O edifício de seis andares passa despercebido, espremido entre outros prédios da Rua Dona Maria Paula, na República. É preciso seguir a numeração até o 96; uma pequena mercearia funciona junto ao térreo. O portão pesado é destravado após o toque do interfone (não há porteiro); uma escada dá acesso ao segundo andar. É ali que um apartamento de aproximadamente 220 m² abriga o Projeto Marieta, um espaço cultural escondido no centrão de São Paulo.
Trata-se de um projeto em família. A proprietária do imóvel é a avó dos cineastas Helena Romano Guerra, 30, e Caio, 26, sócios na Irmãos Guerra Filmes , que estão à frente do Marieta junto ao gestor cultural Giovanni Pirelli, 30, companheiro de Helena. Os apoiadores da iniciativa são os pais dos cineastas, o casal de arquitetos Abílio Guerra, 60, e Silvana Romano Santos, 59, donos da Romano Guerra Editora e editores do Vitruvius, portal sobre arquitetura e urbanismo.
“Nenhum de nós é formado em Economia ou Administração. Foi tudo na base do entusiasmo e da vontade de fazer”, diz Giovanni, italiano radicado há cinco anos no Brasil.
Embora sem letreiro na fachada, o prédio, erguido em 1939, leva o nome da mesma Marieta que batiza o centro cultural — e que, não por acaso, era a tataravó de Helena e Caio. O marido dela foi o arquiteto responsável pelo projeto do edifício, que mantinha ocupação residencial até os anos 1990 (hoje, é todo comercial).
UMA RESIDÊNCIA ARTÍSTICA SERVIU COMO O EMBRIÃO DO PROJETO
Até 2013, Giovanni vivia em Milão, onde organizava saraus e exposições em um centro cultural, cursava Letras e trabalhava para a edição italiana da Vice. Até que, por questões pessoais, resolver largar o curso e se afastar da cidade. Aproveitou que tinha dois meses de férias, conseguiu uma passagem barata e veio passar um tempo no Brasil, onde tinha vivido um tempo na infância.
“Quando cheguei [em São Paulo] foi um impacto muito, muito forte. Lembranças que eu havia ‘engavetado’ voltaram à minha memória e senti um chamado, como se uma parte de mim que estava dormindo tivesse acordado de vez”
Ele retornou a Milão em novembro daquele ano, pediu demissão, organizou suas coisas e, em fevereiro de 2014, voltou a São Paulo, agora de vez. Instalou-se numa casa em Pinheiros, na Zona Oeste, com mais oito pessoas, entre músicos, dançarinos e pesquisadores. “A gente morava no andar de cima e a ideia era sustentar nossa vida com o trabalho em uma galeria que ficava no andar de baixo.”
Batizada de Casa do Cactus, a “residência artística” acabou não vingando, mas foi assim que Giovanni conheceu Helena. A cineasta filmava clipes de bandas que se apresentavam no espaço. Depois de um beijo numa festa, os dois ainda demoraram a engatar o romance, mas Helena começou a colaborar em projetos de alguns dos residentes da casa, o relacionamento foi ficando mais sério e por fim Giovanni se aproximou e foi acolhido pelo resto da família — Caio, Silvana e Abílio.
ANTES DE COLOCAR O PROJETO DE PÉ, FOI PRECISO REFORMAR O APÊ
A Marieta de certa forma dá continuidade à missão da finada Casa do Cactus. Em 2015, o apartamento estava desocupado havia mais de um ano — e precisando de uma boa reforma. O primeiro plano foi criar ali um escritório para acolher a consultoria de cultura com que Giovanni trabalhava e a produtora dos irmãos, fundada em 2012.
Porém, prevaleceu a ideia de abrir as portas ao público para se produzir, discutir e fomentar cultura em meio aos espaçosos cômodos, com janelonas de vidro. O “dia zero” dessa mudança há quase quatro anos, em 15 de agosto: naquele sábado, uma intensa programação gratuita marcou a abertura do projeto, com direito a debate e documentário sobre arquitetura, show de samba-rock e passeio guiado no Centro.
Dado o pontapé inicial, o passo seguinte era restaurar o imóvel:
“Fizemos uma reforma que durou um mês, tudo com nossas mãos: pintamos o apartamento, reformamos janelas e sistema elétrico, compramos equipamentos como trilhos de iluminação, mobiliário, alarme…”
Os sócios estimam ter investido R$ 35 mil entre reforma e compra de equipamentos; além disso, à parte, cada um somou como pôde, trazendo de casa apetrechos que já tinha (projetores para exibição de filmes, por exemplo).
