos em nossos corações um propósito que orienta toda a nossa energia: mudar o mundo das pessoas, dando oportunidades de inclusão e superação e transformando suas realidades com educação e dignidade.

Nos conhecemos de forma bem improvável numa festa de bairro, em 2011, em São Bernardo, no ABC Paulista. Havia marcado com alguns amigos e todos faltaram. A Bia, na época, com 14 anos (dois mais nova do que eu), me chamou para não ficar sozinho no evento e assim começamos a nos falar e nunca mais paramos. 

Acho que quando as coisas são para acontecer, não existe força que possa impedir de se concretizar e em pouco tempo nos tornamos irmãos.

Sentamos um dia no chão e planejamos o que queríamos ser quando crescer. Éramos jovens e dentre nosso desejos estava abrir uma organização social.

A paixão da Bia pulsava pela África desde pequena e ela tinha determinação suficiente, mesmo nova, para olhar nos olhos de qualquer pessoa e falar que um dia trabalharia naquele lugar

Se eu pudesse expressar em uma palavra aquilo que sinto por essa conexão é gratidão. Gratidão por ter permitido a nossa aproximação e também por nunca ter desistido de acreditar nos sonhos que ela me fez sonhar junto. 

Aquela conversa no chão era apenas o início de uma caminhada que nos faria amadurecer rapidamente e explica a maneira de nos relacionarmos com tudo, revelando nosso sentido de viver, mesmo com pouca idade.

Um dia estávamos juntos e ela disse: “Para que esperar, vamos abrir a REVIVA!” Não poderia dizer não para algo que alegrava todas as nossas conversas e que aquecia o meu coração. Se juntos a gente chega mais longe, a minha única resposta só poderia ser o sim mais lindo da minha vida.

Juntamos todos os amigos mais próximos, Camila, Alexandre e Zizi (os pais e a avó da Bia, respectivamente), que foram nossas bases e acreditaram naquilo que era só uma ideia.

Foram meses levando marmita para moradores de rua e participando de atividades com esse público, até que, em 2013, Bia fez sua primeira viagem para a África sozinha com uma equipe que realiza esse tipo de trabalho.

A cidade era Nampula, em Moçambique, e foi um dos momentos mais difíceis para nós: fizemos rifas, a Bia vendeu tortas (ela tem um talento especial com doces!), produzimos camisetas para tornar esse sonho realidade.

Deu tudo certo. No embarque, apenas uma certeza: nas malas que ela levaria, mudaria a vida de todos nós para sempre. Das malas que voltaram vazias, pois ela deixou tudo lá, ela relembra:

“Deixei minhas mazelas, a superficialidade que me cobriu. Eu me encontrei na miséria mais profunda, descobri que o meu contentamento está no viver simples e comunitário. Nós precisávamos trabalhar em Moçambique e aquelas pessoas precisavam de alguém que descartasse a dó, mas acreditasse que o afeto é revolucionário, que somos criadores de oportunidade para a autonomia e transformação.”

Ela não poderia ignorar o que viveu e nem nós. Foi assim que em 2014 aconteceu a primeira expedição de ajuda humanitária da REVIVA, que através de um financiamento coletivo tornou-se realidade. Neste mesmo ano ocorreu a sua abertura oficial como organização sem fins lucrativos.

Durante essa visita, fizemos uma grande pesquisa de campo com intuito de entender mais profundamente em que área poderíamos atuar e qual era a maior necessidade. Achamos, então, nosso foco: água e educação.

Jair, um companheiro de Bia daquela primeira viagem, comentou sobre um equipamento de tratamento de água que fazia tudo através da energia solar e que o INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) havia produzido com o pesquisador responsável Roland Vetter.

Era a chance perfeita que tínhamos para ajudar a resolver uma dos problemas que mais matava em Moçambique: a água contaminada. Não tínhamos dinheiro, eu estava desempregado, na minha conta tinha exatos 142 reais e a empresa da família da Bia tinha falido. Como poderíamos ir até a Amazônia conhecer esse equipamento?

Eu nunca fui de aceitar as condições em que estamos, pois acredito que tudo muda o tempo todo e a Bia tem o mesmo perfil — até mais intenso que o meu. Em uma sexta-feira nas minhas pesquisas esperançosas por passagens, encontrei uma promoção inacreditável. Parece que o universo preparou isso justamente para nós: Manaus ida e volta para duas pessoas por 600 reais. Liguei para o meu pai, pedi o cartão emprestado e parcelamos as passagens em dez vezes.

