Não são poucas as sacadas geniais que a natureza oferece diariamente ao ser humano. Foi inspirado no bico do martim-pescador, por exemplo, que o Japão conseguiu reduzir significativamente o barulho e aumentar a eficiência aerodinâmica de seus trens-bala; a estrutura ventilada dos cupinzeiros foi utilizada pelo arquiteto Mike Pearce no projeto de edifícios sustentáveis e mais frescos no Zimbábue.
Estes são apenas dois exemplos entre as centenas de soluções que a natureza já inspirou. E há potencial de novas descobertas em áreas diversas como cosmética, farmácia e arquitetura. Essa busca de soluções baseadas na natureza é chamada de biomimética, uma área que aproxima ciência e tecnologia.
Mas a relação entre humanos e natureza também perpassa áreas menos práticas. Artistas, por exemplo, encontram na natureza uma fonte inesgotável de matérias-primas e inspiração. Alguns utilizam folhas, galhos ou pigmentos naturais em suas obras; outros, como os fotógrafos, registram cenas e momentos que capturam o instante de paisagens e seres vivos.
Daniel Mira é um desses fotógrafos e artistas e tem uma provocação instigante:
“A natureza e as comunidades que vivem nela nos dão a imagem e o saber, e não devolvemos nada nesse processo? Extraímos aquela informação do organismo e não devolvemos nada para o organismo? Criamos uma jaqueta super especial, ganhamos bilhões de dólares com toda aquela estratégia, mas nada volta para a natureza que nos inspirou?”
Foi a partir dessa reflexão que ele criou a Me Deixe Existir, um marketplace de produtos de arte e fotografia do Cerrado que vai devolver recursos para o bioma a partir de cada venda feita. O projeto – aprovado no Start BSB, um programa de apoio a startups e projetos inovadores no Distrito Federal (DF) promovido pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF) – está em fase de construção. Com um recurso de 100 mil reais para prototipar a plataforma, a expectativa é que comece a operar ainda no primeiro semestre deste ano e que, em algum momento, seja ampliado para outros biomas do país além do Cerrado.
A startup foi criada dentro do NOUS, empresa que Daniel administra junto com a biomimetista Carol Freitas. O NOUS é um ecossistema de projetos inspirados na natureza composto por uma consultoria, um instituto e uma escola, e já atendeu clientes como Natura, Bradesco, Itaú e BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). É um negócio que busca transformar a maneira como as pessoas e empresas se relacionam com o meio ambiente, promovendo um design centrado na vida, inspirado em princípios naturais e na interação com comunidades tradicionais.
Na entrevista a seguir, Daniel fala sobre a nova startup, sobre o papel da bioinspiração em projetos inovadores, a visão do NOUS como um agente de transformação e sua crença em um futuro onde o design não apenas resolve problemas, mas também reconecta as pessoas à natureza:
O que te motivou a desenvolver a Me Deixe Existir?
Como fotógrafo, comecei a perceber que ia nas comunidades, fazia umas fotos, depois montava uma exposição e isso até dava visibilidade pra comunidade – mas parava por aí.
Durante um trabalho de pesquisa no Cerrado, comecei a desenvolver alguns objetos de arte e concluí que precisava pagar uma diária para aquelas comunidades que estavam me ajudando.
Eu não queria entrar naquele modelo de pegar um tronco que eles me ajudaram a ver, transformar em um objeto de arte e vender isso numa galeria em São Paulo por milhares de reais. Claro que tem um processo artístico envolvido, mas não pode ser assim.
Aí surgiu a ideia dessa startup. É um marketplace de produtos de arte e fotografia do Cerrado, onde o Cerrado é o primeiro investidor – afinal, foi ele que forneceu as imagens e matérias-primas
A ideia é de que essa startup trabalhe com um modelo em que a imagem ou o objeto tenha uma rastreabilidade, provavelmente com blockchain. Se uma foto for vendida na China, por exemplo, tem um recurso que vai voltar para quem trabalhou no projeto, para a comunidade, para o próprio Cerrado.
No modelo de negócios do marketplace, como será a “remuneração da natureza”?
A proposta é contribuir com uma parte dos lucros diretamente para o Fundo Me Deixe Existir, ainda em finalização. Esse fundo vai distribuir recursos para projetos que ajudem o Cerrado a se compor.
Para que isso aconteça, a obra terá que estar ligada a algum projeto?
Para o funcionamento deste retorno as obras serão classificadas por temática e direcionadas para o bioma correspondente, comunidade e espécies.
Como será feita a seleção do que vai entrar nesse marketplace?
Trabalharemos, a princípio, com a curadoria de especialistas no perfil da Bárbara Pacheco [CEO da VerdeNovo Sementes Nativas] para selecionar os projetos que apoiaremos diretamente com recurso do fundo.