NAS NOITES DE TERÇA, O CINECLUBE AJUDA A DESTRAVAR OS DEBATES
Giovanni conta que, no começo, os horários do projeto eram “muito estranhos, porque todo mundo precisava fazer outras coisas”. A programação foi ganhando regularidade a partir de 2016, ano em que estreou o Cineclube, sessão gratuita de cinema pensada para difundir filmes e diretores de pouca circulação.
O filme é projetado na parede da sala, nas noites de terça. A pipoca é grátis. Na sequência tem cerveja (aí sim, paga, e em dinheiro) e debate com algum convidado. Entre os frequentadores, dos mais tímidos no canto do sofá aos mais despachados, esticados no pufe do chão, todos acabam participando e dividindo suas impressões:
“Todas as opiniões são ouvidas, mesmo quando enfrentamos temas como cultura do estupro, moradia social, homofobia e transfobia. Tem professor de cinema que acabou de falar alguma coisa erudita e, logo em seguida, alguém com uma vivência mais simples consegue se expressar sem sentir vergonha”
Em julho, por exemplo, a curadoria e o bate-papo pós-sessão ficaram a cargo da jornalista e documentarista Paula Sacchetta (diretora do filme-e-projeto Precisamos Falar do Assédio, de 2016). Entre os filmes pinçados por ele e exibidos naquele mês, havia Nostalgia da Luz (2010), do chileno Patricio Guzmán, e Edifício Master (2002), de Eduardo Coutinho.
OS CURSOS E AS RESIDÊNCIAS ARTÍSTICAS SÃO FONTES DE RECEITA
O espaço acomoda até 50 pessoas para as atividades culturais. O Cineclube ajuda a atrair público e serve de gancho para despertar o interesse pelos cursos do Marieta. Um deles, “A Jornada do Roteirista“, será ministrado por Caio entre setembro e outubro, num total de três módulos e 13 aulas (às segundas e quartas), cada uma com três horas de duração. Custa R$ 1 260, ou três parcelas de R$ 420.
Os cursos reúnem cerca de 30 alunos e custam, em geral, R$ 35 a hora/aula (no caso acima, cada hora de curso custa pouco mais de R$ 32). Segundo Giovanni, é um valor abaixo de outras iniciativas semelhantes, de modo a “aumentar a abrangência de um público que não é necessariamente branco e rico”.
O cunho social transparece na oferta de bolsas para 10% das vagas (o pré-requisito é enviar um currículo e uma carta de intenções); outra parte é destinada ao projeto É Nóis na Fita, curso gratuito de cinema dirigido a jovens de 15 a 20 anos. “A gente libera um número consolidado de oportunidades, sorteadas para o público deles, que inclui pessoas em situação de vulnerabilidade”, diz o sócio.
Outra fonte de receita é o aluguel de salas do apê para residências culturais. O site informa que nos últimos anos passaram por ali desde um “pintor ítalo-americano” que depois expôs no local as obras produzidas no período até uma produtora encarregada de elaborar uma série de TV sobre “projetos brasileiros de moradia social”. Para se candidatar, é preciso enviar uma carta com sinopse do projeto a ser desenvolvido, cronograma e proposta de retribuição pelo uso do espaço.
OS COLABORADORES SÃO VOLUNTÁRIOS — POR POUCO TEMPO, ESPERA-SE
Chegar a um plano de negócio satisfatório foi e é uma pedra no sapato. As fontes de renda começaram a ficar mais claras nos últimos meses, desde o fim de 2018, quando os sócios entenderam que o espaço poderia ter um equilíbrio econômico sem depender de financiamento público.
A receita hoje ainda gira em torno de R$ 7 500 por mês, destinada a pagar despesas básicas. Por enquanto, o time (quinze pessoas, entre curadores, assessoras de imprensa, designer…) é todo voluntário, mas a ideia é traçar uma estratégia para que em breve o trabalho seja remunerado. Recentemente, Giovanni se matriculou em um curso de Gestão Cultural no Sesc para fortalecer a viabilidade do negócio, pensando em como monetizar melhor as atividades.
Mesmo com as dificuldades, e num momento em que os “ventos políticos” têm acuado o setor cultural, o italiano surpreende pelo otimismo na fala e no olhar.
“A forma como as coisas estão caminhando é reflexo do que estamos herdando do passado. Mas nosso futuro será muito positivo”, acredita. “Você poder dizer que sobrevive da vontade das pessoas por cultura e conhecimento [é algo que] dá muita esperança sobre a vida em geral.”
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