Viajamos e fomos até o INPA conhecer o equipamento que mudaria nossas vidas para sempre. Ficamos em um hostel que custava 19 reais a diária com café da manhã (imaginem um lugar com esse preço em Manaus!). Nossa motivação era tão grande que nem ligamos para as condições e o café do hostel serviu como nosso almoço durante quatro dias (sim, nós levávamos o café para comer no almoço). 

Sem dinheiro para o ônibus, andamos 21 quilômetros para chegar e voltar da empresa que produzia a tal máquina e saímos de lá muito decepcionados, pois não tínhamos os 20 mil reais que eles pediram

O que parecia ser a viagem do “não” foi o que viabilizou a instalação do primeiro equipamento brasileiro fora do país. O Roland ligou dias depois do nosso retorno e disse que nos venderia cada um por 5 mil reais.

A primeira empresa que nos chamou para palestrar foi a Barry Callebaut, que nos encontrou por meio de uma pesquisa no Google e entrou em contato com um convite para participarmos de uma sabatina sobre a importância da água. O acesso a essa organização e o relacionamento que criamos lá dentro nos deram a oportunidade de conseguirmos comprar dois purificadores de água para Moçambique. Bia conta como voltou depois a Manaus com a ajuda de seus familiares:

“Um dia e meio depois da minha chegada, recebi uma mensagem da Barry de que um incêndio fez com que perdessem tudo na fábrica da Bahia e com isso teriam que cortar o patrocínio dos purificadores. Minha experiência em campo humanitário era pouca, mas a criação que os meus pais me deram sempre foi de compreender e tolerar. Uma paz me sobreveio. Entrei na sala do Roland em silêncio, nem sabia por onde começar, mas não precisei. Ele olhou nos meus olhos e disse: ‘Não sei o porquê, mas estou sentindo que preciso te entregar os purificadores sem custo algum’. Impressionante! Voltei para São Paulo e só então contei para o Bruno e todo mundo que no fim paguei um excesso de bagagem de 73 reais.”

Na segunda edição da Expedição Humanitária da REVIVA, conseguimos duas pessoas inscritas e foi ótimo, pois ocorreu a instalação do equipamento de tratamento de água em 2015, mesmo ano em que o governo de Moçambique concedeu 50 mil metros de terras para que a gente realizasse nosso trabalho.

Crianças da escola criada por Bruno e Bia em Moçambique.

Tínhamos muito pela frente e na terceira Expedição de Ajuda Humanitária, já com um grupo de 14 pessoas e muitos voluntários que acreditavam no nosso propósito, Regina e sua família patrocinaram a indenização das pessoas que plantavam nessas terras cedidas. (Regina é uma das nossas primeiras voluntárias; em Moçambique, é comum as pessoas serem donas de pés de caju, então para começar a construção do complexo da REVIVA achamos que era justo indenizá-las. Assim, ela e seus familiares nos doaram o dinheiro necessário).

Ser uma organização sem fins lucrativos é doloroso, pois o desgaste de conseguir recursos é uma guerra diária para não perdermos a esperança.

Então começamos um trabalho através do LinkedIn para conseguir algumas reuniões que fossem importantes para desenvolver a REVIVA.

Em alguns meses, sentamos com consulados europeus e norte-americanos, e falamos com diversos CEOS das maiores empresas do Brasil, dentre eles o Luis Rezende, da Volvo Cars Brasil, que nos deu outra percepção sobre a vida executiva que nos motivou ainda mais a seguir nossa caminhada além da África.

A Volvo patrocinou a REVIVA em uma expedição criada para levar ajuda humanitária para Mariana, após o rompimento da barragem [da Samarco, em novembro de 2015], e trabalhar com eles nos trouxe amadurecimento e responsabilidades. Saímos em expedição e rodamos nosso primeiro documentário, o Expedição Amariana, com uma produtora. O filme relata a destruição causada pelo crime ambiental e confronta histórias de pessoas que foram diretamente atingidas.

No ano seguinte, 2017, em nossas tentativa de independência financeira e de seguir ajudando as vítimas de Mariana, criamos o Reviva Festival, um festival de música autoral em São Bernardo.

Foram mais de 1 milhão de pessoas alcançadas com a divulgação pela Rádio 89, jornal Metrô de SP e emissoras de TV. Entre os artistas que iriam cantar estavam Jão, Ana Cañas e Rodrigo Alarcon. No sábado de 1º de julho, o termômetro marcava 14 graus e havia pancadas de chuva, o que fez com que muita gente não saísse de casa. Tivemos que pegar um empréstimo no nome da vó Zizi para cobrir os prejuízos.

