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“Existem futuros baseados na ancestralidade preta, em conceitos indígenas. Seria fantástico um futurismo brasileiro com diferentes olhares”

Marina Audi - 1 fev 2024
A consultora, mentora e futurista Daniela Klaiman.
Marina Audi - 1 fev 2024
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Você já deve ter trombado com relatórios de tendências que apontaram os temas-chave para este ano de 2024. Entre os que se repetem, estão: AI everywhere (inteligência artificial em todo lugar), Deep techs, gestão 4.0, descarbonização, economia digital e finanças descentralizadas

Muita gente tem opinião sobre cada um deles. Já a futurista Daniela Klaiman, 40, fundadora da consultoria FutureFuture, divide as suas em dois conceitos: futuros próximos e futuros um pouco mais distantes. E faz questão de adaptar os conceitos para a realidade local. (Por sinal, ela destaca a economia digital como um ponto de atenção.)

Daniela se descreve como futurista freestyle, em um mercado que antes da pandemia de Covid-19 era desconhecido e até mesmo ridicularizado. Isso porque construiu sua maneira de mentorar e dar consultoria com base em três escolas de futurismo distintas: a espanhola, a israelense e a dinamarquesa. De cada uma, ela tentou extrair o melhor.

Além disso, de 2020 para cá Daniela visitou dezenas de países e viveu como nômade digital – abria o mapa e escolhia um destino combinando possibilidade de entrada e tema de interesse a ser estudado. 

Confira a seguir a conversa de Daniela Klaiman com o Draft, em que ela deixa no ar a semente de uma ideia de futurismo brasileiro:



Como foi a base de sua vida, o seu ambiente familiar? De alguma forma ele te incentivou a pensar futuros?
Tive a grande sorte de ter sido criada por uma família que nunca me colocou como [uma limitação o fato de ser] “mulher”. Uma família cujas mulheres eram sempre fortes. 

Pode parecer uma coisa maluca, mas a partir do momento que você diz que a pessoa é “mulher”, isso limita muito as escolhas dela. Você começa a duvidar de si mesma por ser mulher e acha que não vai chegar tão longe, não conseguirá tal coisa, que o caminho será mais difícil

Fui educada sabendo que eu poderia fazer qualquer coisa que quisesse. Eu nunca tive nenhum tipo de limitação e eu acho que isso me ajudou muito a pensar da maneira como eu penso. 

Tenho uma outra característica – sem dúvida, impulsionada por isso – que é: eu sempre quis fazer coisas diferentes do que elas eram colocadas. Se todo mundo estava fazendo uma coisa, eu queria fazer diferente. Esse sempre foi o meu driver

Pra mim, não é porque as coisas sempre foram feitas de uma maneira que elas têm de continuar a ser dessa forma. Pelo contrário, se elas sempre foram assim, está na hora de mudarem. Isso foi desde pequena 

E tem uma curiosidade: meu grande sonho era ser arqueóloga. Sempre fui apaixonada por história, por entender civilizações. Eu era aquela criança apaixonada por dinossauros, sabia o nome de todos. 

Cheguei a entrar na faculdade de história e meu pai falou assim: “Tem certeza que é isso? Pensa bem, você não vai ser Indiana Jones, isso não existe. Você vai fazer umas coisas um pouco diferentes!”

Sou apaixonada pelo passado e acabei trabalhando com o futuro, virei futurista. Acho que é superconectado. A gente só consegue falar de futuro porque estuda o passado

Foram esses pilares que me fizeram olhar para o futuro, que me davam a possibilidade de entender como as coisas sempre foram feitas e pensar em possibilidades de fazer de uma forma diferente.

Você disse que tinha vontade de “fazer o diferente”. Quando optou por fazer faculdade de marketing e publicidade, isso era vanguarda? Aparentemente, na época, a disciplina era imediatista, uma vez que as campanhas têm um direcionamento. Parece que isso é o oposto de se pensar em possibilidades de futuros, concorda?
Sem dúvida, quando escolhi publicidade ela não era mais tão cool, desejada e hype como ela foi no auge, quando havia os grandes nomes e as campanhas direcionavam a cultura. Era uma coisa linda, mágica, que emociona até hoje.

