Em julho de 2023, numa punição considerada histórica, o Corinthians precisou enfrentar o Vasco sem público no estádio, devido a cânticos homofóbicos proferidos por seus torcedores em um jogo contra o São Paulo, em maio do ano passado.
Entranhada há muito tempo no futebol, a homofobia não é exclusiva de nenhuma torcida. Tampouco está restrita às arquibancadas.
“O futebol é muito identificado com a ‘macheza’”, diz o ex-goleiro Emerson Ferretti, 52. “Você vai para dentro [de campo], você tem que ser ‘guerreiro’. Não cabe ser gay, porque quebra o estereótipo.” Emerson sabe do que fala: durante toda a carreira, ele manteve a sua orientação sexual em segredo.
Gaúcho, Emerson começou como profissional no Grêmio, em 1991. Depois de uma grave lesão, passou por Flamengo e outras equipes, conquistou a Copa do Brasil de 1999 com o Juventude e em seguida se transferiu para o Bahia, vencendo duas Copas do Nordeste e um Campeonato Baiano. Ele estava lá em 2001, última vez em que o Tricolor terminou entre os dez primeiros da Série A do Brasileirão.
Hoje, Emerson Ferretti é presidente do Bahia: o primeiro mandatário gay assumido de um grande clube do Brasil (ele revelou sua orientação em 2022, numa entrevista a um podcast, 15 anos depois de pendurar as luvas e as chuteiras). Foi eleito no fim de 2023 com 1 089 votos para o triênio 2024-26.
Em entrevista ao Draft, Emerson fala sobre sua trajetória, o impacto do preconceito no esporte e em sua carreira, e os planos para o Bahia – que em 2023 vendeu 90% de sua SAF (Sociedade Anônima do Futebol) para o Grupo City, o mesmo do inglês Manchester City, atual campeão do mundo:
Emerson, você é natural de Porto Alegre e gremista de origem. Como foi o seu despertar para o futebol?
Comecei a frequentar o Estádio Olímpico ainda pequeno, com uns 7, 8 anos de idade. Minha família é toda gremista.
Meu irmão fazia escolinha de futebol no Grêmio e eu pedi para passar a frequentar as aulas também. Mas sempre como goleiro. Sempre gostei de ser goleiro
Aos 8 anos, comecei a escolinha.
Naquela época, você já se entendia de alguma forma como uma pessoa gay?
Primeiro, tenho que contextualizar historicamente. Nasci em 1971. Vivi a infância na década de 1970 e a adolescência na década de 1980. Não tinha internet ainda, não tinha rede social.
E era uma época em que gays ainda eram tratados como cidadãos de segunda categoria, marginalizados, tidos como promíscuos, “sem-vergonha”. Tinham que se esconder, na maioria das vezes. E eu não entendia direito.
O processo foi muito solitário porque eu não pude conversar com ninguém durante a infância nem na adolescência. Percebia que os meus desejos eram diferentes dos outros garotos. Mas não entendia direito. Achava que ia passar.
Foi muito difícil, e havia o medo de ser descoberto. Havia vergonha também. Aos poucos, fui aprendendo que ser gay não era uma coisa bem vista pela sociedade. Não era aceito, muito menos no futebol, onde comecei aos 8 anos
A descoberta da sexualidade demorou a adolescência toda. Não entendia direito, não tinha informação disponível na época e não tinha ninguém para conversar. Fui descobrindo aos poucos e entendendo aos poucos, sozinho. E, no futebol, então, era muito menos aceito.
Tive que tomar algumas atitudes para poder esconder isso, pois o medo de ser descoberto era muito grande – justamente porque seria marginalizado. E isso ainda em uma cabeça de uma criança, de um adolescente. E sem informação nenhuma dentro desse meio. Foi muito complicado.
Sua família chegou a perceber? Ou a te pressionar de alguma forma?
Se percebia, não comentava, porque era um assunto sobre o qual não se falava. Ainda mais naquela época.
E, assim, só tive alguma coisa com algum homem aos 21 anos. Então, durante a minha adolescência, não teve nenhuma situação para que pudessem desconfiar.
Talvez o jeito [a linguagem corporal]. Mas eu havia começado a sair com garotas da mesma idade. Perdi a virgindade com uma garota.
Não era como meu irmão, que “pegava” todas, bem gaúcho, né? Logo, a diferença de um para outro era muito clara. Ainda assim, é um assunto que não se falava.
O futebol é um esporte muito identificado com a heteronormatividade, com o arquétipo do “machão”. Você acha que o preconceito é mais forte dentro do vestiário, ou vem mais da arquibancada?
De todos os lugares. Na verdade, o preconceito da sociedade é levado para o futebol e potencializado ali.
Hoje a gente vê a sociedade mais evoluída – e o futebol ainda [ficando] para trás nessa evolução. Hoje, se um jogador na ativa assumir [que é homossexual], a carreira dele acaba
O futebol é muito identificado com a “macheza”. É o que tínhamos nas arenas romanas. Um protótipo do guerreiro atlético. Você vai para dentro [de campo], você tem que ser “guerreiro”.
