Nasci em Ipatinga, no interior de Minas Gerais. Com pouco mais de 6 anos, já trabalhava lavando copos em um bar. Dos 9 aos 17, trabalhei vendendo ração de cachorro e gato em uma casa agropecuária.
Comecei a crescer em relação a aspectos de diversidade e inclusão no período de um ano em que morei dentro da Educafro, organização que busca promover a inclusão da população negra (em especial) e pobre (em geral), nas universidades públicas e particulares com bolsa de estudo.
Também trabalhei lá como voluntário integral entre 2016 e 2017. No último ano, atuo exatamente com esse tópico no Imaginable Futures, um fundo filantrópico de uma família branca que direciona os recursos para promover equidade racial na educação brasileira.
A primeira memória de racismo que sofri foi no auge dos meus 5 anos, na escolinha do bairro, quando pintei o desenho de um ser humano de marrom e meus colegas disseram que estava errado: “tinha que ser rosa”.
Experiência difícil… Ainda assim, nada comparável aos casos estarrecedores que vemos diariamente.
Apesar de a violência racial ser uma infeliz rotina no Brasil, a pauta ganhou visibilidade nos meios tradicionais de comunicação nos últimos tempos com um caso vindo de fora: o assassinato do americano George Floyd por um policial, há dois anos (completados exatamente nesta semana)
O caso foi considerado por muitos a gota d’água e desencadeou uma série de protestos dentro e fora das redes sociais em todo o mundo, ajudando a dar visibilidade à discussão sobre racismo.
Antes disso, o assunto já pipocava aqui e ali quando a crueldade beirava limites suportáveis, como os casos de Kethellen, de apenas 5 anos, morta em 2019 a caminho da escola em uma operação policial no Rio, ou João Pedro, de 14, baleado meses depois dentro de sua casa na mesma cidade, pela mesma polícia.
Isso para citar apenas dois casos. Foram 86 crianças de 0 a 14 anos mortas por bala perdida entre 2007 e 2021 no Rio de Janeiro em um levantamento da organização Rio de Paz
De acordo com relatório do Instituto Fogo Cruzado, em 2019 (último ano escolar presencial antes da pandemia), 32% dos tiroteios aconteceram no entorno de escolas na “cidade maravilhosa” e na região metropolitana.
No meio de tanta dor, o branco, às vezes, se pergunta como combater essa violência, que tanto atinge quem tem uma cor diferente da sua.
O último estudo Síntese de Indicadores Sociais do IBGE mostra que a pobreza no país cresceu em 2020 e que as taxas entre pretos e pardos são mais que o dobro das observadas para brancos.
Enquanto 38,4% das pessoas na linha da pobreza definida pelo Banco Mundial se declaram negros, 18,6% são brancos.
Com a comoção global causada pela onda de protestos contra a violência racial de 2020, a luta antirracista finalmente ganhou tração
Na ocasião, algumas pessoas brancas questionaram mais profundamente o seu papel e a melhor forma de apoiar um movimento do qual não são protagonistas.
O assunto não é exatamente uma novidade. Referências negras já falam disso há anos.
A professora Dra. Cida Bento, ainda em 2002, defendeu a tese “Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público” e, em março deste ano, publicou o livro O pacto da branquitude, pela editora Companhia das Letras.
A mesma editora lançou em 2019 o livro Pequeno Manual Antirracista, de Djamila Ribeiro, que é outro ótimo exemplo.
Referências internacionais também já tinham deixado sua colaboração para a discussão. Enquanto estavam presos injustamente por estarem à frente da luta antirracista, dois grandes líderes negros escreveram sobre essa questão
O primeiro, o americano Martin Luther King Jr., escreveu a Carta da Cadeia de Birmingham durante sua prisão em 1963.
Nela, argumenta que a luta antirracista é urgente e que “a liberdade nunca é voluntariamente dada pelo opressor; precisa ser exigida pelo oprimido”.
O outro foi Nelson Mandela, que ficou 27 anos na prisão durante o regime do apartheid na África do Sul e, após sua liberação, em 1990, se tornou presidente do país.
A coleção de suas cartas escritas no cárcere se tornou um livro publicado em 2018 pela editora Todavia. Tanto King como Mandela foram premiados com o Nobel da Paz — o primeiro em 1964 e o segundo, em 1993.
Por uma série de motivos, poucas pessoas se debruçavam sobre esses livros e foi nesse contexto que resolvi dar a minha contribuição criando o Diário Antirracista, um canal no YouTube com uma série de vídeos curtos que compõem uma jornada imersiva de 30 dias pelo tema.