Eu peguei, justamente, um período de transição. Na minha época não existia o planejamento nas agências. Havia atendimento, criação e mídia. Aí se criou esse lugar do planejamento. E também foi um momento, quando qualquer novo tipo de ferramenta um pouco mais tecnológica [virava moda]… eu lembro que todas as campanhas que apareciam para a gente tinham de ter um viral.

Para mim pegou entender que as agências estavam muito focadas em vender mídias grandes – por conta da remuneração em cima disso – mais do que entender a necessidade dos clientes, do consumidor deles e, aí sim, fazer campanhas alinhadas com quem era o target e com o que eles precisavam

Foi um período em que saímos do auge da criatividade para um momento de se vender. Isso me incomodava. Eu trabalhei na Ogilvy, na [agência] Africa, na Z+… 

No final, eu dizia: “Gente, tenho certeza que não estamos fazendo o melhor para a marca”. Ouvia de volta: “Tudo bem, mas fazemos o melhor para a agência ganhar dinheiro”. Foi isso que me impulsionou a querer mudar. 

Naquele momento, em 2007, achei que para conseguir me encaixar em outro mercado, precisaria fazer uma pós-graduação, que isso ajudaria a me reposicionar.

Quando busquei um curso, tentei me encaixar: era marketing, não era? Naquele momento, eu achava que não tinha perfil para estar numa empresa, porque afinal, eu queria ser diferente, e uma empresa não seria [algo] muito diferente.

Aí me lembrei de um documentário que eu tinha assistido sobre cool hunting. Eu me apaixonei pela ideia de haver jovens muito legais, contratados por marcas grandes para viajar o mundo, encontrar coisas diferentes e trazer como inspiração para a marca. Pensei que era exatamente o que eu queria fazer da minha vida.

Na época, havia só dois cursos: um na Itália, focado em moda, e outro em Barcelona, focado mais em negócios, comportamento do consumidor e tendências. Então, escolhi este: vendi meu carro, fiz um mês de aula de espanhol, me inscrevi na doideira, porque não estava nada planejado – e fui 

Foi por conta de uma certa decepção daquele momento e daquele mercado de publicidade que escolhi outro caminho. E sim, a publicidade é mais imediatista mesmo, e foi isso que me gerou frustrações, do tipo “não estamos criando um plano sustentável para a marca no futuro; estamos monetizando em cima dela hoje”. 

E quando se fala de futuro, não se pensa necessariamente num longo prazo, porque temos futuros próximos e futuros um pouco mais distantes. A gente pode e deveria se planejar para os dois e ir adaptando de acordo com as mudanças do mundo.

Você acha que são mindsets diferentes? Ou era uma questão de modelo de trabalho das agências, naquela época?
Acho que é uma questão de mindset mesmo. 

Hoje, a maior parte dos briefings que recebo é para entender o comportamento dos consumidores, o que vai mudar em tendências daqui para frente para brifar bem a agência para alguma campanha ou planejamento. Ou então, pego a campanha do cliente e ajudo a embasar quais são os territórios e tendências que precisam ser enxergadas para preencher o conteúdo de campanha.

A forma de a agência planejar é muito diferente. Ela planeja de acordo com a ideia que eles têm, pela perspectiva do planejador e do criativo que estão ali, de acordo com a vivência deles. Quando eu trabalho com pesquisa e futuro, olho pra fora. Parto do ponto que não tenho uma opinião sobre o assunto, nenhuma experiência – pelo contrário 

Se é para pensar mais a curto prazo, saio na rua e pergunto para as pessoas. Senão, vou atrás de especialistas para entender os futuros a longo prazo. Eu me inspiro em conhecimentos de fora para vislumbrar o que vai acontecer, enquanto a agência se inspira nos talentos internos.

