Existe mesmo invisibilidade social? Ou é a gente que escolhe não olhar para as pessoas em situação de vulnerabilidade que atravessam o nosso caminho?
Foi para fazer as pessoas enxergarem, de verdade, o que veem – mas ignoram — que nasceu a SP Invisível. Desde 2014, a ONG ouve e dá destaque às histórias da população em situação de rua da capital paulista, publicando pequenos depoimentos em suas redes.
“Uma das grandes descobertas desde que a gente começou é a importância da atenção, de a gente escutar essas pessoas, dizer para elas que são importantes — e percebê-las como importantes”
Quem diz isso é André Soler, presidente da ONG, que fundou a organização após ele próprio passar a observar o que era invisível na cidade durante uma dinâmica na igreja que frequenta.
Além de trazer à luz a realidade dessas pessoas, a iniciativa tem outros três pilares: ações de combate à fome, ao frio e de capacitação e empregabilidade.
Até 2022, a ONG tinha compartilhado quase 2 mil histórias e atendido mais de 33 mil pessoas em 102 ações.
Formado em cinema, André conta que nasceu em uma família cristã. Desde pequeno frequenta a igreja batista e as atividades propostas pela congregação.
“Lá, sempre aprendi a importância de ajudar o próximo e participava de trabalhos voluntários, seja na igreja, em presídios, na Missão Sena ou em outras ações”
Ainda enquanto cursava a faculdade, André foi convidado a trabalhar como funcionário da igreja, cuidando da parte de produção de conteúdo.
Até que um dia, lembra, o pastor propôs que um grupo de adolescentes da igreja saísse às ruas no período de Natal e fotografasse tudo o que era invisível na cidade.
“Esse projeto já tinha o nome de SP Invisível lá dentro. E nesse registros dos jovens, além de fotos de idosos, prédios, lixo no chão, chegaram muitas imagens de pessoas em situação de rua”
A ideia era fazer um concurso interno com as fotos, mas o plano não foi para frente. No entanto, em 2014, André e Vinícius Lima, outro funcionário da igreja, decidiram ir mais a fundo, com um projeto independente — que manteve o nome do original.
“A gente saía para fotografar pessoas em situação de rua, ouvia suas histórias e depois postava um pedaço do relato nas redes junto com a foto.”
André conta que ele e Vinicius, que hoje não está mais no projeto, nunca enfrentaram barreiras para abordar a população em situação de rua.
“Nunca tivemos problemas, acho que isso é mais um preconceito social que existe de que as pessoas não são receptivas. Pelo contrário, elas sempre foram muito solícitas.”
O presidente da ONG conta que os dois faziam a ação dos registros porque queriam colocar seus talentos – o de André de fotografar e o do Vinicius, de escrever — à disposição de uma causa, conscientizando sobre a invisibilidade desse grupo.
“Mas a gente era muito cobrado, no sentido de perguntarem se ‘só’ fazíamos isso. Entendemos que o que fazíamos não era pouco, tinha muito impacto”
Algumas pessoas de fora, que acompanhavam a iniciativa, queriam que a dupla começasse a fazer doações. Para atender a essa demanda, o projeto, que veio a se transformar numa ONG, passou a realizar campanhas pontuais, como o Natal Invisível e o Inverno Invisível.
Além disso, três vezes por semana (nas terças, quartas e quintas-feiras) a SP Invisível sai às rua para distribuir refeições em pontos para além do centro expandido ou onde há menos visitas de ações assistenciais.
Tudo isso é possível com a ajuda dos voluntários. Hoje são 2 mil pessoas envolvidas; cerca de 60 participam semanalmente das entregas. Os interessados só precisam se registrar no site da ONG, onde recebem instruções do endereço da entrega, hora e data para comparecer.
Neste ano, o grupo irá atingir a marca de cerca de 50 mil refeições distribuídas e 100 mil itens de higiene doados, fora os agasalhos da própria ONG entregues no inverno.
Para captar relatos das pessoas em situação de rua, a equipe da SP Invisível, hoje composta por nove pessoas contratadas (além do fundador), sai em dias diferentes dos da entrega de refeições e de outros kits. E geralmente de dia, para capturar os vídeos e fotos com mais luminosidade.
Os depoimentos colhidos e postados nas redes sociais da SP Invisível trazem diversas histórias que explicam como as pessoas foram parar nas ruas. As razões variam: desde dependência química e desemprego até desentendimentos familiares.
Há depoimentos de gente que sonha em rever a família; outras contam sobre a dificuldade de conseguir comida e a dureza da fome, desabafam sobre o preconceito e compartilham as agruras de quem vive sem um teto pra chamar de seu.
Nos comentários dos posts, muitas pessoas se mostram emocionadas e enaltecem a iniciativa da ONG, mas há também posicionamentos (não só nas redes) de quem afirma que essas pessoas têm opções e preferem viver nesta condição.