Porém, nosso foco é impulsionar projetos e ações que tenham uma força de transformação sistêmica, como o Pastoreio Racional, um projeto da VerdeNovo para melhorar a relação entre cabeças de gado e hectares no Brasil
Hoje, temos uma cabeça de gado por hectare no país, mas existem desenhos de processos que fazem com que seja possível colocar 15 cabeças de gado por hectare. Quando é feita essa redução, a área que sobra tem muito fundo de recurso, de dívida ambiental que paga a sua restauração. A pessoa recupera a área e tem um valor agregado maior.
Por isso a ideia de que o recurso precisa voltar para fazer uma composição melhor. Não é um negócio daquele ativismo sem inteligência no processo. É pra voltar com design, com bastante visão de como podemos recuperar áreas com processos que integrem, inclusive, os agricultores.
Qual você acredita que será o impacto deste modelo?
O Cerrado hoje, em termos de devastação, tem apenas 28 anos pela frente.
Ou seja: se a gente continuar fazendo o que estamos fazendo, teremos “zero Cerrado” em 28 anos. Isso impacta em tudo que temos sistematicamente de água e situação climática
Eu brinco que o Cerrado é a caixa d’água do Brasil. Talvez aqui em Brasília não falte água, mas em São Paulo, no Paraná e em Minas Gerais vai faltar. Por isso a ideia de devolver para o ecossistema.
E o que é o NOUS?
O NOUS é um CNPJ muito antigo, que surgiu de uma parceria que eu tinha com um grande amigo para interligar design e arte. Fizemos alguns experimentos, mas [na época] não funcionou.
Há oito anos, retomei o NOUS com a parceria da minha companheira, a Carol Freitas, que é biomimetista. Hoje, a gente chama o NOUS de ecossistema de projetos inspirados na natureza.
O NOUS tem uma consultoria, um instituto e uma escola e, com isso, buscamos mudar a ótica de um design centrado no ser humano para um design centrado na vida, ou seja, na natureza
A gente usa a dinâmica do design para entrar nessas questões de necessidades ou de problemas e achar soluções, mas sempre integrando uma visão sistêmica da natureza.
O que significa o nome NOUS?
É um nome que vem do grego e significa “espírito das coisas”, “essência das coisas”. A gente entende que o princípio do NOUS vai para um lugar de integrar o sensível e o lógico como um elemento e solução das necessidades do mundo.
Quando vocês recebem uma demanda, como se dá essa busca pelas soluções na natureza? Vocês fazem uma expedição, uma pesquisa, ou buscam no que vocês já conhecem?
As três coisas acontecem. Às vezes é preciso uma pesquisa de campo aprofundada e, às vezes, já temos uma boa base de pesquisa onde encontramos a solução. Se um cliente chega com uma demanda sobre como usar menos plástico, por exemplo, vamos olhar uma série de organismos que respondem isso.
O que acontece é que a maioria das pesquisas de biomimética que existem no mundo estão centradas nos Estados Unidos. Também tem algumas coisas na Austrália e na África, mas não existe um banco de organismos dentro do que a gente chama de Neotropical para que possamos nos inspirar.
Então, temos trazido essa pauta de buscar na América Latina elementos de possíveis inspirações e estratégias de inovação. E posso dizer que isso existe, só não está catalogado.
Fiz esse experimento em algumas missões biomiméticas em que levamos as pessoas para o campo. Em uma dessas, aqui no Cerrado, um guia mostrou uma árvore que tem uma estratégia para combater fungos: elas criam uma resina que as formigas comem, como se fosse um estimulante – e aí elas comem os fungos. Quando acabam, a planta dá um calmante pra formiga, que para de consumir
Existem muitas estratégias desse tipo. Mas como o Brasil é um país pouco inovador em estratégia de produto, isso não se desenvolve tanto por aqui.
Como o mercado reage a essa abordagem? Por que as empresas procuram o NOUS?
Vivemos um momento em que o modelo econômico criado lá atrás está em queda porque não se sustenta, tem uma série de problemas de escassez e de viabilidade econômica em relação às pessoas. Dentro dessa queda, tem o surgimento de uma nova perspectiva que é essa inovação ligada à natureza.
O nosso negócio tramita num pessoal que quer entender um pouco mais, ou seja, somos uma espécie de glossário. Tem uma galera que quer ter uma formação e se aprofundar e tem uma galera que quer implementar isso logo. O que temos sentido é que quem não fizer essa transição vai ter problemas muito sérios.
Eu estava lendo esses dias sobre capitalismo consciente e vi que as empresas que se colocam como empresas realmente responsáveis com as pessoas e com esse tipo de integração têm tido melhores resultados na bolsa de valores. Mas, no Brasil, ainda há muita insegurança em inovação
Então, quando dizemos a uma grande empresa que ela podia pensar em embalagem de outra forma, ela nos retorna com questões como: “Vou ter que mexer na cadeia inteira, nas minhas máquinas? Não dá para pensar de um jeito mais simples?”. O mercado quer uma solução imediata. Então, é complexo – mas temos visto que é uma tendência a um tsunami.
Na minha visão, é uma onda que já está no horizonte. Se a gente não se adequar, vamos ter problemas sérios. Não só em termos ambientais e sociais, que já estão acontecendo, mas em termos econômicos.