E o atleta de futebol é a mesma coisa, né? Você vai para uma arena: simboliza tudo aquilo todo aquele povo que queria estar ali. Não cabe ser gay, porque quebra o estereótipo.
Em 1993, quando era goleiro do Grêmio, você lesionou a perna direita durante um amistoso e acabou ficando quase dois anos longe dos gramados. Após três décadas, você trouxe à tona esse lance em uma entrevista, associando-o à sua orientação sexual, na época velada. Pode explicar melhor?
Ali, sofri uma lesão grave na perna. Ainda não tinha tido nenhum relacionamento com homem. E é justamente isso que estava desequilibrado na minha vida.
A questão é a intencionalidade [da falta, que teria sido cavada pelo próprio Emerson para se afastar do futebol]. Hoje, tenho praticamente certeza disso. Foi inconsciente.
Eu já estava com 21 anos, goleiro do Grêmio, conhecido no Sul e com a carreira em ascensão. Provavelmente chegaria à Seleção Brasileira… Só que o fato é: eu tinha o “profissional” muito bem e o “pessoal”, zerado – por conta de os desejos terem sido reprimidos a vida toda até então
E quanto mais destaque eu tinha dentro de campo, mais difícil se tornava, porque ficava mais conhecido. Um cara jovem, sem muita experiência [sexual]. Os olhares aconteciam, mas eram os olhares dos homens de admiração e de reconhecimento pelo goleiro. Como eu ia paquerar?
Sem contar que eu não tinha absolutamente nenhum contato com o mundo gay. Eu não tinha noção nenhuma – nenhuma, nenhuma – sobre nada desse mundo.
O profissional estava muito bem e o pessoal tinha um vazio gigante. Me desequilibrou muito e começou a me trazer transtornos.
E acho – depois de vinte anos de terapia, tenho quase certeza – que a lesão foi uma coisa inconsciente provocada para eu sair de cena de futebol e poder me equilibrar. Senão eu ia parar na Seleção Brasileira me reprimindo, sem poder paquerar, e me faria muito mal
Foi uma atitude extrema, inconsciente, em uma tentativa de equilibrar isso. Sair de cena do profissional, do futebol, para acalmar isso. E aí foi a partir da recuperação que eu comecei a ter relacionamentos [homossexuais].
Existe um Emerson antes e outro depois da lesão? No que eles diferem e no que convergem?
Antes da lesão, eu era totalmente dedicado ao profissional. Depois da lesão, quando conheci esse outro mundo, houve um encantamento, um deslumbramento natural.
Como eu era uma pessoa conhecida em Porto Alegre, começaram a me ver em locais “alternativos” e começou um zunzunzum em cima. Uma fama… Me deslumbrei para viver algo que não havia vivido – e me desequilibrei de novo.
Tive que dar um freio para tentar equilibrar, senão a minha carreira seria prejudicada. E tudo isso sem poder conversar com ninguém.
Nesse período em que frequentava locais alternativos e voltados ao público gay, houve pressão do clube, dos patrocinadores, da torcida?
Diretamente, não. Mas depois eu soube que já existia uma conversa dentro do clube e talvez até a minha saída pode ter sido motivada por isso.
E tinha outros fatos, né? Além de ter quebrado a perna, havia outro goleiro no meu lugar.
Saí do Grêmio e segui com a carreira. Mas acredito que alguns treinadores e clubes evitaram me contratar por conta dessa fama
Não diretamente; nunca me “chamaram a atenção”. Meu comportamento dentro dos clubes nunca deu margem para isso.
Nos clubes seguintes de sua carreira, houve alguma situação de conflito, por conta da sua orientação sexual velada? Ou foi mais tranquilo?
Nunca foi tranquilo. Eu percebia que as pessoas falavam – e, no futebol, geralmente pelas costas. Sabia que a fama me acompanhava e que falavam pelas costas o tempo todo sobre mim. Foi difícil.
Após pendurar as chuteiras, em 2007, como foi a sua transição de Emerson goleiro para o Emerson dirigente de futebol?
Eu encerrei a carreira como goleiro e já estava fazendo faculdade de administração. O dirigente surgiu por acaso.
Primeiro apareceu o Ypiranga em uma situação muito complexa. Comecei a ajudar informalmente. Já era um ídolo aqui na Bahia, pessoa pública, era comentarista esportivo também. Passei a me envolver com o clube até que me tornei presidente [ele presidiu o Ypiranga, tradicional clube baiano, de 2012 a 2017].
Logo após me formar como administrador, estava com a teoria fresca; apareceu o Ypiranga e foi uma forma de colocar em prática o que havia estudado na área em que atuei como atleta a vida toda. Isso me deu uma base, um aprendizado grande para ser presidente do Bahia
Não foi algo pensado. Foi acontecendo.
Ex-atletas muitas vezes buscam a faculdade de educação física para investir na carreira de treinador, ou jornalismo para trabalhar na imprensa esportiva. Por que o curso de administração?