A Box1824 é uma respeitada consultoria, voltada para o mundo dos negócios, que ajuda empresas a se prepararem para o futuro, provocando o status quo. Depois de trabalhar lá cinco anos, você saiu e passou a trabalhar de forma autônoma. O que mudou?
Quando entrei na Box1824, em 2011, foi incrível. Ela tem uma história maravilhosa de uma disrupção grande – pessoas muito jovens, um modelo diferente. Ela tinha uma aura fantástica e quando eu trabalhei lá esse pacote estava 100% completo. Acabei bebendo muito disso, aprendendo bastante metodologias etc. 

O tema de lá combinava muito comigo – “vamos fazer diferente o que já tem” – e me completou bastante. E a Box1824 se especializou em comportamento do consumidor, o que significa futuros próximos – de zero a cinco anos, mais ou menos. 

Os projetos eram todos focados em cima desse guia e traziam um grande perfil com a divisão de Alfas [pessoas que atuam diretamente na produção de elementos culturais], Betas [pessoas atentas à produção cultural que produzem sobre os elementos originais], Mainstream [pessoas que consomem indiferentes à produção], conceitos que mudaram até a forma como se entende target. 

Durante o tempo que estive lá, achava que aquilo bastava, que eu sabia de tudo o que acontecia no mundo e ninguém sabia mais do que eu… 

No meu último ano lá, 2016, eu estava em um projeto e me indicaram uma pessoa, que virou uma grande amiga – Mariana Fonseca – para fazer uma hora de mentoria comigo e me inspirar.

Ela tinha feito um curso de imersão de três meses na Singularity, em que você morava no campus da Nasa. Acho que a Mari fez a primeira ou a segunda turma e sentou comigo para conversar. 

Imagine eu, que sabia “tudo” do mundo, levei uma lavada. Ela me trouxe cases, exemplos, empresas, modos de trabalhar, conceitos, startups, tecnologias, um universo inteiro que eu nunca tinha olhado e entendido. Foi um balde de água fria na minha cabeça.

Eu fiquei super mal, passei uma semana na cama chorando, me senti parada, a pessoa mais atrasada do universo. Aí eu decidi rever um pouco a história e perguntei a Mari: como estudar tudo aquilo? 

Ela me disse que não sabia quando a Singularity abriria inscrição, mas que havia um outro curso em Israel, na The Hebrew University of Jerusalem, que ela iria fazer.

Comecei a estudar por conta própria o futuro a longo prazo, esse futuro pela tecnologia – que não fazia parte de nenhum tipo de estudo de tendências em futuro, de planejamento – e entendi que precisava entrar nesse universo. Eu me inscrevi no curso de Israel, fui aceita e pedi demissão da Box1824 para entrar nesse outro lugar. 

Foi um momento de transformação muito grande: entrei nesse universo, me apaixonei por ele, criei duas startups e foi aí que começou esse trabalho um pouco diferente que faço hoje 

As aulas em Israel são zero “futuro fantástico”. Aliás, eles nem falaram a palavra futuro nenhuma vez. Eles explicavam como as tecnologias funcionam e você tem de entender como ela será usada no mercado. Eles não são os melhores fazedores de empresas para o mercado; eles são os melhores fazedores de tecnologia. Então, é você quem precisa colocar as tecnologias em prática seja para clientes, projetos, consultorias. 

Foi bom esse lado, porque não vieram pacotes prontos, o que me obrigou a pensar bastante e entender a parte mais técnica e de funcionamento.

Mais adiante, entendi que não queria perder essa minha base que eu tinha em futuros próximos e pessoas – isso sempre vai ser a base do meu pensamento, porque concordo com ele. É preciso escutar o lado de fora. Mas entrei com o outro lado – quais são as tecnologias que estão aparecendo, como vão influenciar a vida das pessoas e os mercados? 

O meu método é combinar o futuro pelas pessoas com o futuro pela tecnologia. A minha forma de trabalhar é totalmente em cima da minha jornada, a maneira como eu entrei e me entendi nesse movimento de estudar futuros

Por exemplo, Amy Webb, a futurista mais conhecida que temos, não escuta consumidores, ela não tem esse olhar. Ela faz tecnologia. E as outras consultorias talvez potencializem mais o consumidor, porque são empresas de pesquisa.