E o Brasil é um cenário de muita oportunidade, porém ainda muito duro, retido. É difícil você falar com o CEO de uma grande empresa porque ele diz “você vai abraçar a árvore mesmo?” Então, existe uma resistência a esse tipo de coisa. Mas quando eles entendem a potência, a exponencialidade, o jogo vira.
O que falta para isso se concretizar?
O que precisamos hoje é mostrar dados para que as pessoas entendam o impacto, a força que é se inspirar nesse contexto.
Temos que mostrar, por exemplo, que mudar um ângulo inspirado na estrutura da palmeira vai gerar economia de 30% de plástico e isso vai ter um impacto na imagem [da empresa].
Hoje, tem muita empresa que vale mais pela imagem do que pelo produto de entrega porque está associada a causas mais sustentáveis, tem governança, uma visão de impacto… É o movimento, por exemplo, da Patagonia, que põe uma jaqueta e fala “não compre essa jaqueta porque você não precisa. Costure”. Ela agrega valor em outro lugar
É isso que a gente tem conseguido provar em algumas circunstâncias. E o mercado brasileiro tem muita oportunidade, mas ainda muita resistência e polaridades. Mas eu acredito que vai melhorar e só fico aqui por isso.
Como você acha que essa abordagem pode transformar as empresas e os projetos?
Quando as empresas buscam essa ideia de governança de pessoas, elas precisam de performance e de um bom nível de compromisso. Para isso, é essencial estabelecer uma relação mais profunda com as pessoas e também com o ambiente.
Se olharmos, por exemplo, para cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, onde as temperaturas estão aumentando, podemos pensar em formas de integrar essas mudanças no planejamento. Os resultados podem ser muito melhores e incluir estratégias como o trabalho híbrido, evitando que as pessoas saiam de casa nos horários mais quentes.
O que temos percebido é que, quando as empresas estão dispostas a adotar uma visão cultural mais integrada e centrada na vida, os benefícios são muito poderosos, tanto social quanto economicamente
Isso também reflete na sustentabilidade e até mesmo na imagem da empresa. No NOUS, buscamos o que chamamos de “clean label” do design, ou seja, não é greenwashing. É o famoso walk the talk: seja coerente com o que você realmente faz e planeja.
Os resultados desse processo são muito impactantes. Geralmente, leva de seis meses a um ano para que os efeitos comecem a aparecer. Mas quando isso acontece, o grau de consciência dos CEOs e das equipes sobre as necessidades da empresa e as possibilidades de crescimento se torna muito elevado. Isso melhora não só a imagem e a reputação da empresa, mas também seu valuation e sua capacidade de gerar novos negócios.
Já tivemos três ou quatro casos em que, após implementarmos essas mudanças, as empresas alcançaram um nível tão bom, com uma imagem coerente e uma integração entre as pessoas, que acabaram sendo vendidas
É claro que estamos lidando com um campo ideológico, mas também somos uma empresa ideológica e defendemos abertamente esses princípios. E os resultados têm sido muito positivos.
Posso dizer com tranquilidade que nunca tivemos um cliente reclamando dessa abordagem. Pelo contrário, o pessoal agradece muito o nível de consciência que conseguimos trazer para suas operações.
Qual é a sua visão de mundo e de futuro?
Acredito que estamos vivendo um problema de imaginário. Hoje, quase tudo que consumimos, seja na mídia ou no entretenimento, reforça uma visão apocalíptica do mundo.
Se você entrar na página da Globo, de 20 notícias, 19 são sobre assassinatos. No Netflix é a mesma coisa: tudo é muito ruim. Mas isso não é verdade. Tem mais coisa boa do que ruim acontecendo, senão o planeta já teria colapsado.
Existe uma pressão enorme para vivermos dentro de um caos que não é real. Claro, o problema climático está aí, mas também existem muitas iniciativas positivas acontecendo. Tem projetos lindos no mundo que quase não são divulgados
É como correr contra a maré, sabe? E nós estamos nessa maré, tentando mudar essa narrativa de escassez e pessimismo.
Para isso, acredito que precisamos olhar para dentro, para nossas frutas, nossas tradições, nossas comunidades. Se fizermos isso, podemos nos tornar um país verdadeiramente generativo, que atua com mais consciência e equilíbrio.
Professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Eduardo Sydney fundou três startups que usam o micélio (estrutura do fungo semelhante a uma raiz) na criação de soluções inovadoras para diversas indústrias, da moda à construção civil.
O descarte incorreto de redes de pesca ameaça a vida marinha. Cofundada pela oceanógrafa Beatriz Mattiuzzo, a Marulho mobiliza redeiras e costureiras caiçaras para converter esse resíduo de nylon em sacolas, fruteiras e outros produtos.
Aos 16, Fernanda Stefani ficou impactada por uma reportagem sobre biopirataria. Hoje, ela lidera a 100% Amazonia, que transforma ativos produzidos por comunidades tradicionais em matéria-prima para as indústrias alimentícia e de cosméticos.