“As pessoas aceitam a rua por falta de oportunidade. Eu costumo fazer a seguinte analogia: se você oferece a qualquer pessoa mudar para uma casa nova, ela vai querer saber quais as condições desta casa, se ela é melhor do que a que você vive hoje, por exemplo, antes de aceitar”, diz André. “Então, oportunidade é isso: é a gente dizer para a população de rua que existe um caminho melhor, um jeito de sair daquela condição.”
Neste sentido, de oferecer melhores condições e alternativas para as pessoas saírem das ruas, a SP Invisível iniciou no começo de 2023 a Jornada da Emancipação, programa desenvolvido com a FGV.
Para esta ação, explica André, são selecionadas pessoas em situação de rua que têm um perfil específico: estão em centros de acolhida, já têm algum tipo de vínculo com o local e possuem documentação:
“Após a seleção, elas passam por um curso de capacitação socioemocional com ênfase em gastronomia. Na parte socioemocional elas têm acompanhamento de uma psicóloga e de uma assistente social e todos os dias assistem a aulas de gastronomia”
A escolha da gastronomia não é por acaso: a área apresenta boa oportunidade de mercado e a chance de trazer um reconhecimento mais imediato ao aluno. “Eles cozinham e logo conseguem visualizar aquilo que fizeram”, diz André. “E isso traz um senso de merecimento rápido pra essa população, o que é positivo para a continuidade no desenvolvimento.” Após a formação, a SP Invisível ainda ajuda os participantes a se inserirem neste mercado.
Desde o início do programa foram realizadas três turmas, sendo que 45 pessoas passaram pelos cursos e nove foram empregadas, como Wériqy, que agora integra a equipe do restaurante nou, no Baixo Pinheiros, zona oeste de São Paulo. A meta para 2024 é chegar a 100 participantes — e mais gente contratada.
Em março de 2023, quando realizaram shows em São Paulo, os músicos britânicos do Coldplay, por intermédio da SP Invisível, convidaram quatro pessoas em situação de rua para assistir à apresentação.
A iniciativa faz parte de ações pontuais de conscientização social e de reinserção dessa população na sociedade através da cultura. “O primeiro objetivo é ter um ativismo social de dizer assim: olha, essas pessoas podem estar nestes lugares, a gente não pode criar barreiras para isso… desde permitir que elas frequentem um shopping até assistir a um show.”
O segundo objetivo, afirma o presidente da ONG, é oferecer acesso à cultura, impactando outras áreas da vida.
“Quando a gente coloca a população de rua em contato com a cultura e essa pessoa é um usuária de droga, isso diminui o tempo de uso dela, por exemplo”
Outras ações nesta frente foram levar um grupo de mulheres trans do albergue Florescer para assistir ao filme Barbie e realizar uma visita ao zoológico com parte dos alunos da Jornada da Emancipação.
“Esse momentos são um choque de autoestima para essas pessoas, pois a gente eleva muito o senso de pertencimento delas.”
Apesar de ser uma bem conhecida, André diz que, assim como a maioria das ONGs, a SP Invisível enfrenta desafios na captação de doações.
“Saiu uma pesquisa do IDIS dizendo que 10% dos que doam no Brasil destinam recursos para pessoas em situação de rua. A causa recebe pouca doação, ainda é muito marginalizada. Então, esse ainda é um desafio.”
Hoje, a maioria das doações da SP Invisível vem de pessoas físicas, mas a ONG também conta com o apoio de empresas e grupos parceiros, como o próprio Coldplay, a Food to Save, a Gafisa e a Colgate-Palmolive. Sobre a cultura de doação no Brasil, André comenta:
“Eu tenho pra mim como princípio que uma pessoa de sucesso é aquela que doa proporcionalmente ao quanto ela ganha. Quem só ganha e não doa é um parasita”
É justamente a partir das doações que a ONG consegue fazer ações como a do Natal Invisível, que começou em novembro, com a distribuição de refeições, água, sobremesa e kits de higiene. A meta para 2023 é atender 5 mil pessoas.
Além disso, como parte das comemorações natalinas, a SP Invisível realiza ceias para a população de rua. (Para custear uma ceia, a ONG pede 160 reais. É possível doar aqui).
Em 2023 serão sete edições, sempre às terças e quintas-feiras até dia 23 de dezembro. A primeira ocorreu no dia 5, na área do Teatro de Contêiner, região da Cracolândia. O espaço foi decorado, mesas foram montadas e os convidados puderam desfrutar de um jantar especial.
“Estes encontros serão um momento de alegria e de dignidade, levando pra eles um pouco do espírito natalino”
Em 2024, afirma o presidente da ONG, a meta será distribuir mais refeições, aumentar o número de pessoas atendidas na Jornada da Emancipação, desenvolver novos programas de impacto social e lançar um relatório sobre a população em situação de rua.
Para quem tem o desejo de ajudar já, mas não sabe como, e quer aproveitar este finalzinho de 2023 para começar a fazer a diferença — independente da causa –, André dá um conselho:
“Eu acredito que cada um pode fazer um pouco onde está. Então, olhe o seu redor, veja quem está precisando de você, principalmente se você é alguém privilegiado. Doe seu dinheiro, seu tempo, sua energia. Só não termine o ano sem doar nada a ninguém.”
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