Foi a partir da vivência em Jerusalém que você teve vontade de criar as startups Unlog – que antes se chamava Unpark e teve sua história contada aqui no Draft – e Glimpsy?
Comecei a Unlog – um Airbnb de vagas de estacionamento em edifícios residenciais – com a Samantha Barbieri. Ela surgiu no intervalo entre eu conhecer a Mariana Fonseca e a minha ida para Israel. Como foram alguns meses de processo, não aguentei esperar e comecei a estudar essas coisas, porque já estava fascinada.

A nossa proposta era que você pudesse alugar a vaga desocupada do seu prédio por horas. A startup durou bastante, recebemos investimentos, mas no final os prédios foram super-resistentes em deixar entrar estranhos para estacionar. 

Aí a gente pivotou para um modelo de nanocentros de distribuição. Em vez de colocar automóveis nos prédios receptivos, colocamos minicontêineres para última milha, para fazer a distribuição de produtos de delivery mais rapidamente 

Deu super certo, só que no início da pandemia, vendi para um dos sócios – Michele Dim D’Ippolito – que está tocando até hoje. Logística nunca foi o meu desejo maior. Eu queria só mudar 100% o mercado de estacionamento e de prédios. Quando virou logística, não tinha tanto mais esse punch que faz parte do meu drive.

A segunda startup, a Glimpsy, nasceu em Israel como Win Win. A Mari, inclusive, era minha sócia, criamos o modelo durante nossa estadia lá. Depois que voltamos para o Brasil, em 2016, procuramos parceiros – ficamos sócias de uma empresa de Minas Gerais, Animatto, uma agência de publicidade mais tecnológica que já fazia programação – e montamos a operação. 

Ela foi a primeira rede social em realidade aumentada do mundo. A gente conseguiu captar 4 milhões de reais, foi bem legal – mas a pandemia derrubou os nossos investidores

Basicamente, na Glimpsy, ao invés de postar numa timeline, como é o caso de Facebook e Instagram, você postava o seu conteúdo geolocalizado em realidade aumentada pelo mundo. Você criava seu avatar e postava na frente dos lugares, deixava a sua mensagem para sempre fixa lá.

A ideia era que as pessoas são a mídia. Se eu tenho um avatarzinho e posso escolher a roupa que quiser para ele… se eu colocar uma roupa da Nike, as pessoas vão ver aquilo, então, eu sou a mídia anunciando para Nike. Se você conquistasse os lugares mais interessantes da cidade, aquilo seria um outdoor virtual. 

Foi incrível, fomos investidas pelo fundador da F.Biz, o Marcelo Lacerda, mas aí rolou a pandemia e todo mundo mudou 100% de prioridade, além de ninguém poder sair de casa. Era uma rede social para você postar na rua, então, o pessoal decidiu segurar um pouquinho. 

Depois, esse “segurar um pouquinho” virou “vamos ter que mandar todo mundo embora”, porque não conseguíamos mais pagar o salário dos programadores. Agora, o X [antigo Twitter] e o TikTok remuneram os creators e todo mundo encontrou esse formato. 

O core de ambas as startups era mudar o mercado em que estavam. No final, aprendi que essas startups são as piores, porque apesar de serem encantadoras, é difícil convencer as pessoas de que aquilo precisa mudar

Eu lembro do meu pitch em 2016, em que dizia que o Facebook ia quebrar, as pessoas desistiriam porque o modelo não faz sentido. E ouvia: “Está maluca? O Facebook nunca vai mudar”

Enxergar tão à frente assim pode dificultar transformar isso num negócio que funcione hoje. Como se chega no meio termo: enxergar adiante e lançar algo que pode vir a ser – mas que ainda não é o ideal? Parece um contrassenso, aliás…
Concordo contigo. A Glimpsy não foi a primeira. Eu já tinha passado por isso antes. Em 2009, quando voltei de Barcelona, tive outro negócio com a Samanta e a Carla Lamarca chamado Super Cool Market. 