Sempre gostei. Aos 17 anos já estava na faculdade de administração em Porto Alegre, mas não concluí porque aos 20 já estava como goleiro do Grêmio. Depois, retomei.
Você saiu do armário enquanto figura pública em agosto de 2022, em uma entrevista a um podcast do GE batizado, justamente, de “Nos Armários dos Vestiários”. Como foi essa decisão de falar sobre sua orientação sexual?
A Joanna de Assis, do SporTV, me procurou antes da pandemia para fazer uma reportagem sobre o assunto. Não gostaria de participar da matéria, mas me abri com ela para ajudá-la.
Contei minha história desde o início para embasá-la, porque achava o tema importante. Depois veio a pandemia, a Joanna engravidou e, nesse período, veio o processo de maturação [da decisão de falar no podcast].
Não queria participar, mas acompanhava toda a pesquisa dela. Quando ela me perguntou se eu gostaria de participar – após eu já estar amadurecendo a ideia de falar –, veio o convite para o podcast
Conversei com pessoas próximas. Não foi uma decisão fácil, mas acabei falando. Na verdade, nunca havia imaginado que falaria sobre isso publicamente.
Em dezembro de 2023, você foi eleito presidente do Esporte Clube Bahia para o triênio 2024-26. Houve alguma manifestação preconceituosa quando da sua eleição?
Nada. Pelo contrário. Só coisa boa, só apoio. Nada de ataques durante a campanha. A gente sabe que as pessoas falam, mas publicamente e diretamente a mim, não houve nada.
O Palmeiras vem dominando o futebol brasileiro nos últimos anos. Em 2023, Fluminense e São Paulo também se destacaram, com conquistas inéditas: a Libertadores e a Copa do Brasil, respectivamente. Dá para furar essa bolha sudestina e chegar perto daquele histórico time do Bahia campeão brasileiro de 1988?
O Bahia tem hoje um parceiro que traz poderio financeiro. Para formar um time de qualidade, você precisa ter dinheiro.
Um time mais simples pode chegar longe? Pode. Uma vez ou outra pode acontecer; uma conjunção de fatores [positivos] pode acontecer em determinado momento, mas [num cenário em que] não há dinheiro para sustentar essa posição.
O Bahia hoje tem dinheiro graças ao poderio financeiro do Grupo City, que é nosso parceiro. Então, o processo para furar essa bolha está sendo criado, com a formação de um time qualificado que, provavelmente, vai começar a trazer resultados e brigar com os gigantes que hoje estão dominando
O Bahia e o Grupo City estão estruturando um trabalho que não vai ficar atrás de nenhum outro clube. Lógico que futebol é jogo e não dá para prever quem vai vencer. Mas as condições vão ser criadas para [o Bahia] voltar a ser protagonista.
(Nota: em dezembro, Emerson anunciou que o Grupo City deve investir 320 milhões de reais no Bahia em 2024.)
Com esse poderio econômico do Grupo City, quais são as suas prioridades à frente do Bahia?
No futebol, voltar a ter destaque. O Bahia não fica entre os dez primeiros colocados no Campeonato Brasileiro desde 2001. Eu ainda era o goleiro.
Então, [as prioridades são] voltar aos primeiros lugares e disputar uma Taça Libertadores; se possível, até o título. Ter conquistas relevantes dentro de campo. E é bom sempre frisar que, no futebol, há o comando do Grupo City.
A minha grande meta é trazer novamente o Bahia ao protagonismo do futebol brasileiro. E, fora dos campos – onde eu vou poder atuar mais diretamente –, é inserir o Bahia no ambiente olímpico, com outras modalidades esportivas, e atuar bastante nas áreas social e cultural.
O Bahia sempre se preocupou só com o futebol, então quero levar a marca a outro patamar. Elevar o Bahia como pioneiro na questão do respeito, da diversidade. Não é uma bandeira levantada – nem na minha campanha, nem na minha gestão. Mas é impossível dissociar isso de mim.
A partir do momento em que o Bahia elege o primeiro presidente LGBTQIAPN+ dentro do futebol brasileiro, essa gestão tem que ser marcada pelo respeito à diversidade, às pessoas e fazer com que o Bahia seja visto como o clube que puxe essa evolução dentro do futebol
Tem que ter o respeito. Fui goleiro, fui ídolo do Bahia e já era gay. Só não era assumido. E o Bahia me abraçou. Isso é “irrelevante”, é secundário, mas o Bahia está passando uma mensagem muito grande sobre evolução.
Isso encoraja outras pessoas, não só LGBTQIAPN+, mas que queiram entrar no futebol e não se sentem seguras por algum motivo, não se sentem seguras.
Quando você tem como referência um cara que foi atleta a vida toda, passou por grandes clubes, ganhou premiações individuais, tornou-se ídolo, é eleito presidente do Bahia e esse mesmo cara é LGBTQIAPN+, isso começa a mostrar a outros atletas gays dentro do futebol – que precisam se esconder – que o sucesso é possível.
É um legado que deixo fora de campo. Um legado de pioneirismo que o Bahia deixa para o futebol e isso acaba mudando, de alguma forma, a sociedade.
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