A coragem necessária para abordar um assunto de tal importância é enorme. Como fazer com que pessoas brancas, que não são vistas como racializadas, embarquem nessa reflexão?
Para buscar essa resposta, me inspirei na formação de lideranças jovens Guerreiros sem Armas (GSA), realizada pelo Instituto Elos.
Uma das coisas que aprendi no GSA, em 2017, aos 21 anos, foi a importância de fazer convites irresistíveis, que sejam fáceis para as pessoas toparem e que, de alguma forma, tratem de algo que é importante para elas
Por isso, senti que que aquele era um momento interessante para encaixar um chamado a participar de uma jornada de aprendizagem.
Foi assim que consegui chegar a 5 mil inscritos em 48 horas após a divulgação do Diário. Com uma semana de divulgação, chegamos a cerca de 10 mil inscritos.
Entretanto, acompanhando a média de conversão da maioria dos cursos online, cerca de 75% efetivamente iniciaram o curso, 10% chegaram até a metade e só 5% até o trigésimo dia.
Ainda assim, é interessante perceber como tivemos pelo menos 500 pessoas formadas e altamente engajadas nos conteúdos até o final.
A duração da jornada também foi baseada na metodologia do GSA, que é a de fazer as pessoas passarem por uma experiência (e não apenas entregar referências técnicas).
Às vezes, mandar um livro, um texto, não resolve. As pessoas precisam praticar. No Diário Antirracista proponho lições para serem realizadas de fato num caderno e nas relações do dia a dia, em qualquer ambiente
Ao longo dos 30 dias, o primeiro e principal desafio proposto é o de fazer um diário físico, ou seja, escolher um caderno e registrar dia após dia seu processo, suas percepções e seus aprendizados.
A cada vídeo, uma ou duas missões são propostas. A maioria delas é de reflexão: escrever sobre a razão pela qual decidiu participar, quais expressões racistas costuma usa e por quais outras expressões elas podem ser trocadas, quais dados sobre o racismo te marcaram, te assustaram e te surpreenderam mais.
Diversas dicas de leitura, pesquisas, vídeos e influenciadores negros para seguir também são sugeridas e fazem parte do processo.
Os temas passam por muitos aspectos do racismo: lugar de fala, interseccionalidades, colorismo, racismo ambiental, recreativo, obstétrico, na política, na publicidade, no mercado de trabalho, na ciência e até sobre o papel da comunidade asiática na luta negra.
Nunca imaginei que um dia eu seria facilitador de uma transformação tão importante na vida de tanta gente.
A formação GSA, baseada em uma tecnologia social criada pelo Instituto Elos, mudou o meu modelo mental.
Eu saí do “nós e eles”, onde existem inimigos, e parti para um lugar menos baseado em separação e mais ancorado na união e na integração
É uma forma de olhar o mundo em que me reconheço mais nas outras pessoas e vejo mais delas em mim. Isso muda muita coisa.
Foi assim que meu propósito de vida se tornou o de reduzir as desigualdades do país. Como ativista da causa, luto para construir um futuro em que a expectativa de vida não esteja relacionada à cor da sua pele.
A dinâmica de criar empresas e ganhar dinheiro é um problema que muita gente já resolveu. Existe uma receita e já conhecemos os caminhos.
O que nós ainda não aprendemos a resolver são os desafios sociais que demandam uma organização global.
Não aprendemos a trabalhar coletivamente no meio do caos do século 21 nem a construir estratégias compartilhadas entre diferentes organizações… Nem a lidar com nossos traumas individuais e coletivos
Temos uma infinidade de repertório social enquanto humanidade para endereçar.
Envolver e engajar todos os agentes da sociedade na luta racial é um desses desafios que continuam em voga — e a branquitude não pode ser excluída desse conjunto.
Seu papel de reflexão, mudança e tomada de partido são essenciais para mover mais um pouco o ponteiro contra o racismo.
Enquanto seguirmos vendo notícias sobre a desigualdade racial, o Diário Antirracista e outras iniciativas de reflexão ainda serão tão relevantes.
Quando encontro pessoas que estão tentando resolver problemas parecidos, me encorajo a continuar.
Samuel Emílio é ativista pela educação e negritude, criador do Diário Antirracista, ex-coordenador do Movimento Acredito, Educafro e outras iniciativas. Trabalha hoje na organização internacional Imaginable Futures.
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