Era uma loja de roupas usadas – não vintage, mas sim as roupas que estavam na moda, na época. O que a gente comprava, a pessoa podia levar em outras roupas da loja ou em dinheiro. 

Era um super conceito de second hand, a gente tinha a instituição de doação do mês e o espaço teve um dos primeiros cursos de cool hunting. Também abríamos espaço para quem quisesse trabalhar lá

A galera me achava maluca, dizia que nunca tiraria o computador de casa, andaria com ele pela rua, sentaria num lugar para trabalhar. Eu dizia: “Estou te dando o Wi-Fi, a cerveja, por que não sentar e ocupar o espaço aqui?”

Era muito legal, tinha muitos conceitos, mas as pessoas resistiam a comprar uma roupa usada. Corta para dois ou três anos atrás, quando vimos a Renner comprar e vender roupa usada e as second hand explodindo mundo afora. 

O que eu aprendi com isso e aplico nas minhas consultorias é: é preciso construir o caminho das pessoas até esse lugar. Apesar de saber qual é o end game, aonde devo chegar, tenho de oferecer soluções muito fracionadas e parceladas para que, enquanto [ainda] estão chegando lá, as pessoas tenham o meu produto ou serviço acessível.

Essa foi uma grande mudança. É preciso fazer um roadmap de transformação não só interno da empresa, mas também um roadmap de transformação de mindset das pessoas

Não é só porque eu digo que algo vai acontecer, ou que aposto que aquilo outro vai acontecer, que a pessoa consegue construir o caminho até lá. Eu tenho de construir esse caminho para elas. 

Hoje, é isso que eu faço para as empresas – construo esse caminho interno, uma vez que a empresa tem de ir se transformando, acreditando e comprando a ideia, e também como ela externaliza isso para os consumidores.

As indústrias estão começando a fazer isso. Por exemplo, não adianta eu falar em carro autônomo; adianta mostrar o que vai acontecer durante esse período, lançando os híbridos no meio do caminho. Enfim, tem de fazer isso em cada mercado.

Para quem é mais difícil ensinar esse faseamento: C-level ou o consumidor?
Depende bastante do perfil da empresa e do perfil dos C-level, mas geralmente é um pouco mais difícil internamente. 

Não porque a pessoa não queira, mas porque ela tem um monte de entraves lá dentro – os budgets não estão distribuídos da maneira que precisariam; tem o Board; metas duríssimas na área de inovação que não fazem sentido nenhum… 

Por mais que a pessoa queira articular, muitas vezes o sistema engessa. Eu sinto que as empresas um pouco mais flexíveis se beneficiam, conseguem abraçar e ir adiante. E sabemos que as empresas maiores são menos inovadoras, são followers, precisam de um tempinho maior para se adaptar

Se conseguimos aliar essas estratégias internas de lançamentos com uma boa comunicação, o consumidor entra a bordo, está super aberto a mudanças e inovações, principalmente o brasileiro. Somos super early adopters, não nos preocupamos com privacidade: “Me dá que eu quero”.

É mais fácil convencer o consumidor se houver um bom storytelling, embasado – sou contra storytellings mentirosos –, do que mudar as estruturas internas da empresa. Muitas vezes, o consumidor já está preparado, mas a indústria ainda não conseguiu oferecer certas coisas.

Ou, às vezes, os executivos têm medo do que vão demonstrar financeiramente para os acionistas…
Super… porque as metas das pessoas sempre são financeiras. Uma questão interessante é que os conselhos das empresas são administrativos, partem do pressuposto de olhar números. Não são conselhos que miram outros tipos de KPIs e metas. 

Quando os C-levels não atingem isso, automaticamente sabem que tomarão uma ralada do conselho. Isso faz parte de uma estrutura e os conselhos precisariam ter perfis diferentes. As metas são administrativas, mas ele teria de medir inovação, impacto na sociedade e diversas outras coisas. 