Parece que quando a gente achava que as coisas iam acontecer, tudo dava errado. Lidar com expectativas e frustrações era o que a vida estava nos ensinando

Naquele mesmo ano, um parceiro (R.Rubio, montadora de estandes para feiras e convenções) nos apresentou a administração do shopping Golden Square Shopping, em São Bernardo, com a intenção de vendermos em uma loja física nossas camisetas, com frases inspiracionais, e fotografias humanitárias produzidas durante as expedições. A oportunidade aumentou nosso horizonte. 

As vendas desses produtos já aconteciam pelo nosso Instagram e também no Mercado Manual, projeto de apoio ao pequeno produtor que utiliza o Museu da Casa Brasileira para fomentar e fortalecer esse consumo. As meninas do Mercado Manual nos apoiaram quando tínhamos apenas três estampas de camiseta e quadros de fotografias.  

Roupas da marca Voz, com tecidos africanos.

Conseguimos o espaço para vender as peças e logo veio a ideia de trazer tecidos africanos para criar modelos diferenciados e disseminar a cultura local.

Em menos de um ano, já tínhamos uma marca intitulada Voz, um espaço maior no shopping e através desse lucro conseguimos construir uma escola em Moçambique e consolidar a nossa atuação no Brasil, em Jardim Gramacho [bairro de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense], que já foi o maior lixão a céu aberto da América Latina.

Lá, com uma escola comunitária, levamos educação, água potável e refeições diárias para crianças de 3 até 6 anos. Além disso, com os adolescentes fazemos oficinas e vamos inaugurar em breve a sala de informática.

Em 2018, conseguimos abrir a Casa Reviva. Tivemos que lidar com vários “nãos” novamente, pois sem fiador era difícil abrir um espaço em Pinheiros, na zona oeste da capital paulista.

A casa, inaugurada em dezembro, é um dos locais mais aconchegantes do bairro. Funciona como um coletivo de mais de 50 marcas conscientes, de várias regiões do Brasil (todas as vendas são revertidas em água potável e educação). Além disso, serve brunchs, tem um armazém de mais de 20 segmentos de produtos de pequenos produtores e acolhe reuniões, bate-papos, oficinas, terapia, yoga e eventos. E o melhor: transpira a compaixão humana.

Bia ensinou uma coisa para todos nós: quando há o objetivo de transformar a vida das pessoas, o NÃO se torna só mais um canalizador para continuarmos lutando

Já imaginou se tivéssemos parado lá atrás, quando deu tudo errado em Manaus? Certamente não teríamos fechado o ano de 2018 com esses números: mais de 30 mil refeições, 15 mil litros de água por dia, mais de 2 200 horas de aula e cerca de 2 mil atendimentos médicos e odontológicos oferecidos em todas as nossas ações nesses quatro anos.

Não teríamos conseguido a concessão para administrar uma fábrica de processamento de mandioca do governo de Moçambique e que hoje é comandada apenas por mulheres em uma sociedade extremamente patriarcal.

Se a gente não tivesse seguido em frente, a Bia não teria o prazer de adotar, com 23 anos de idade, duas crianças que precisam demais dela.

Empreender para a gente é uma palavra distante e nós não nos familiarizamos com ela, porque viver pelo propósito é nosso estilo de vida

Empreender é criar soluções para resolver problemas que são causados por nosso próprio estilo de vida e falta de civismo. É trazer dignidade através da autonomia para todas as pessoas atendidas e assistidas por nós.

Costumo dizer que estamos apenas no começo e que a prioridade de todo mundo que trabalha com a gente não é o sucesso pessoal e sim quantas vidas e quantos mundos vamos transformar. Quantas crianças terão a oportunidade de aprender, se desenvolver, chegar na universidade e poder contar a sua história de superação. 

As pessoas precisam entender o real significado da palavra “empreendedor” e começar a pensar nas deficiências do nosso sistema para corrigi-lo

Em nossas reuniões de resultados, somos bem diferentes do resto do mercado — ainda bem! A gente discute quantas crianças a mais a gente consegue colocar para estudar. Quanto a gente precisa vender para gerar mais água potável e qual meta precisamos bater para fazer as melhorias necessárias nas escolas.  

As expedições humanitárias da REVIVA em Moçambique acontecem todo mês de outubro desde 2014. A próxima será dia 20 e temos inscrições abertas. Todos os anos levamos mais de 1,5 toneladas de doações para as cidades que visitamos. São em média 25 voluntários que nos ajudam a acelerar os projetos em nossas atuações.

E para finalizar, quero deixar a primeira poesia que a Bia escreveu e que está estampada em uma camiseta, um dos nossos produtos mais vendidos: “Basta ser gente para outra gente.” 

 

Bruno Silvestre, 26, tem experiência em Marketing e Comunicação. Fundou a REVIVA e participou do processo de estruturação da marca e dos negócios que mantêm o funcionamento independente do ecossistema da organização. 

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