Vejo que esta transformação é mais lenta, porque está todo mundo confortável.

Você fez o curso de conselheira do IBGC cerca de quatro anos atrás. Você participa de algum conselho? Ou conseguiu levar essa discussão até algum?
Essa é uma batalha pessoal. Os conselhos são muito pouco diversos. E quando se entra nesse assunto, a diversidade fica nos âmbitos de gênero e raça. Entendo que a diversidade em conselhos tem de ser de repertórios, contribuições e idades – além dessas duas primeiras camadas que também têm de estar presentes. 

Há conselheiros com muita experiência, porém com mais idade e desconectados dos assuntos “mais novos”. E também sempre se buscam pessoas formadas em business, ou seja, pessoas que sabem literalmente ler um balanço, porque é preciso assinar que você entendeu as contas matemáticas e está de acordo com aquilo. Lembrando que você pode ser punido financeira e legalmente. 

Isso já faz com que as pessoas tenham um único perfil – formação, aprendizado, olhar e tudo mais. Por essa razão, por enquanto, é muito difícil vermos perfis de pessoas diferentes em conselhos

Eu não tenho esse perfil. Passei por um processo bem interessante e longo para uma vaga de conselheira em uma empresa de maquinários pesados. 

Na fase final, me perguntaram qual era meu conhecimento de Excel, planilha e balanço. Eu disse que não tinha e a pessoa me perguntou se eu estaria disposta a aprender. Eu falei: “Estou, mas eu não acho que esse seja o meu melhor lugar. Se você precisa que eu responda por isso, não sou a escolha certa. Eu tenho de responder por coisas em que tenho expertise”. Aí não rolou. 

Me encaixar no padrão é a pior coisa que posso oferecer. O que tenho de bom para oferecer é, justamente, o olhar diferente para novas formas de fazer

O que tem acontecido é as empresas colocarem os comitês de diversidade, inovação, tecnologia, só que o comitê não apita nada. Na minha opinião, o comitê é bonitinho, neles até se colocam pessoas bacanas, mas ali tudo vira [apenas] sugestão. 

Não concordo muito com o formato atual de comitê. Acho que o importante é conseguirmos mexer no formato de conselhos e quase obrigar que tenham repertórios diversos, obviamente alinhados com os objetivos da companhia, mas que sejam mais amplos do que [meramente] financeiros.

É uma mudança complexa. E na América Latina, nos seguramos mais no poder de ser um conselheiro. As pessoas acumulam muitos cargos – há quem participe de cinco, seis, sete conselhos. A pessoa não quer perder isso, dá para entender.

Você falou sobre o curso que fez em Barcelona, voltado para comportamento do consumidor. Em Jerusalém, o curso era focado mais em entender como as tecnologias funcionam para aplicá-las em outras situações. Como foi em Copenhague? E qual dessas vivências foi mais marcante?
Copenhague é bem interessante. Quando se fala de países desenvolvidos em futuro de vida, sempre se cai nos países nórdicos. A Europa é desenvolvida, mas quando você chega na Europa do Norte é outro mundo, totalmente diferente. Eles têm essa imersão em Future of Living e realmente, dá para vislumbrar como será a sociedade do futuro.

Quando se pensa no futuro do viver, é comum vir à mente a Ásia, que é mais visualmente tecnológica, tipo Singapura. 

Quando se vai para os países nórdicos, que são muito menos visualmente tecnológicos e têm qualidade de vida igual para todo mundo, você começa a pensar que faz muito mais sentido isso do que aquele “show off asiático” mais externo, que tem menos consistência

Pra mim, o curso em Copenhague teve a ver com a imersão no futuro do viver, sociedade e comunidades, mas o principal output de lá foram as metodologias – os frames de foresight. Eles são muito bons nisso, são criadores de metodologias para estudo de futuro, para se fazer planejamentos, jornadas etc. Foi esse tipo de conteúdo que fui buscar lá, porque eles são referências nisso também.

Para mim o mais legal é sempre a cultura de cada lugar. O conteúdo é muito interessante, mas o background é importante. No Brasil, por exemplo, não nos aprofundamos em tecnologias como em Israel; não somos bons em criar tecnologias. A gente é bom em pegar tecnologias de fora e criar produtos e serviços para atender o nosso mercado interno grande. Esse nosso formato fez com que chegássemos aos modelos de negócios de hoje.

O legal dos cursos é mais a vivência nos lugares, é entender essas lógicas. Se eu quiser inovar, para o que preciso olhar para me inspirar? Que modelos de pensar de outros lugares eu posso usar? Isso é o mais legal de estudar em lugares diferentes – entender o que está por trás da forma como aquela sociedade pensa e se desenvolve.

De que forma preparamos pessoas para prospectar futuros aqui no Brasil? O que é pensar futuros no Brasil?
Primeiro, é extremamente recente. É um assunto que ficou muito forte durante a pandemia. 

Antes, quando eu fazia uma palestra, me perguntavam sobre a minha “bola de cristal”. Durante a pandemia, virou algo tipo: “Pelo amor de Deus, eu não sabia que precisava saber disso! Eu tenho de olhar para a frente, ter um plano B, C e D”

Todo mundo se desesperou: foi o momento do despertar da consciência de que temos de olhar o futuro do Brasil. E eu parei de ser [vista como] a pessoa estranha, bizarra e do “tarô de negócios” para ser a pessoa que talvez tenha conselhos interessantes e estratégicos 

A jornada começou [a partir dali] e as pessoas realmente procuraram mais cursos. A gente quase não tem formações aqui. O próprio curso da ESPM que eu criei e ministro, na pandemia ia virar digital e acabou não virando por uma questão de estrutura. Então, abri cursos meus para pessoas que pediram. 

Fiz turmas online e foi assim que abri a mentoria, porque às vezes a pessoa só quer uma dica: “Estou pensando nisso – faz sentido para o futuro? Ou ainda estou pensando numa coisa que é mais do passado, ou não faz sentido nenhum? O caminho talvez seja mais pra esquerda e menos pra direita do que eu estou pensando?”

A gente não tem uma formação [escolar] excelente. Deveríamos ter porque um dos conceitos mais falados do mundo é futures literacy [ou “alfabetização em futuros”, conceito explicado neste Verbete Draft], que é colocar a formação de futuros em absolutamente todos os níveis escolares de educação. 

A gente sempre ensina muita história, o que aconteceu [no passado]. Agora, precisamos ensinar as pessoas a pensarem para a frente também. Essa é uma mudança gigantesca que todo o mundo deveria passar. Precisaríamos criar um conteúdo de futuros que pudesse ser espalhado, desde jovens até pessoas mais velhas dentro da faculdade, e também cursos de pós para o tal lifelong learning.

Uma coisa importante é aprender a conectar futuros com a realidade do Brasil; caso contrário, pode gerar uma frustração muito grande. Pode ser duro falar sobre coisas – muito ruins ou muito boas – que vão acontecer e ver que nada está mudando: continua a não haver saneamento básico, as pessoas ainda trabalham por um salário ridículo, sem serem registradas etc. 

Se você vai ficar no Brasil, o importante é entender os futuros, conseguir ler o que acontece no nosso país e adaptar esses futuros para cá. Só aí criar tendências que funcionem para a gente e para as empresas que atuam aqui, na realidade de hoje. 

Não se deve pegar uma tendência pronta e jogar no nosso mercado. Precisamos tropicalizar ou tupicanizar as tendências para a gente. Quando se olha para futuros como formato de tendência, “chupinha” de fora e tenta jogar aqui, muitas vezes não funciona. 

É preciso entender as tendências e, ao mesmo tempo, como traduzi-las para o nosso mercado. 

Temos uma sociedade bastante desigual tanto em termos de cultura quanto de educação e desenvolvimento econômico. A realidade e os futuros de uma cidade como São Paulo, seus cidadãos e negócios são diferentes de uma capital como Maceió, em Alagoas, estado com menor IDHM do Brasil. Pensar em estratégias e tendências globais é verdadeiramente possível? Me parece premente ter escolas e formações de pensamentos futuros nas várias regiões do país…
Você está certíssima. Essa é a coisa mais importante, até porque a gente não é só diferente em nível de desenvolvimento, mas também culturalmente. 

O futurismo é diferente quando se tem um autor norte-americano e um africano escrevendo. Tem autores brasileiros que escrevem, o que já é diferente por causa da história que cada um deles viveu. Por exemplo, existe uma linha de futurismo chamada afrofuturismo, que parte da ancestralidade preta – o Wakanda do Pantera Negra é um exemplo. 

Existem futuros baseados em conceitos indígenas… olha que riqueza teríamos aqui! Deveríamos tentar entender todas essas vertentes de futuro, por todas essas culturas que temos em nosso país 

Indígenas e todos os povos ancestrais tinham muitas tecnologias também. Como atualizar e trazer essas possibilidades para o momento e daqui para frente? O que se quer é tentar trazer futuros bons, positivos para todo o mundo.

Como começar a desenhá-los, sem deixar de valorizar a origem de todos eles? Temos algumas bases, mas não são tantas assim. Ele tem abertura suficiente para criarmos vertentes diferentes. Seria fantástico termos um futurismo brasileiro com diferentes pilares, olhares e representantes. 

Vários relatórios de tendências apontam AI everywhere, Deep techs, gestão 4.0, descarbonização, economia digital e finanças descentralizadas entre os temas-chave deste ano. Qual você vê como mais urgente de ser desenvolvido pelo Brasil?
Acho que seremos impactados por todos eles, porque são tópicos globais e grande parte das empresas daqui são multinacionais: elas vão conversar com as diretrizes de fora, que vão acabar chegando aqui também. Não temos como evitar. 

O interessante para cá é a história da economia digital, porque aqui temos um grande problema de desbancarizados. O número tem caído por conta dos novos bancos digitais mais democráticos, mas a taxa ainda é bastante alta – até um ano atrás, 50% da população era desbancarizada, agora é um pouquinho menos.

Esse universo de economia digital é interessante, porque ajuda a transformar a maneira de as pessoas obterem crédito, parcelarem contas e isso é muito relevante, porque a gente ainda está um pouco mais para trás.

Ainda temos de resolver problemas mais básicos, que outros países já resolveram, antes de conseguirmos nos dedicar totalmente aos outros problemas. Entre as tecnologias aqui propostas, a economia digital é a que tem mais potencial de trazer mais inclusão para a população brasileira.

Se eu tivesse de colocar uma moedinha mais a curto prazo, seria na economia digital.

Você acha que a gente desenvolve tecnologia para chegarmos à economia digital realmente ou compramos a tecnologia de fora?
Acho que adotamos mais tecnologias de fora do que desenvolvemos. Mas temos modelos diferentes… O brasileiro é um ser extremamente criativo, que eu amo. Tem um exemplo bonitinho para contar. Uma pessoa postou na rede social dela que fez um pedido de pizza pelo iFood. 

O entregador chegou na casa e falou: “Eu vi aqui que você não pediu sobremesa. Eu e a minha mulher fazemos brigadeiros: aqui tem um pacote com quatro, outro com dez… se você quiser sobremesa para acompanhar o pedido, posso te vender o brigadeiro e você me paga o valor com a gorjeta no iFood, que vem integralmente para mim”.  

O brasileiro é fantástico em criar modelos de negócio, em como hackear as tecnologias via “jeitinho brasileiro”. Isso é para mim uma super qualidade que temos, é positivo. Não criamos tecnologia, mas a gente a adapta para o nosso jeito, faz uns “gatos” e isso faz a nossa inovação acontecer 

Para mim, o core de inovação brasileiro é o stretch [esticar], mexer e adaptar tecnologias existentes.

Talvez tenhamos de respeitar a nossa característica cultural.
Sim. A nossa mágica é essa.

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